Por nada neste mundo dona Florinda abriria mão de sua soneca vespertina. Era sagrado: Após o almoço, acomodava-se em seu quarto e só se dava por satisfeita lá pelas quatro quando o aroma de café recém-coado vinha da cozinha. Aos oitenta e pico vivia tranquila, boa saúde, filhos e netos criados. Seu Amoroso já tinha partido há algum tempo, mas deixou-lhe a vida bem estruturada. Morava perto de filhos e netos, mas sempre sozinha, pois não abria mão de continuar dando as cartas no que considerava ser o seu território inexpugnável, a casa em que morava.
Sozinha, em termos, pois tinha a presença de Joselina, a empregada de confiança. Era Joselina quem fazia o almoço, arrumava a casa e paparicava dona Florinda a não mais poder. Entendiam-se perfeitamente. E na falta de interlocutores outros, era entre si que trocavam pontos de vista sobre o cotidiano, sobre as picuinhas da política, o tempo seco, o tempo chuvoso, o nível do rio que não parava de subir ou baixar, a vida... A sesta de dona Florinda era, no entanto, como um rito sagrado a ser respeitado acima de quaisquer outros compromissos.
Mas, aí apareceu o julgamento do Mensalão. Dona Florinda, sempre antenada nas coisas do mundo, não demorou a perceber que a sesta sagrada lhe roubava aquele grandioso prazer de assistir o melhor programa que já vira na TV. Nem os três volumes de “Os Miseráveis”, de Victor Hugo, que já tinha a leitura por finalizar não lhe traziam tantas emoções. Para surpresa, numa rara decisão que contraria a arraigada mania dos seres provectos de não mudar seus hábitos, ela decide sacrificar, nas terças, quartas e quintas, a sua soneca vespertina. Não tem preço assistir a um entrevero entre Joaquim Barbosa e Ricardo Lewandowski, assentiu dona Florinda.
E, lá pelas 14 horas, já está em frente à TV, impaciente, porém feliz, aguardando o inicio de mais uma sessão do Supremo. Com a mente ágil que tem, não só se apega ao mérito dos debates como ainda observa, condoída, o balé do relator para mitigar a sua permanente lombalgia. Coitado! Como um homem desses, com tal incômodo físico, tão dedicado ao ofício, e tendo produzido um relatório tão bem fundado e demolidor contra a camarilha dos 38, não pode, às vezes se exasperar com os flácidos contra-argumentos do revisor? Desabafa com Joselina.
Joselina, por sua vez, sempre às espreitas, também cismou de acompanhar o Mensalão. E não é que se aguçou, igualmente, em tirar o máximo de proveito do montão de novidades que se lhe apresentavam. Não foram necessárias mais do que cinco sessões do Supremo para que Joselina substituísse o familiar “dona Florinda” por algo ainda mais politicamente correto: “Vossa Excelência”, para se dirigir à estimada patroa.
Um dia desses, para discordar da forma como dona Florinda a repreendera por não lograr a correta preparação de uma substanciosa salada para o almoço, a que, pejorativamente, a patroa chamara de “Saladão”, usou um solene “data venia”. Quando dona Florinda (coisa de velho, é claro) voltou a insistir na queixa, Joselina saiu-se com o defensivo argumento de que dona Florinda, estava incorrendo em um evidente “bis in idem”.
Por fim, instada a falar menos e a fazer mais, numa clássica advertência de que quem mandava na casa era dona Florinda, Joselina recorreu ao seu sagrado “direito ao contraditório e da ampla defesa” e insinuou que estava sendo vitima de perseguição política. Tentou, no limite, argumentar que o “Saladão” nunca existira e que o problema do almoço mal preparado não passava de verduras “não contabilizadas”, isto é, não agregadas a ela.
Foi lá pela vigésima sessão do Supremo quando Joselina apareceu com uma capinha preta sobre os ombros é que dona Florinda percebeu que as coisas não andavam bem. Joselina estava mais para Ricardo Lewandowski, para Dias Toffoli e para Márcio Thomaz Bastos, enquanto ela, Florinda, continuava se condoendo com a cervical de Joaquim Barbosa. Decidiu, então, desligar a TV, retornar às antigas sestas diárias e se informar sobre o julgamento somente nos jornais noturnos quando Joselina já tivesse se recolhido.
Afinal, não há quem agüenta um desfecho tão longo para uma punição tão clara, tão necessária e mais do que previsível, mesmo que joselinas achem que o Direito pode ser entortado fazendo-se do mal o bem...
Edson Pinto
Outubro’ 2012
Um comentário:
De: Edson Pinto
Para: Amigos
Caros amigos:
Dona Florinda até que tentou fazer do julgamento do Mensalão o seu momento diário de lazer. Mas, Joselina, sua empregada, andou metendo os pés pelas mãos...
Veja no que deu lendo o meu conto/crônica desta semana, EXCELÊNCIA.
Bom final de semana a todos!
Edson Pinto
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