26 de set. de 2025

346) EÇA DE QUEIROZ EM MONTES CLAROS


Diz-se que o trem noturno que cruzou o sertão mineiro naquela quinta-feira parou por engano em Montes Claros (ou seria Teumira?).

Mas quem o viu descer juraria que não havia engano algum: o cavalheiro de bigodes impecáveis, bengala aristocrática e olhar entre o cético e o lírico parecia saber exatamente onde estava. Era Eça de Queiroz.

Sim, o próprio, com sua elegância do século XIX e sua alma do futuro. Vinha de um longo e metafísico passeio por serras portuguesas, e agora, movido por um boato de montanha, buscava as Serras de Minas. Mais precisamente, queria encontrar Cyro dos Anjos.

— Ouvi dizer que ele vive em meio a arquivos, cafés e melancolias, confidenciou Eça à dona da pensão onde se hospedou. Dizem que escreve com a alma de quem arquiva sonhos.

Foi fácil encontrar o endereço: cartório, segundo andar, porta com rangido filosófico. Cyro o recebeu como quem recebe um irmão de outras páginas.

— Senhor Queiroz! Aqui? Em Montes Claros?

— Vim atrás do senhor. Dizem que só os mineiros sabem o que fazer com o silêncio.

Conversaram por horas. Eça queria saber de Minas: do tédio burocrático, dos cafés vespertinos, das mulheres que prometem pouco mas deixam muito. Cyro, por sua vez, queria entender Portugal: como se escreve com tanta ironia sem perder a doçura?

Num dado momento, os dois mudaram de tom.

Eça falou de Jacinto, o homem civilizado que reencontrou a alma entre as serras portuguesas. Cyro respondeu com Belmiro, o homem desacreditado que sonhava à beira da rotina mineira. E assim, sem que percebessem, Eça foi virando Jacinto, e Cyro, Belmiro. As palavras passaram a vir carregadas de personagens.

— Então o senhor acredita que a civilização nos roubou a simplicidade?, perguntou Cyro.

— Creio que a civilização nos ensinou a saudade do que nunca deveríamos ter perdido, respondeu Eça.

Subiram juntos até o Alto do Cruzeiro. Olharam a cidade embaçada pelo crepúsculo. O sino da matriz dobrou sem urgência.

— Minas é um espelho opaco de Tormes, disse Eça, com um sorriso discreto. Aqui, também se pode voltar a ser humano.

No dia seguinte, Eça partiu. Deixou com Cyro um exemplar amarelado de A Cidade e as Serras, com uma dedicatória que dizia: Ao cronista das serras brasileiras, com admiração fraterna de quem também se perdeu para se encontrar.

Cyro, por sua vez, anotou no seu diário:

“Recebi hoje a visita de um português desiludido e encantado. Conversamos como se fôssemos personagens um do outro. E, por algumas horas, Minas foi Lisboa, e Elmira, Tormes.”

Edson Pinto

Setembro, 2025

 

Nota do autor:

Eça de Queiroz (1845–1900), escritor português, é um dos maiores nomes do realismo em língua portuguesa. Autor de obras como Os Maias, O Primo Basílio e A Cidade e as Serras, combinou crítica social, ironia refinada e lirismo na construção de uma literatura elegante e penetrante.

Cyro dos Anjos (1906–1994), natural de Montes Claros, MG, destacou-se como romancista, cronista e memorialista. Seu livro O Amanuense Belmiro é considerado um marco da literatura mineira, com sua prosa introspectiva, filosófica e profundamente humana.

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