14 de nov. de 2025

353) O INVERNO DO CANIÇO PENSANTE

 (Reflexões de um avô que se dobra, mas não se quebra)

Há dias em que acordo com a sensação de que o corpo já não obedece à alma. Ou, talvez, seja a alma que, cansada, tenha resolvido se deitar mais cedo e por isso acorda antes do corpo. Noto um descompasso entre ambos. A alma quer voar, enquanto o corpo precisa destravar as articulações. É assim que se chega ao inverno das estações da vida, esse tempo em que o corpo encolhe, mas a mente, teimosa, continua a se esticar como quem quer alcançar o infinito.

E foi numa dessas manhãs em que o espelho me olhou com ironia que me lembrei de Blaise Pascal, o francês que nos comparou a um caniço pensante.

Ora! Pascal foi um desses homens que conseguiram a proeza de caber em várias gavetas ao mesmo tempo. Foi matemático, físico, inventor e, por fim, teólogo. Um gênio, portanto, mas também um melancólico que via o homem como um fiapo entre a lama e as estrelas.

Dizia ele que somos frágeis como um caniço (uma vara fina e quebradiça), dessas que o vento dobra, mas que tem a insolência de pensar. E é justamente aí que mora nossa grandeza.

Na minha infância e juventude, lá em Belo Horizonte, eu não entendia bem essa história. Caniço, para mim, era planta de beira de córrego, às vezes, usada  para  pescar outras vezes para cutucar formigueiros.

Pensar, eu já fazia demais, ainda que com os erros de quem acha que vai durar para sempre. Hoje percebo que Pascal tinha razão, ou seja, o corpo é um bambuzinho que o tempo vai afinando. Mas o pensamento… ah, o pensamento, ainda canta.

Lembro dos filhos que criei e dos netos que ainda correm pela casa, cada qual um rebento novo do mesmo caniço antigo. Todos pensantes, espero. E vejo em cada um deles essa mistura de fragilidade e coragem que Pascal tanto admirava, ou seja, a capacidade de ser pequeno e, mesmo assim, refletir sobre o universo.

Se eu fosse reescrever o pensamento de Pascal à luz da  minha própria experiência, diria que o homem é um caniço persistente. Ele pensa, apanha, insiste, e ainda agradece o vento que o dobra. É o vento, afinal, que nos mantém em movimento. Um caniço sem vento seria apenas uma vara parada. E o homem sem adversidade, um vegetal vaidoso.

O curioso é que, quanto mais o corpo se curva, mais a mente parece erguer-se. A cada fisgadinha  no ciático, descubro uma nova pergunta sobre o sentido das coisas. Talvez seja assim mesmo, isto é,  a resiliência do corpo é física, mas a resistência da mente é metafísica. Enquanto o corpo declina, o pensamento floresce, como se a natureza quisesse compensar uma coisa com a outra.

Hoje, olhando para trás, vejo que a vida inteira foi um ensaio para aprender a dobrar sem quebrar. O menino que virou gente grande, pai, avô e, por fim, cronista das próprias torções. Continuo me dobrando, é verdade, às juntas enferrujadas, às saudades, aos boletos. Mas ainda penso. E, enquanto pensar, serei digno da metáfora de Pascal.

No frigir dos ovos, temos que admitir que, ser um caniço pensante não é uma ofensa, é um elogio disfarçado. É admitir que somos frágeis, sim, mas não tolos. Que somos  vulneráveis, mas não vãos. E no dia que o vento nos levar, que leve junto as ideias que plantamosi. Quem sabe, em algum canto do tempo, outro caniço as escute e continue a pensar?

 Edson Pinto

Novembro, 2025



 Nota do Autor


Blaise Pascal (1623–1662) foi um dos grandes gênios franceses do século XVII. Matemático e físico precoce, inventou a primeira calculadora mecânica e lançou as bases da teoria das probabilidades. Mais tarde, aproximou-se da filosofia e da teologia, tornando-se um dos pensadores cristãos mais profundos de sua época. Em sua obra inacabada Pensées (Pensamentos), refletiu sobre a condição humana, essa estranha mistura de grandeza e miséria. Daí nasceu sua metáfora célebre: “O homem é um caniço, o mais fraco da natureza, mas é um caniço pensante.”, ou seja, somos frágeis como a erva, mas dotados de consciência, e é nesse pensamento que reside toda a nossa dignidade.


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