14 de jun. de 2025

332) DEUS É QUE SABE DAS COISAS...

 


Sol de maio, meio-dia...

O campo todo quieto que até o vento parecia descansando. Debaixo do ipê rosa, ainda por florescer, três homens simples de aparência, mas ricos de filosofia se encostavam  silenciosos, suados, depois de encherem o bucho com arroz, ovo frito e farinha molhada d’água de moringa.

 Zé Grande coçou o queixo barbado, olhou o céu limpo como uma folha de papel pronta  para se escrever, e lascou:

 — Ocês já pensaram que nóis tá vivo sem sabê por que e pra quê?

 João do Dico engoliu o último naco de rapadura e fez cara de quem engoliu também a pergunta.

Só Joaquim Véio respondeu, depois de cuspir pra longe, ao mesmo tempo em que principiava enrolar um cigarro de palha:

 — Vivo a gente tá, né. Pra quê, como dizem, é Deus que sabe. E talvez nem Ele saiba direito. Tem sabidos por aí que falam que cada um de nóis é que deve dar o sentindo à própria vida. Eu acho isso certo...

 Zé Grande riu daquele jeito triste de quem se faz de engraçado para disfarçar o medo que sente por dentro. Olhou o mato, como se ali morasse uma resposta escondida, entre folha e sombra.

 — Será que vale, isso tudo? Acordá cedo; botá a enxada no lombo; capinar;  vê o dia passá sem novidade, só esperando a morte chegar de mansinho?

 João do Dico ajeitou o chapéu de palha e falou pela primeira vez:

 — Mas morte é a única certeza que tem. E nóis ainda duvida e se espanta quando vê ela buscando nossa gente...

 — Eu não sei se sou feliz - disse Zé Grande, quase num sussurro. - Às vezes eu sinto uma tristeza sem nome, que vem do vento, ou de mim mesmo, sei lá...

 — Felicidade é passar o dia sem dor nas costela - disse Joaquim Véio.- Já é muito. O resto é invenção de cidade, de gente que não gosta de trabaiá.

 O silêncio veio outra vez, feito bicho arredio. O sol se moveu um dedo no céu.

 — Ocê acha que tem Deus mesmo, Zé Grande? - perguntou João do Dico, com voz de quem pisa em chão mole.

— Acho! Mas é um Deus que fala baixinho e nóis quase nunca escuta. Um Deus escondido nos buracos da vida da gente, nas pausas pra armuçar;, na sesta da tarde...

 Joaquim Véio assentiu com a cabeça, devagar:

 — Um Deus que não responde, mas escuta. Igual a terra.

 Os três ficaram olhando o horizonte, onde o mato se enrosca com o céu. Não disseram mais palavra porque a fala cansa mais que o cabo da enxada, às vezes. Mas naquele silêncio, alguma coisa se ajeitou dentro de cada um.

Foi quando Joaquim Véio pigarreou, já fumando, limpando a garganta do tempo, e falou com a calma de quem já viu mais do que contou:

— Eu fico pensando... será que nóis já não é feliz, do nosso jeito? Será que precisa mais? Será que felicidade não é isso aqui mesmo: barriga cheia, sombra de árvore, o mundo calado em volta da gente?

Zé Grande e João do Dico olharam para ele, quietos. Joaquim Véio transbordando de sabedoria de vida bem vivida, continuou:

— Tem gente que dá volta no mundo, vai longe pra buscar sossego, paz... mas será que não é aqui que ela mora? No cheiro da terra depois da chuva, no pão que a gente parte junto, no silêncio que a gente entende sem dizer, na mulher que espera nóis pro café, pro jantá; nos filhos que Deus nos mandô ?

Joaquim Velho deu um suspiro comprido, como quem esvazia um quarto dentro do peito e arrematou com sabedoria:

— Talvez a felicidade seja só isso: sabê que a vida é pouca, mas ainda assim sentá com dois amigos e vê o tempo passar, sem pressa, sem ambição. Se isso não for felicidade... então eu nem quero sabê o que é...

E o vento voltou a soprar, devagarzinho, como se também tivesse escutado.


Edson Pinto

Junho’2025

Um comentário:

Anônimo disse...

A crença e confiança em Deus permite alivio em preocupações e ansiedades. Nos tornam mais resilientes em face a coisas da vida e ...