31 de out. de 2025

351) FRIDA KAHLO EM ARAXÁ



Chegou envolta num xale vermelho, com flores no cabelo e uma mala que parecia pesar mais de lembranças que de roupas.

A cidade era Araxá. O céu, de um azul quase mineral. E o ar , espesso como saudade.

Frida Kahlo desceu do trem como quem não procura nada, mas está pronta para encontrar tudo. Andou pelas ruas de calçamento, sentindo nos pés a firmeza da terra que guardava segredos. Ali, diziam, vivera uma mulher de nome sussurrado entre lendas e escândalos: Dona Beja. Frida ouviu o nome pela primeira vez num mercado, quando uma senhora lhe ofereceu uma goiabada e disse:

— Esta terra é de mulheres fortes, minha filha. Aqui até a vergonha tem orgulho.

Intrigada, Frida caminhou até o antigo casarão onde Beja vivera.

Lá, em silêncio, tocou a parede com a palma da mão como se esperasse ouvir um eco vindo de séculos.

E ouviu...

Não com os ouvidos, mas com os ossos.

Sentiu uma presença quente, decidida, como se o passado estivesse sentada num divã bordado.

— E você? Veio sofrer ou provocar?, disse uma voz doce, mas com lâmina por dentro.

Frida virou-se e viu Beja, vestida de branco, os olhos vivos como brasas, sentada em uma cadeira de balanço que não balançava.

— Ambas as coisas. A dor me visita, mas quem decide o chá sou eu, respondeu Frida.

As duas se olharam por longos segundos. Não havia estranheza, só reconhecimento.

— Aqui fui amada e odiada. Beijei e bati. Fui desejo e escândalo.

— No México também. Me chamaram de louca, de feia, de santa e de mural.

— Disseram que eu era fácil.

— Disseram que eu era difícil.

— Eu cavalguei homens com meu nome.

— Eu cavalguei a dor com meu pincel.

Beja se levantou. Caminhou até Frida com a leveza de quem já não carrega corpo, apenas memória. Pegou uma flor do cabelo da pintora e disse:

— Deixa isso no meu túmulo, quando fores embora. Assim saberão que estive viva também depois da morte.

Frida assentiu.

Naquela noite, pintou um retrato imaginário: duas mulheres, uma com espelhos no ventre, outra com ferraduras nos olhos.

Chamou o quadro de “As que não pediram permissão”.

Dizem que, antes de partir, Frida caminhou até o antigo cemitério e deixou a flor sobre a lápide de Dona Beja, sussurrando em espanhol:

“A liberdade sempre encontra um corpo. E um nome.”

 

Edson Pinto

Outubro, 2025

 

Nota do autor

Frida Kahlo (1907–1954) foi uma pintora mexicana que transformou sua dor física e emocional em arte intensa e visceral. Símbolo da força feminina e da autoexpressão, pintou a si mesma como quem se reconstrói.

Dona Beja (Ana Jacinta de São José, 1800–1873) foi uma figura lendária de Araxá, conhecida por sua beleza, inteligência e espírito livre. Desafiou as convenções sociais de seu tempo, foi amante e empreendedora, admirada e condenada. Hoje é lembrada como símbolo da mulher que não se curva. 

2 comentários:

Perciodiogo disse...

Muito bom !

Edson Taurizano disse...

Muito lindo, Edson. É sempre uma alegria e uma emoção apreciar suas crônicas. Um abraço meu amigo.