(Reflexões de um avô que se dobra, mas não se quebra)
Há dias em que acordo com a sensação
de que o corpo já não obedece à alma. Ou, talvez, seja a alma que, cansada,
tenha resolvido se deitar mais cedo e por isso acorda antes do corpo. Noto um
descompasso entre ambos. A alma quer voar, enquanto o corpo precisa destravar
as articulações. É assim que se chega ao inverno das estações da vida, esse
tempo em que o corpo encolhe, mas a mente, teimosa, continua a se esticar como
quem quer alcançar o infinito.
E
foi numa dessas manhãs em que o espelho me olhou com ironia que me lembrei de
Blaise Pascal, o francês que nos comparou a um caniço pensante.
Ora!
Pascal foi um desses homens que conseguiram a proeza de caber em várias gavetas
ao mesmo tempo. Foi matemático, físico, inventor e, por fim, teólogo. Um gênio,
portanto, mas também um melancólico que via o homem como um fiapo entre a lama
e as estrelas.
Dizia
ele que somos frágeis como um caniço (uma vara fina e quebradiça), dessas que o
vento dobra, mas que tem a insolência de pensar. E é justamente aí que mora
nossa grandeza.
Na
minha infância e juventude, lá em Belo Horizonte, eu não entendia bem essa
história. Caniço, para mim, era planta de beira de córrego, às vezes, usada para pescar outras vezes para cutucar formigueiros.
Pensar,
eu já fazia demais, ainda que com os erros de quem acha que vai durar para
sempre. Hoje percebo que Pascal tinha razão, ou seja, o corpo é um bambuzinho que
o tempo vai afinando. Mas o pensamento… ah, o pensamento, ainda canta.
Lembro
dos filhos que criei e dos netos que ainda correm pela casa, cada qual um
rebento novo do mesmo caniço antigo. Todos pensantes, espero. E vejo em cada um
deles essa mistura de fragilidade e coragem que Pascal tanto admirava, ou seja,
a capacidade de ser pequeno e, mesmo assim, refletir sobre o universo.
Se
eu fosse reescrever o pensamento de Pascal à luz da minha própria experiência, diria que o homem é
um caniço persistente. Ele pensa, apanha, insiste, e ainda agradece o vento que
o dobra. É o vento, afinal, que nos mantém em movimento. Um caniço sem vento
seria apenas uma vara parada. E o homem sem adversidade, um vegetal vaidoso.
O
curioso é que, quanto mais o corpo se curva, mais a mente parece erguer-se. A
cada fisgadinha no ciático, descubro uma
nova pergunta sobre o sentido das coisas. Talvez seja assim mesmo, isto é, a resiliência do corpo é física, mas a
resistência da mente é metafísica. Enquanto o corpo declina, o pensamento
floresce, como se a natureza quisesse compensar uma coisa com a outra.
Hoje,
olhando para trás, vejo que a vida inteira foi um ensaio para aprender a dobrar
sem quebrar. O menino que virou gente grande, pai, avô e, por fim, cronista das
próprias torções. Continuo me dobrando, é verdade, às juntas enferrujadas, às
saudades, aos boletos. Mas ainda penso. E, enquanto pensar, serei digno da
metáfora de Pascal.
No
frigir dos ovos, temos que admitir que, ser um caniço pensante não é uma
ofensa, é um elogio disfarçado. É admitir que somos frágeis, sim, mas não tolos.
Que somos vulneráveis, mas não vãos. E no
dia que o vento nos levar, que leve junto as ideias que plantamosi. Quem sabe,
em algum canto do tempo, outro caniço as escute e continue a pensar?
Novembro, 2025
Blaise Pascal (1623–1662) foi um dos grandes gênios franceses do
século XVII. Matemático e físico precoce, inventou a primeira calculadora
mecânica e lançou as bases da teoria das probabilidades. Mais tarde,
aproximou-se da filosofia e da teologia, tornando-se um dos pensadores cristãos
mais profundos de sua época. Em sua obra inacabada Pensées (Pensamentos),
refletiu sobre a condição humana, essa estranha mistura de grandeza e miséria.
Daí nasceu sua metáfora célebre: “O
homem é um caniço, o mais fraco da natureza, mas é um caniço pensante.”, ou
seja, somos frágeis como a erva, mas dotados de consciência, e é nesse
pensamento que reside toda a nossa dignidade.

Nenhum comentário:
Postar um comentário