Diz-se
que o trem noturno que cruzou o sertão mineiro naquela quinta-feira parou por
engano em Montes Claros (ou seria Teumira?).
Mas
quem o viu descer juraria que não havia engano algum: o cavalheiro de bigodes
impecáveis, bengala aristocrática e olhar entre o cético e o lírico parecia
saber exatamente onde estava. Era Eça de Queiroz.
Sim,
o próprio, com sua elegância do século XIX e sua alma do futuro. Vinha de um
longo e metafísico passeio por serras portuguesas, e agora, movido por um boato
de montanha, buscava as Serras de Minas. Mais precisamente, queria encontrar
Cyro dos Anjos.
—
Ouvi dizer que ele vive em meio a arquivos, cafés e melancolias, confidenciou
Eça à dona da pensão onde se hospedou. Dizem que escreve com a alma de quem
arquiva sonhos.
Foi
fácil encontrar o endereço: cartório, segundo andar, porta com rangido
filosófico. Cyro o recebeu como quem recebe um irmão de outras páginas.
—
Senhor Queiroz! Aqui? Em Montes Claros?
—
Vim atrás do senhor. Dizem que só os mineiros sabem o que fazer com o silêncio.
Conversaram
por horas. Eça queria saber de Minas: do tédio burocrático, dos cafés
vespertinos, das mulheres que prometem pouco mas deixam muito. Cyro, por sua
vez, queria entender Portugal: como se escreve com tanta ironia sem perder a
doçura?
Num
dado momento, os dois mudaram de tom.
Eça
falou de Jacinto, o homem civilizado que reencontrou a alma entre as serras
portuguesas. Cyro respondeu com Belmiro, o homem desacreditado que sonhava à
beira da rotina mineira. E assim, sem que percebessem, Eça foi virando Jacinto,
e Cyro, Belmiro. As palavras passaram a vir carregadas de personagens.
—
Então o senhor acredita que a civilização nos roubou a simplicidade?, perguntou
Cyro.
—
Creio que a civilização nos ensinou a saudade do que nunca deveríamos ter
perdido, respondeu Eça.
Subiram
juntos até o Alto do Cruzeiro. Olharam a cidade embaçada pelo crepúsculo. O
sino da matriz dobrou sem urgência.
—
Minas é um espelho opaco de Tormes, disse Eça, com um sorriso discreto. Aqui,
também se pode voltar a ser humano.
No
dia seguinte, Eça partiu. Deixou com Cyro um exemplar amarelado de A Cidade e
as Serras, com uma dedicatória que dizia: Ao cronista das serras brasileiras,
com admiração fraterna de quem também se perdeu para se encontrar.
Cyro,
por sua vez, anotou no seu diário:
“Recebi
hoje a visita de um português desiludido e encantado. Conversamos como se
fôssemos personagens um do outro. E, por algumas horas, Minas foi Lisboa, e Elmira,
Tormes.”
Edson Pinto
Setembro,
2025
Nota do autor:
Eça de Queiroz (1845–1900), escritor português, é um dos maiores nomes
do realismo em língua portuguesa. Autor de obras como Os Maias, O Primo Basílio
e A Cidade e as Serras, combinou crítica social, ironia refinada e lirismo na
construção de uma literatura elegante e penetrante.
Cyro dos Anjos (1906–1994), natural de Montes Claros, MG, destacou-se
como romancista, cronista e memorialista. Seu livro O Amanuense Belmiro é
considerado um marco da literatura mineira, com sua prosa introspectiva,
filosófica e profundamente humana.
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