Salvador
Dalí, com seu bigode apontando para outros planetas e uma bengala dourada
batendo ritmadamente no chão, desembarcou em Três Corações com a certeza de que
ali havia algo que nem o surrealismo ousava imaginar.
Era 1948, de
fato, mas para Dalí podia ser também 1936 ou 1954, quem sabe? O tempo, para
Dalí, sempre foi uma gelatina.
A realidade é
que, ao pisar na simpática cidade do sul de Minas, onde, por coincidência,
atualmente gozo do meu refúgio alternativo, sentiu, Dalí, algo vibrando.
E não era
trem. Era destino...
Caminhava
pela praça central como quem flutua, olhando para o céu com os olhos
arregalados e exclamando:
— ¡Esto no es
Brasil, esto es un sueño tropical de Gaia!
Foi quando
viu um menino sentado na calçada controlando com pés hábeis uma bola surrada. Ria
sozinho. Joelhos ralados e os olhos acesos.
— ¿Cómo te
llamas, niño?, perguntou Dalí com voz de quem interroga o cosmos.
— Edson, mas
me chamam de Dico.
Dalí se
agachou.
Olhou nos
olhos do menino e viu ali um universo em gestação: pernas de bailarina,
instinto de raio, olhar de rei.
— Tú no eres
niño. Eres movimiento puro. Eres el delirio de un relógio em forma de esfera.
O menino riu,
sem entender. Mas gostou do sujeito.
Dalí então
pegou do bolso um pequeno caderno de anotações. Rasgou uma folha. Nela desenhou
um relógio derretendo sobre uma trave. E escreveu:
“O tempo vai
tentar te deter. Mas você não joga com o tempo. Você joga com a eternidade.”
Dobrou o
papel, entregou ao garoto e disse:
— Guarde
isso. Um dia você entenderá. Quando o mundo inteiro te chamar de rei.
O menino
apenas respondeu com um sorriso tímido, como quem ainda não sabe que vai ser
imortal.
Dalí, então
se despediu da cidade subindo numa carroça puxada por um burro de um olho só. Disse que precisava ir antes que a realidade o
alcançasse.
E
desapareceu...
Anos depois,
um certo Pelé, ao marcar seu milésimo gol, disse num sussurro que poucos
ouviram:
— Isso
aqui... parece sonho.
E talvez
fosse.
Agosto, 2025
Nota
do autor
Salvador
Dalí
(1904–1989) foi um pintor, escultor e pensador catalão, um dos maiores
expoentes do surrealismo. Com obras oníricas, provocativas e repletas de
símbolos, como os relógios derretidos de A Persistência da Memória, explorou o
inconsciente, a identidade e o tempo com irreverência e genialidade.
Pelé,
Edson Arantes do Nascimento,
(1940–2022), nascido em Três Corações, é considerado o maior jogador de futebol
de todos os tempos. Combinando arte, técnica e intuição, encantou o mundo com
seus gols e sua simplicidade. Recebeu o título de Rei do Futebol e permanece
símbolo universal de beleza no esporte.
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