27 de jun. de 2025

334) CONFISSÕES DE UM CATIVADOR DESATENTO

 

Não me julgue, leitor. Ou, se julgar, que seja com a brandura que se reserva aos que tropeçam nas próprias intenções. Eu não quis, e aqui reside o cerne da tragédia, mas cativei Clara.

Clara, sim, de nome e de natureza...

Tão Clara por fora quanto era por dentro, como uma manhã que se entrega inteira ao sol sem pedir nada em troca...

Havia nela uma espécie de transparência luminosa, daquelas que fazem a gente esquecer que o mundo costuma ser opaco. E, justamente por isso, cativá-la foi como tocar uma vidraça limpa: parece coisa simples, inócua, mas deixa marca. Com palavras, com silêncios bem colocados, com aquela atenção rara que só se dá quando se está encantado, mesmo sem saber.

Conheci Clara numa volta da escola. Era uma terça-feira, creio. Talvez chovesse, talvez não. Mas o que importa é que ela falou, e eu escutei como quem ouve uma canção que não quer acabar.

Nos tornamos íntimos de um jeito que só o anonimato permite. Voz, risos, textos, cartas. Eu, confesso, me sentia necessário. E isso é perigosíssimo: quando alguém se sente necessário no coração do outro, corre o risco de acreditar que sempre será bem-vindo, ainda que desapareça por um tempo.

Foi o que fiz.

A vida, esse álibi vagabundo de quem não quer assumir a própria negligência, me engoliu. Trabalho novo, tarefas, desânimos. Coisas miúdas, sabe? Mas que crescem como trepadeira e, quando percebemos, já sufocaram a flor que nos fazia sorrir.

Clara me mandou um bilhete um dia.

"Você está sumido", disse ela...

Três palavras só. Três facas. Visualizei, li, doeu. Mas respondi dois dias depois, com a frieza das desculpas automáticas.

"Desculpa, a vida."

Que vergonha me dá repetir isso aqui. Mas veja: a vida, bem ou mal, nos ensina a desaparecer com elegância, como se ausência fosse sinal de autonomia emocional.

O tempo passou. Dois, três anos, talvez mais...

Um dia, num desses domingos em que o coração se recorda de onde deveria estar, fui tomado por uma saudade estranha. Não da voz de Clara, nem dos poemas, mas da sensação de ser aguardado. Porque há algo de nobre, quase sagrado, em saber-se esperado...

Escrevi. Tímido, tonto, tardio. Disse que sentia falta. Que queria retomar. Que talvez ainda houvesse um canto do jardim com meu nome.

Mas Clara, sempre lúcida e clara por dentro e por fora, respondeu com delicadeza, porém firmeza. Não havia mágoa em suas palavras, mas havia a maturidade de quem aprendeu a regar o próprio jardim, mesmo depois da seca.

Foi então que compreendi, tarde, mas compreendi, como quem lê uma carta antiga e só agora enxerga o subtexto, o que dizia aquela raposa literária que certa vez folheei com pressa juvenil:

"Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas."

Sim, eu cativei. E depois fiz o que tantos fazem: fugi, distraído, convencido de que ternura não tem prazo de validade. Mas Clara…

Clara me guardou por um tempo, como se guarda uma pétala seca de rosa dentro de um livro de romance, com cuidado, com ritual, com esperança.

E agora, onde quer que ela esteja, sei que carrego uma eternidade que não pesa no bolso, mas no peito: a de ter sido, por instantes, morada no coração de alguém… e não ter sabido permanecer.

Se há alguma redenção possível, talvez ela esteja aqui nestas palavras. Talvez escrever seja minha forma tardia de regar o que deixei secar. Sei que já não floresce, mas, ainda assim, ofereço água. Não por querer colheita, mas por dever de jardineiro.

Porque, como aprendi, tarde, mas aprendi, o essencial é invisível aos olhos, mas, uma vez tocado, é indelével na alma.

E Clara… Clara foi o meu planeta B-612. E eu, um caricato Pequeno Príncipe desatento demais para entender que certos corações são estrelas:

Só brilham se você ficar para ver.

 

Edson Pinto

Junho’ 2025


21 de jun. de 2025

333) O ORÁCULO DE VIDRO E SILÍCIO

 

No século em que nasci (não direi qual, por modéstia, cautela e conveniência), as pessoas ainda olhavam umas para as outras com absoluta e regular frequência.

Havia, é verdade, os tímidos, os arrogantes, os absortos e os distraídos, mas ao menos se olhavam. Na minha terra, ainda, exclamavam um “Bom dia!”; uma “Boa tarde”! ou uma prosaica “Boa noite!”! para quem lhes cruzasse o caminho mesmo sem que nunca tivessem visto antes...

Hoje, a maioria dos rostos fita um retângulo luminoso, com a devoção de quem consulta um oráculo ou a superstição de quem espera que dali venha a sorte, o amor ou, no mínimo, o boleto pago, o recibo do pix, a confirmação do encontro sonhado, a devolução do imposto de renda, o placar do jogo do seu time de devoção.

Este objeto, o smartphone, ou simplesmente celular,  - que nome, aliás, pretensioso e quase ofensivo - tornou-se mais que uma simples ferramenta. É uma espécie de segunda alma, embora muito mais bem informada.

Nele reside nossa agenda, nossos afetos, nossos vícios, nossas senhas e - creia, leitor - até nossas saudades. É como se, entre carne e osso, tivéssemos inserido um chip de silício, e sem ele fôssemos almas errantes, sem GPS e sem sentido.

Outro dia vi um homem, de paletó e gravata, correndo  como quem persegue o bonde da vida. Não era o bonde - era o seu smartphone que caíra na calçada apinhada de gente.

A expressão em seu rosto não era de susto, mas de viuvez. Recolheu-o com tanto cuidado que pensei estar carregando um recém-nascido. Sorriu, aliviado, ao ver a tela intacta, como se dissesse: “Graças aos céus, minha existência não se perdeu.”

Ora, é impossível não ver nisto uma forma de amor... Não o amor que Camões declamava com fogo e tempestade, mas um amor mais resignado, mais prático - um amor com Wi-Fi e acesso a bancos de dados nas nuvens.

Talvez, se Romeu vivesse em nosso tempo, não morreria por Julieta, mas por não conseguir desbloquear seu telefone no funeral dela. Que imagem tétrica, não?

Até mesmo a metafísica não se abstém desse fenômeno. Quando Platão falou das sombras na caverna, não previa que os homens trocariam as sombras pelas notificações das redes sociais e dos sites de troca de mensagens.

Vivemos hoje no interior de uma tela, onde o real é aquilo que pode ser fotografado, compartilhado e comentado. O que não cabe num “story” não merece nossa lembrança.

E a subjetividade? Essa, por sua vez, tornou-se um algoritmo. “Quem sou eu?”, pergunta o homem moderno. E o celular responde: você é aquele que gosta de vídeos de gatos, culinária mineira e teorias da conspiração em formato de podcast.

A identidade, antes mistério profundo, agora se resume a um histórico de busca e uma galeria de selfies em ângulos cada vez mais audaciosos.

Não nego os avanços. O aparelho é útil, sem dúvida. Tão útil quanto a roda, o fogo e o caderno de fiado que sobrevive em alguns rincões de pureza por esse mundão afora. Mas entre utilidade e tirania há uma linha tênue - e hoje parece que foi deletada, como uma mensagem inconveniente:

Somos escravos sorridentes, com polegares ágeis e olhos fatigados. Dormimos com o celular ao lado, como um amante que não ronca, mas vibra e precisa constantemente recarregar sua bateria para continuar atuando no palco da vida...

Machado, Pessoa ou até mesmo Nietzsche - perdoe-me, leitor, os nomes são inevitáveis – cada qual a seu modo - diziam que há mais metafísica num beijo que em todos os tratados de Kant.

Pois bem, hoje há mais filosofia numa notificação do banco: “Seu saldo é insuficiente.” que num momento de pura reflexão existencial...

Se ao menos esse retângulo mágico que chamamos celular, smartphone, telemóvel, ou o que seja, nos ensinasse a olhar mais e não apenas a ver, talvez, um dia, cansados de tanto toque sem contato, de tanta conexão sem laço, redescubramos o espanto de um olhar humano, sem tela no meio.

E nesse dia, quem sabe, a humanidade fará uma selfie com sua própria alma - sem filtros...

Edson Pinto

Junho’ 2025


14 de jun. de 2025

332) DEUS É QUE SABE DAS COISAS...

 


Sol de maio, meio-dia...

O campo todo quieto que até o vento parecia descansando. Debaixo do ipê rosa, ainda por florescer, três homens simples de aparência, mas ricos de filosofia se encostavam  silenciosos, suados, depois de encherem o bucho com arroz, ovo frito e farinha molhada d’água de moringa.

 Zé Grande coçou o queixo barbado, olhou o céu limpo como uma folha de papel pronta  para se escrever, e lascou:

 — Ocês já pensaram que nóis tá vivo sem sabê por que e pra quê?

 João do Dico engoliu o último naco de rapadura e fez cara de quem engoliu também a pergunta.

Só Joaquim Véio respondeu, depois de cuspir pra longe, ao mesmo tempo em que principiava enrolar um cigarro de palha:

 — Vivo a gente tá, né. Pra quê, como dizem, é Deus que sabe. E talvez nem Ele saiba direito. Tem sabidos por aí que falam que cada um de nóis é que deve dar o sentindo à própria vida. Eu acho isso certo...

 Zé Grande riu daquele jeito triste de quem se faz de engraçado para disfarçar o medo que sente por dentro. Olhou o mato, como se ali morasse uma resposta escondida, entre folha e sombra.

 — Será que vale, isso tudo? Acordá cedo; botá a enxada no lombo; capinar;  vê o dia passá sem novidade, só esperando a morte chegar de mansinho?

 João do Dico ajeitou o chapéu de palha e falou pela primeira vez:

 — Mas morte é a única certeza que tem. E nóis ainda duvida e se espanta quando vê ela buscando nossa gente...

 — Eu não sei se sou feliz - disse Zé Grande, quase num sussurro. - Às vezes eu sinto uma tristeza sem nome, que vem do vento, ou de mim mesmo, sei lá...

 — Felicidade é passar o dia sem dor nas costela - disse Joaquim Véio.- Já é muito. O resto é invenção de cidade, de gente que não gosta de trabaiá.

 O silêncio veio outra vez, feito bicho arredio. O sol se moveu um dedo no céu.

 — Ocê acha que tem Deus mesmo, Zé Grande? - perguntou João do Dico, com voz de quem pisa em chão mole.

— Acho! Mas é um Deus que fala baixinho e nóis quase nunca escuta. Um Deus escondido nos buracos da vida da gente, nas pausas pra armuçar;, na sesta da tarde...

 Joaquim Véio assentiu com a cabeça, devagar:

 — Um Deus que não responde, mas escuta. Igual a terra.

 Os três ficaram olhando o horizonte, onde o mato se enrosca com o céu. Não disseram mais palavra porque a fala cansa mais que o cabo da enxada, às vezes. Mas naquele silêncio, alguma coisa se ajeitou dentro de cada um.

Foi quando Joaquim Véio pigarreou, já fumando, limpando a garganta do tempo, e falou com a calma de quem já viu mais do que contou:

— Eu fico pensando... será que nóis já não é feliz, do nosso jeito? Será que precisa mais? Será que felicidade não é isso aqui mesmo: barriga cheia, sombra de árvore, o mundo calado em volta da gente?

Zé Grande e João do Dico olharam para ele, quietos. Joaquim Véio transbordando de sabedoria de vida bem vivida, continuou:

— Tem gente que dá volta no mundo, vai longe pra buscar sossego, paz... mas será que não é aqui que ela mora? No cheiro da terra depois da chuva, no pão que a gente parte junto, no silêncio que a gente entende sem dizer, na mulher que espera nóis pro café, pro jantá; nos filhos que Deus nos mandô ?

Joaquim Velho deu um suspiro comprido, como quem esvazia um quarto dentro do peito e arrematou com sabedoria:

— Talvez a felicidade seja só isso: sabê que a vida é pouca, mas ainda assim sentá com dois amigos e vê o tempo passar, sem pressa, sem ambição. Se isso não for felicidade... então eu nem quero sabê o que é...

E o vento voltou a soprar, devagarzinho, como se também tivesse escutado.


Edson Pinto

Junho’2025

6 de jun. de 2025

331) METÁFORAS: ESSE MISTÉRIO ELEGANTE DA FALA

 

Outro dia, um amigo - desses que tendem a achar que as palavras são meras ferramentas para pedir café, cumprimentar pessoas, xingar o time quando joga mal, pagar boletos e coisas bem mundanamente objetivas - me perguntou:

— Mas afinal, Edson, por que você usa tantas metáforas em seus textos?

Eu admito que a pergunta me surpreendeu. Não pela sua complexidade, senão pelo fato de me ser - até então - inusitada. O uso de metáforas me é tão automático que, confesso, nunca tinha pensado detidamente nisso. Com efeito, pensei: boa oportunidade para uma investigação. Foi o que fiz...

Ora, por que uso metáforas?

Talvez pela mesma razão que algumas pessoas põem meias coloridas quando vestidas de terno preto: para não morrer de tédio dentro da norma. Ou talvez porque o mundo é um pouco mais digerível quando temperado com imagem e surpresa.

O fato é que a metáfora me serve como óculos de grau: sem ela, vejo a realidade, mas embaçada e sem charme.

A metáfora, meus caros, é uma espécie de mentira honesta. Você diz que o sujeito é um cavalo - e ele, que nem relincha, entende que se trata de força, não de crinas.

É uma comparação sem o constrangimento do “como”, esse aviso de que vem imagem pela frente. A metáfora não pede licença: entra, senta-se na sala da linguagem e muda o papel de parede.

Vem do grego “metáphora”, que significa “transferência”. Um tipo de mudança que não se faz com caminhão, mas com imaginação.

Aristóteles - o grego que entendia de tudo, menos de redes sociais - já dizia que a metáfora é sinal de genialidade. E quem somos nós para discordar de um sujeito que usava toga sem parecer ridículo?

Todo mundo usa metáforas, mesmo quem jura que só fala “direto ao ponto”.

Veja: falamos em “apagar memórias”, “feridas abertas”, “tempo voando”, “tóxicos relacionamentos” - tudo isso sem envolver papel, bisturi, asas ou produtos químicos.

A metáfora, portanto, é uma clandestina do vocabulário: está em toda parte, fingindo que não está. Ela é importante porque nos permite comunicar não apenas ideias, mas sensações. Dizer que a saudade “morde” é mais preciso do que qualquer tratado de neurociência afetiva.

Dizer que a esperança “brota” é mais convincente que planejamento estratégico elaborado no Powerpoint e complementado com planilhas do Excel.

Poucos textos fizeram uso tão criativo - e eficaz - da metáfora quanto a Bíblia. Ali, Deus é pastor, rocha, luz, pai, rei, amigo e até vento.

Cada metáfora revela um aspecto do divino - e, convenhamos, tentar descrever o indefinível sem recorrer à imagem é como tentar beijar o cotovelo: possível apenas em teorias de YouTube.

Jesus, mestre nesse ofício, não ensinava com PowerPoint, mas com figueiras, sementes, vinhas, sal, luz e tesouros escondidos. Ele não dizia “ajudem o próximo”; dizia “seja como o samaritano”. A metáfora ensina sem humilhar, convida sem ordenar, toca sem empurrar.

Dizemos que a vida é uma estrada, que o amor é um jogo, que o corpo é uma máquina, que o tempo é dinheiro. E quando mudamos a metáfora, muda também a forma como sentimos a realidade.

O problema talvez seja quando a metáfora nos aprisiona. Se tratamos o trabalho como uma batalha, viveremos exaustos. Se o casamento for sempre um porto seguro, talvez nos esqueçamos de navegar. Uma boa metáfora abre portas; uma metáfora ruim tranca o pensamento dentro de um armário.

Então, por que uso metáforas?

Porque a realidade, crua e nua, costuma ser malvestida e de pouca educação. A metáfora dá a ela um terno, um perfume e um sapato de cromo alemão.

Escrevo com metáforas porque a vida sem elas seria como um café sem cheiro, uma risada sem som, um abraço sem braços .

E, se me permitem, vai aqui a última metáfora deste meu texto totalmente metaforizado: escrever sem metáfora é como tentar acender uma vela com o vento.

Pode até funcionar. Mas onde está a graça?

 

Edson Pinto

Junho’ 2025