Sou, com orgulho, um paulista por adoção. Deixei, em 1973, com os meus 20 e poucos anos as Alterosas de meus arraigados vínculos familiares para cumprir ofício na terra dos Bandeirantes, ponto culminante aspirado por qualquer jovem que via em uma multinacional sediada na paulicéia um futuro promissor para a sua carreira embrionária. Era o meu caso...
O ano de 1973 fora marcado pelo primeiro choque do petróleo. Aquele mesmo que levou a Rainha Juliana da Holanda a adotar a bicicleta como meio de transporte e assim indicar aos seus súditos, e ao mundo, formas alternativas para a já insaciável demanda pelo escasso ouro negro dominado de forma cruel pela famosa OPEP de então.
Na época, o petróleo, tal como agora, já atingia preços em linha com os do seu homônimo amarelinho e brilhoso, do qual os amantes fazem as alianças para simbolizar suas paixões e os piratas, usurpadores dos esforços alheios, dentes vistosos para demonstrar a sua prepotência de malfeitores. Bastava, quis nos ensinar a Rainha, decidirmos ser menos arrogantes, optando por uma vida mais simples e mais saudável. Bela lição a enriquecer a história do século XX tão cheia de guerras fratricidas, mas compensada com avanços tecnológicos e progressos desmedidos, infelizmente, cobrando alto preço pelo esgotamento célere das reservas de petróleo do mundo. Anos mais tarde, fui morar na Holanda e, confesso que lá me apaixonei por uma Gazelle. Bem dito, para não gerar insinuações maledicentes, marca da bicicleta que, com grande carinho, ainda guardo nos porões de minha casa e de minhas gratas reminiscências.
O país brincava nas ondas espumantes do “Pra Frente Brasil” dos nossos Generais patriotas, mas, como todos sabem, não frutos do sufrágio universal; A seleção canarinha, três vezes campeã do mundo, simbolizava em Pelé e seus pares a supremacia da ginga e do nosso molejo criativos; A Transamazônica iria ligar o nada ao lugar nenhum, mas poderia ser vista da lua como se vê a muralha da China; Itaipu apagava de vez as estripulias do excêntrico Solano Lopez e nos dava energia para o crescimento econômico que parecia não ter fim; A ponte Rio/Niterói, orgulho da engenharia tupiniquim, matava a musa Cantareira de tantas poesias, mas enchia de orgulho os cariocas que – se já não bastasse – tinham sido agraciados pela natureza, quando, em flagrante mania de grandeza ali depositou os esplendorosos Corcovado e Pão de Açúcar. Sendo que neste, os cariocas tiveram a feliz idéia de dependurar um bondinho “maneiro” e assim turbinar o apetite dos casais em lua-de-mel, num quase fetiche para noites de amor sem fim. E o programa atômico, e tantas outras pirotecnias que aguçavam o orgulho pátrio? Nadinha, nadinha, ficara livre da escassez da gasolina sagrada tão essencial para que nossos fusquinhas de então nos levassem para a praia.
Por sorte, o primeiro programa sério para a adoção do álcool combustível estava germinando. De fato, poucos anos à frente, começava a produzir frutos e também a entupir carburadores corroídos pela acidez da nossa revolucionária garapa energética. Foi quando cheguei, com a determinação de, imediatamente entender o novo mundo que era São Paulo, morar sozinho e longe da família pela primeira vez e depois, progredir no trabalho e na vida. Se outras vidas eu tivesse - como nos legou Tiradentes - faria tudo igual. Talvez - pensando bem - até mesmo com um pouco mais de intensidade...
Tão logo o choque do petróleo serenara, o meu primeiro carro novinho em folha foi um Ford Maverick com muito mais cilindradas do que o necessário; pouca modéstia para o solteiro descompromissado que eu era e acima de tudo, reluzente com a sua cor vinho sugestiva de jantares harmonizados com uma bela companhia, na medida adequada para não provocar posterior congestão e tudo regado pelo detentor moral do nome daquela cor que, por sinal, nos encanta desde Baco. Foi quando comecei a apreciar um bom vinho e nunca parei...
O único problema era que o Maverick tinha a síndrome do ébrio de Vicente Celestino e entendia, como tal, que cada posto de gasolina era como se fosse um boteco onde ele pudesse embebedar-se para afogar suas mágoas – confessou-me certa vez - pelo mero papel de cúmplice não participante na essência, daquelas noites imemoráveis de garoas paulistana. Felizmente, pude suportá-lo, por certo tempo, naquele maldito vício pela gasolina cada dia mais cara. Ele era, por assim dizer, a minha única família. E pela família, sabe-se, fazemos tudo...
Mas aí, razões políticas internacionais muitíssimo sérias a começar pela queda do Xá Reza Pahlevi e a conseqüente ascensão do Aiatolá Khomeini no Irã somado a muitos outros qüiproquós pesados mundo afora, vieram, em 1979, e assim levaram definitivamente o meu companheiro de tantas jornadas. Troquei-o, no desespero - vejam só - por um nanico Fiat 147, à álcool. Já estava casado com filhos para criar e razões de ordem econômica pautavam, obviamente, a minha vida. Mas, não quero falar do Fiat 147, mesmo porque, em seis meses, me dei conta de que minhas longas pernas não se entendiam bem com o espartano espaço que ele me oferecia e assim voltei para um carro maior, mas, infelizmente, nunca mais para o meu Maverick de tão boas memórias.
Afora o apego natural que temos pelos nossos semelhantes, principalmente para com os entes queridos e para com amigos de fé, temos de reconhecer que seres não humanos podem também deixar belas recordações em nossas mentes. Muitas pessoas não conseguem esquecer aquele cachorro meigo, ou mesmo feroz, não importa, que fez parte de suas vidas por bons anos. Alguém lembrará com alegria daquela bola de futebol que ganhou em um Natal qualquer de sua infância e que com ela fazia sucesso nas peladas do bairro. Outro, ainda, não consegue tirar da cabeça o antigo jogo de botões com o qual ganhava todos os torneios da garotada. Eu, contudo, não esquecerei jamais do meu Maverick vinho.
Diga o que quiser! Bebia sim, e muito, mas não me decepcionava nas horas importantes. Havia total e plena sintonia entre nós. O seu motor de tantas e tantas cilindradas sabia como ninguém quando um sussurro era mais importante do que o ronco de leopardo que o caracterizava. Se fosse o caso de mostrar-se discreto, ele parecia trocar seus largos pneus de borracha rija por chinelas de pelúcia e chegava mansinho para não despertar a ira dos aflitos papais com a suas filhinhas que, como pássaros notívagos, bandeavam felizes na potência de seus e de meus motores. Jamais esquecerei o dia – ou, melhor dizendo – a madrugada, em que ele mostrou a real razão de seu potente motor ao colocar-me, são e salvo, distante daquele competidor enraivecido pela perda da caça que ambos cobiçávamos.
Hoje, passado tantos anos, fico ainda imaginando se o meu Maverick jaz inerte num tenebroso ferro-velho a espera do inevitável processo de reciclagem para, provavelmente, se transformar numa chique geladeira de porta dupla, numa banheira de motel de 3ª categoria ou ainda, num penico de hospital. Ou - o que seria na verdade o seu sonho maior: transformar-se numa futura versão do Maverick. E faz todo o sentido do mundo, pois ele, como ninguém, sabia que a sua encarnação - se assim fica mais humano referir-se à sua “versão” - já trazia no início dos anos 70 a adaptação, pela Ford, do estilo e caráter de milhões de irmãos mustangs e mavericks que aprontavam com absoluto sucesso na terra do Tio Sam.
Confidenciou-me, outro dia, um grande amigo, ter visto um Maverick vinho devidamente desprovido de seu motor e do capô, servindo como uma floreira charmosa na entrada de uma clínica campestre no interior de São Paulo. Disse-lhe encarando-o no fundo dos olhos: __ Tenho certeza que esse não é o meu. O meu seria capaz de atirar-se numa curva da Anchieta só para não perder a virilidade dos nossos bons tempos de aventura.
E que o bom Deus o tenha!
Edson Pinto
postado em 29/06/08
O ano de 1973 fora marcado pelo primeiro choque do petróleo. Aquele mesmo que levou a Rainha Juliana da Holanda a adotar a bicicleta como meio de transporte e assim indicar aos seus súditos, e ao mundo, formas alternativas para a já insaciável demanda pelo escasso ouro negro dominado de forma cruel pela famosa OPEP de então.
Na época, o petróleo, tal como agora, já atingia preços em linha com os do seu homônimo amarelinho e brilhoso, do qual os amantes fazem as alianças para simbolizar suas paixões e os piratas, usurpadores dos esforços alheios, dentes vistosos para demonstrar a sua prepotência de malfeitores. Bastava, quis nos ensinar a Rainha, decidirmos ser menos arrogantes, optando por uma vida mais simples e mais saudável. Bela lição a enriquecer a história do século XX tão cheia de guerras fratricidas, mas compensada com avanços tecnológicos e progressos desmedidos, infelizmente, cobrando alto preço pelo esgotamento célere das reservas de petróleo do mundo. Anos mais tarde, fui morar na Holanda e, confesso que lá me apaixonei por uma Gazelle. Bem dito, para não gerar insinuações maledicentes, marca da bicicleta que, com grande carinho, ainda guardo nos porões de minha casa e de minhas gratas reminiscências.
O país brincava nas ondas espumantes do “Pra Frente Brasil” dos nossos Generais patriotas, mas, como todos sabem, não frutos do sufrágio universal; A seleção canarinha, três vezes campeã do mundo, simbolizava em Pelé e seus pares a supremacia da ginga e do nosso molejo criativos; A Transamazônica iria ligar o nada ao lugar nenhum, mas poderia ser vista da lua como se vê a muralha da China; Itaipu apagava de vez as estripulias do excêntrico Solano Lopez e nos dava energia para o crescimento econômico que parecia não ter fim; A ponte Rio/Niterói, orgulho da engenharia tupiniquim, matava a musa Cantareira de tantas poesias, mas enchia de orgulho os cariocas que – se já não bastasse – tinham sido agraciados pela natureza, quando, em flagrante mania de grandeza ali depositou os esplendorosos Corcovado e Pão de Açúcar. Sendo que neste, os cariocas tiveram a feliz idéia de dependurar um bondinho “maneiro” e assim turbinar o apetite dos casais em lua-de-mel, num quase fetiche para noites de amor sem fim. E o programa atômico, e tantas outras pirotecnias que aguçavam o orgulho pátrio? Nadinha, nadinha, ficara livre da escassez da gasolina sagrada tão essencial para que nossos fusquinhas de então nos levassem para a praia.
Por sorte, o primeiro programa sério para a adoção do álcool combustível estava germinando. De fato, poucos anos à frente, começava a produzir frutos e também a entupir carburadores corroídos pela acidez da nossa revolucionária garapa energética. Foi quando cheguei, com a determinação de, imediatamente entender o novo mundo que era São Paulo, morar sozinho e longe da família pela primeira vez e depois, progredir no trabalho e na vida. Se outras vidas eu tivesse - como nos legou Tiradentes - faria tudo igual. Talvez - pensando bem - até mesmo com um pouco mais de intensidade...
Tão logo o choque do petróleo serenara, o meu primeiro carro novinho em folha foi um Ford Maverick com muito mais cilindradas do que o necessário; pouca modéstia para o solteiro descompromissado que eu era e acima de tudo, reluzente com a sua cor vinho sugestiva de jantares harmonizados com uma bela companhia, na medida adequada para não provocar posterior congestão e tudo regado pelo detentor moral do nome daquela cor que, por sinal, nos encanta desde Baco. Foi quando comecei a apreciar um bom vinho e nunca parei...
O único problema era que o Maverick tinha a síndrome do ébrio de Vicente Celestino e entendia, como tal, que cada posto de gasolina era como se fosse um boteco onde ele pudesse embebedar-se para afogar suas mágoas – confessou-me certa vez - pelo mero papel de cúmplice não participante na essência, daquelas noites imemoráveis de garoas paulistana. Felizmente, pude suportá-lo, por certo tempo, naquele maldito vício pela gasolina cada dia mais cara. Ele era, por assim dizer, a minha única família. E pela família, sabe-se, fazemos tudo...
Mas aí, razões políticas internacionais muitíssimo sérias a começar pela queda do Xá Reza Pahlevi e a conseqüente ascensão do Aiatolá Khomeini no Irã somado a muitos outros qüiproquós pesados mundo afora, vieram, em 1979, e assim levaram definitivamente o meu companheiro de tantas jornadas. Troquei-o, no desespero - vejam só - por um nanico Fiat 147, à álcool. Já estava casado com filhos para criar e razões de ordem econômica pautavam, obviamente, a minha vida. Mas, não quero falar do Fiat 147, mesmo porque, em seis meses, me dei conta de que minhas longas pernas não se entendiam bem com o espartano espaço que ele me oferecia e assim voltei para um carro maior, mas, infelizmente, nunca mais para o meu Maverick de tão boas memórias.
Afora o apego natural que temos pelos nossos semelhantes, principalmente para com os entes queridos e para com amigos de fé, temos de reconhecer que seres não humanos podem também deixar belas recordações em nossas mentes. Muitas pessoas não conseguem esquecer aquele cachorro meigo, ou mesmo feroz, não importa, que fez parte de suas vidas por bons anos. Alguém lembrará com alegria daquela bola de futebol que ganhou em um Natal qualquer de sua infância e que com ela fazia sucesso nas peladas do bairro. Outro, ainda, não consegue tirar da cabeça o antigo jogo de botões com o qual ganhava todos os torneios da garotada. Eu, contudo, não esquecerei jamais do meu Maverick vinho.
Diga o que quiser! Bebia sim, e muito, mas não me decepcionava nas horas importantes. Havia total e plena sintonia entre nós. O seu motor de tantas e tantas cilindradas sabia como ninguém quando um sussurro era mais importante do que o ronco de leopardo que o caracterizava. Se fosse o caso de mostrar-se discreto, ele parecia trocar seus largos pneus de borracha rija por chinelas de pelúcia e chegava mansinho para não despertar a ira dos aflitos papais com a suas filhinhas que, como pássaros notívagos, bandeavam felizes na potência de seus e de meus motores. Jamais esquecerei o dia – ou, melhor dizendo – a madrugada, em que ele mostrou a real razão de seu potente motor ao colocar-me, são e salvo, distante daquele competidor enraivecido pela perda da caça que ambos cobiçávamos.
Hoje, passado tantos anos, fico ainda imaginando se o meu Maverick jaz inerte num tenebroso ferro-velho a espera do inevitável processo de reciclagem para, provavelmente, se transformar numa chique geladeira de porta dupla, numa banheira de motel de 3ª categoria ou ainda, num penico de hospital. Ou - o que seria na verdade o seu sonho maior: transformar-se numa futura versão do Maverick. E faz todo o sentido do mundo, pois ele, como ninguém, sabia que a sua encarnação - se assim fica mais humano referir-se à sua “versão” - já trazia no início dos anos 70 a adaptação, pela Ford, do estilo e caráter de milhões de irmãos mustangs e mavericks que aprontavam com absoluto sucesso na terra do Tio Sam.
Confidenciou-me, outro dia, um grande amigo, ter visto um Maverick vinho devidamente desprovido de seu motor e do capô, servindo como uma floreira charmosa na entrada de uma clínica campestre no interior de São Paulo. Disse-lhe encarando-o no fundo dos olhos: __ Tenho certeza que esse não é o meu. O meu seria capaz de atirar-se numa curva da Anchieta só para não perder a virilidade dos nossos bons tempos de aventura.
E que o bom Deus o tenha!
Edson Pinto
postado em 29/06/08