No século em
que nasci (não direi qual, por modéstia, cautela e conveniência), as pessoas
ainda olhavam umas para as outras com absoluta e regular frequência.
Havia, é
verdade, os tímidos, os arrogantes, os absortos e os distraídos, mas ao menos
se olhavam. Na minha terra, ainda, exclamavam um “Bom dia!”; uma “Boa tarde”!
ou uma prosaica “Boa noite!”! para quem lhes cruzasse o caminho mesmo sem que nunca
tivessem visto antes...
Hoje, a
maioria dos rostos fita um retângulo luminoso, com a devoção de quem consulta
um oráculo ou a superstição de quem espera que dali venha a sorte, o amor ou,
no mínimo, o boleto pago, o recibo do pix, a confirmação do encontro sonhado, a
devolução do imposto de renda, o placar do jogo do seu time de devoção.
Este objeto,
o smartphone, ou simplesmente celular, -
que nome, aliás, pretensioso e quase ofensivo - tornou-se mais que uma simples ferramenta.
É uma espécie de segunda alma, embora muito mais bem informada.
Nele reside
nossa agenda, nossos afetos, nossos vícios, nossas senhas e - creia, leitor -
até nossas saudades. É como se, entre carne e osso, tivéssemos inserido um chip
de silício, e sem ele fôssemos almas errantes, sem GPS e sem sentido.
Outro dia vi
um homem, de paletó e gravata, correndo
como quem persegue o bonde da vida. Não era o bonde - era o seu smartphone
que caíra na calçada apinhada de gente.
A expressão
em seu rosto não era de susto, mas de viuvez. Recolheu-o com tanto cuidado que
pensei estar carregando um recém-nascido. Sorriu, aliviado, ao ver a tela
intacta, como se dissesse: “Graças aos céus, minha existência não se perdeu.”
Ora, é
impossível não ver nisto uma forma de amor... Não o amor que Camões declamava
com fogo e tempestade, mas um amor mais resignado, mais prático - um amor com
Wi-Fi e acesso a bancos de dados nas nuvens.
Talvez, se
Romeu vivesse em nosso tempo, não morreria por Julieta, mas por não conseguir
desbloquear seu telefone no funeral dela. Que imagem tétrica, não?
Até mesmo a
metafísica não se abstém desse fenômeno. Quando Platão falou das sombras na
caverna, não previa que os homens trocariam as sombras pelas notificações das
redes sociais e dos sites de troca de mensagens.
Vivemos hoje
no interior de uma tela, onde o real é aquilo que pode ser fotografado,
compartilhado e comentado. O que não cabe num “story” não merece nossa
lembrança.
E a subjetividade?
Essa, por sua vez, tornou-se um algoritmo. “Quem sou eu?”, pergunta o homem
moderno. E o celular responde: você é aquele que gosta de vídeos de gatos,
culinária mineira e teorias da conspiração em formato de podcast.
A identidade,
antes mistério profundo, agora se resume a um histórico de busca e uma galeria
de selfies em ângulos cada vez mais audaciosos.
Não nego os
avanços. O aparelho é útil, sem dúvida. Tão útil quanto a roda, o fogo e o
caderno de fiado que sobrevive em alguns rincões de pureza por esse mundão
afora. Mas entre utilidade e tirania há uma linha tênue - e hoje parece que foi
deletada, como uma mensagem inconveniente:
Somos
escravos sorridentes, com polegares ágeis e olhos fatigados. Dormimos com o
celular ao lado, como um amante que não ronca, mas vibra e precisa
constantemente recarregar sua bateria para continuar atuando no palco da vida...
Machado,
Pessoa ou até mesmo Nietzsche - perdoe-me, leitor, os nomes são inevitáveis – cada
qual a seu modo - diziam que há mais metafísica num beijo que em todos os
tratados de Kant.
Pois bem,
hoje há mais filosofia numa notificação do banco: “Seu saldo é insuficiente.” que
num momento de pura reflexão existencial...
Se ao menos
esse retângulo mágico que chamamos celular, smartphone, telemóvel, ou o que
seja, nos ensinasse a olhar mais e não apenas a ver, talvez, um dia, cansados
de tanto toque sem contato, de tanta conexão sem laço, redescubramos o espanto
de um olhar humano, sem tela no meio.
E nesse dia,
quem sabe, a humanidade fará uma selfie com sua própria alma - sem filtros...
Edson
Pinto
Junho’
2025
Um comentário:
Pura realidade. É preciso nos policiarmos para não ficarmos refens do precioso!
👏👏👏👏
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