A cidade era Araxá. O céu, de um azul quase mineral. E o ar , espesso como saudade.
Frida Kahlo
desceu do trem como quem não procura nada, mas está pronta para encontrar tudo.
Andou pelas ruas de calçamento, sentindo nos pés a firmeza da terra que
guardava segredos. Ali, diziam, vivera uma mulher de nome sussurrado entre
lendas e escândalos: Dona Beja. Frida ouviu o nome pela primeira vez num
mercado, quando uma senhora lhe ofereceu uma goiabada e disse:
— Esta terra
é de mulheres fortes, minha filha. Aqui até a vergonha tem orgulho.
Intrigada,
Frida caminhou até o antigo casarão onde Beja vivera.
Lá, em
silêncio, tocou a parede com a palma da mão como se esperasse ouvir um eco
vindo de séculos.
E ouviu...
Não com os
ouvidos, mas com os ossos.
Sentiu uma
presença quente, decidida, como se o passado estivesse sentada num divã
bordado.
— E você?
Veio sofrer ou provocar?, disse uma voz doce, mas com lâmina por dentro.
Frida
virou-se e viu Beja, vestida de branco, os olhos vivos como brasas, sentada em
uma cadeira de balanço que não balançava.
— Ambas as
coisas. A dor me visita, mas quem decide o chá sou eu, respondeu Frida.
As duas se
olharam por longos segundos. Não havia estranheza, só reconhecimento.
— Aqui fui
amada e odiada. Beijei e bati. Fui desejo e escândalo.
— No México
também. Me chamaram de louca, de feia, de santa e de mural.
— Disseram
que eu era fácil.
— Disseram
que eu era difícil.
— Eu
cavalguei homens com meu nome.
— Eu
cavalguei a dor com meu pincel.
Beja se
levantou. Caminhou até Frida com a leveza de quem já não carrega corpo, apenas
memória. Pegou uma flor do cabelo da pintora e disse:
— Deixa isso
no meu túmulo, quando fores embora. Assim saberão que estive viva também depois
da morte.
Frida
assentiu.
Naquela
noite, pintou um retrato imaginário: duas mulheres, uma com espelhos no ventre,
outra com ferraduras nos olhos.
Chamou o
quadro de “As que não pediram permissão”.
Dizem que,
antes de partir, Frida caminhou até o antigo cemitério e deixou a flor sobre a
lápide de Dona Beja, sussurrando em espanhol:
“A liberdade
sempre encontra um corpo. E um nome.”
Edson
Pinto
Outubro, 2025
Nota do autor
Frida
Kahlo (1907–1954) foi uma pintora mexicana que transformou sua dor física e
emocional em arte intensa e visceral. Símbolo da força feminina e da
autoexpressão, pintou a si mesma como quem se reconstrói.
Dona Beja (Ana Jacinta de São José, 1800–1873) foi uma figura lendária de Araxá, conhecida por sua beleza, inteligência e espírito livre. Desafiou as convenções sociais de seu tempo, foi amante e empreendedora, admirada e condenada. Hoje é lembrada como símbolo da mulher que não se curva.

2 comentários:
Muito bom !
Muito lindo, Edson. É sempre uma alegria e uma emoção apreciar suas crônicas. Um abraço meu amigo.
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