30 de abr. de 2025

325) O ESTEREÓTIPO E A ARTE DE NÃO PENSAR


                                            

Tem gente que acorda, toma café e sai distribuindo estereótipos como quem oferece santinhos em tempos de campanha eleitoral. É automático, quase inconsciente: O mineiro é desconfiado, quieto e se entope de pão de queijo. O baiano é preguiçoso, o paulista vive com pressa, todo brasileiro dança samba e joga futebol, o político é corrupto, todo russo se afoga em vodca, o adolescente é rebelde, o pobre é preguiçoso, o rico é arrogante. Cada grupo, um rótulo; cada pessoa uma caricatura, uma visão simplificada e simplória...

O estereótipo, intelectualmente falando, é uma espécie de atalho mental, uma forma cômoda de não precisar pensar. Afinal, por que tentar entender alguém se é mais fácil encaixá-lo num molde pronto, não é? Dá menos trabalho. E, para muitos, isso já basta. Mas esse atalho tem pedágio alto: o da ignorância.

No cotidiano, o estereótipo veste argumentos como se fossem ternos bem cortados, costurados e caprichosamente bem passados.. Está nas conversas de bares, nos debates políticos rasos, nas redes sociais onde todo mundo tem opinião sobre tudo e todos, mas pouca escuta para assimilar as eventuais contra argumentações. Serve para vencer uma discussão sem precisar ter razão, só impacto. É o famoso “todo político rouba” que silencia o debate sobre ética; o “isso é coisa de fascista” que encerra qualquer tentativa de empatia na seara política.

E o pior: muitas vezes quem usa dos estereótipos na argumentação nem se dá conta disso. Acha que está sendo realista, direto, até sagaz. Não percebe que repete falas herdadas, ideias empacotadas que nunca foram questionadas. O estereótipo é a ferramenta do ignorante. Trabalha com ela para atingir seu objetivo argumentativo. Porque, ignorância, no fim das contas, é só a ausência de olhar mais profundo, de ferramenta mais adequada...

Desconstruir estereótipos dá trabalho. Exige curiosidade, disposição para o incômodo, vontade de ouvir histórias que fogem do script. Mas é nesse esforço que mora a empatia.

E quem sabe, um pouco de sabedoria.

Edson Pinto

Abril, 2025

6 de abr. de 2025

324) O ESTRANHO SONHO DE ÉRICO


Érico sonhou que fora preso. Não sabia ao certo se seria por semanas, meses ou anos. A cela era fria, úmida, como se chorasse sua própria existência. Havia uma cama de solteiro com um colchão ralo, um vaso sanitário manchado pelo tempo, e uma estante de ferro com apenas um objeto: um volume grosso, encadernado em couro gasto, com a letra "E" gravada em dourado na lombada.

Era um volume de uma conhecida Enciclopédia, letra E, apenas isso. Nenhum outro livro, nenhum outro escape. No início, Érico ignorou o tomo. Passava os dias deitado, os olhos fixos nas rachaduras do teto, ouvindo os ruídos longínquos do exílio como uma trilha sonora de condenação.

Mas ao passar os dias, a curiosidade o venceu. Abriu o livro como quem abre uma porta secreta.

"Ebulição", dizia o primeiro verbete. Ele leu, releu, aprendeu tudo sobre o ponto em que a matéria líquida se transforma em gás. Pensou no corpo fervendo de raiva, na mente em ebulição diante das injustiças e desagradáveis momentos da vida...

Depois veio "Eclipse" e ele se lembrou da última vez que viu o céu. Leu sobre a dança dos astros e sombras. Imaginou-se como sendo a Lua ocultando a luz do próprio ser apenas à espera de se mostrar de novo.

Havia também "Epifania", e foi ali que ele teve a sua: aquele volume seria sua liberdade. Não a liberdade física, mas uma fuga mais sutil e talvez mais poderosa.

Por semanas, ele devorou tudo e a fundo de cada verbete. "Entropia", "Estalactite", "Esfinge", "Exílio" - palavra que doía como ferida aberta. Com cada nova entrada, Érico via o mundo se expandir dentro das paredes cinzentas. Aprendia termos científicos, mitológicos, filosóficos. Começou a criar histórias com as palavras, a imaginar mundos inteiros a partir de "Eneida" e "Etéreo".

Logo, os guardas começaram a notar algo estranho. O preso da cela 22 falava de forma diferente, usava palavras incomuns, fazia perguntas estranhas: "Você já ouviu falar em ergástulo?", "Sabia que espermatófitas são plantas com sementes?"

Quando, alguns anos depois, Érico foi finalmente libertado - erro judicial, disseram -, ele saiu com um caderno cheio de anotações e ideias, todas começando com a mesma letra. E, ao ser abordado por um amigo curioso por essa fixação com o “E”, ele respondeu:

—  A prisão me deu a oportunidade de saber tudo sobre mim, até mesmo sobre como ser poderoso comigo mesmo e para sempre ...

Edson Pinto

5/4/2025