22 de ago. de 2025

341) DALÍ EM TRÊS CORAÇÕES



Dizem que ele veio fugido do tempo.

Salvador Dalí, com seu bigode apontando para outros planetas e uma bengala dourada batendo ritmadamente no chão, desembarcou em Três Corações com a certeza de que ali havia algo que nem o surrealismo ousava imaginar.

Era 1948, de fato, mas para Dalí podia ser também 1936 ou 1954, quem sabe? O tempo, para Dalí, sempre foi uma gelatina.

A realidade é que, ao pisar na simpática cidade do sul de Minas, onde, por coincidência, atualmente gozo do meu refúgio alternativo, sentiu, Dalí,  algo vibrando.

E não era trem. Era destino...

Caminhava pela praça central como quem flutua, olhando para o céu com os olhos arregalados e exclamando:

— ¡Esto no es Brasil, esto es un sueño tropical de Gaia!

Foi quando viu um menino sentado na calçada controlando com pés hábeis uma bola surrada. Ria sozinho. Joelhos ralados e os olhos acesos.

— ¿Cómo te llamas, niño?, perguntou Dalí com voz de quem interroga o cosmos.

— Edson, mas me chamam de Dico.

Dalí se agachou.

Olhou nos olhos do menino e viu ali um universo em gestação: pernas de bailarina, instinto de raio, olhar de rei.

— Tú no eres niño. Eres movimiento puro. Eres el delirio de un relógio em forma de esfera.

O menino riu, sem entender. Mas gostou do sujeito.

Dalí então pegou do bolso um pequeno caderno de anotações. Rasgou uma folha. Nela desenhou um relógio derretendo sobre uma trave. E escreveu:

“O tempo vai tentar te deter. Mas você não joga com o tempo. Você joga com a eternidade.”

Dobrou o papel, entregou ao garoto e disse:

— Guarde isso. Um dia você entenderá. Quando o mundo inteiro te chamar de rei.

O menino apenas respondeu com um sorriso tímido, como quem ainda não sabe que vai ser imortal.

Dalí, então se despediu da cidade subindo numa carroça puxada por um burro de um olho só.  Disse que precisava ir antes que a realidade o alcançasse.

E desapareceu...

Anos depois, um certo Pelé, ao marcar seu milésimo gol, disse num sussurro que poucos ouviram:

— Isso aqui... parece sonho.

E talvez fosse.

 Edson Pinto

Agosto, 2025

 

Nota do autor

Salvador Dalí (1904–1989) foi um pintor, escultor e pensador catalão, um dos maiores expoentes do surrealismo. Com obras oníricas, provocativas e repletas de símbolos, como os relógios derretidos de A Persistência da Memória, explorou o inconsciente, a identidade e o tempo com irreverência e genialidade.

Pelé, Edson Arantes do Nascimento, (1940–2022), nascido em Três Corações, é considerado o maior jogador de futebol de todos os tempos. Combinando arte, técnica e intuição, encantou o mundo com seus gols e sua simplicidade. Recebeu o título de Rei do Futebol e permanece símbolo universal de beleza no esporte.


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