3 de out. de 2025

347) LOUIS PASTEUR EM OLIVEIRA

Em Minas, costuma-se dizer que tudo se resume à arte: o barro de Congonhas, a poesia de Drummond, as curvas de Niemeyer, o bordado das rezas nas procissões. Mas há que se corrigir o equívoco: mineiro não vive só de música, pintura ou escultura. Há também a ciência, essa arte sem moldura, invisível e muitas vezes ingrata.

E se a França ostenta um Pasteur, Minas guarda um Chagas, que não compôs sonata nem pintou paisagem, mas arrancou do escuro dos sertões um mal que dormia nas frestas das casas de pau-a-pique.

Foi numa tarde imaginária, como convém às boas histórias, que um estrangeiro de barbas célebres apareceu na praça de Oliveira. O sino da matriz repicava, os meninos corriam atrás de pião, e Carlos, ainda moço, observava um barbeiro dentro de uma caixinha de vidro, como quem vigia um segredo prestes a escapar.

— Meu rapaz, disse o francês, ajeitando a gravata que parecia deslocada na poeira mineira

— Também procura nos seres minúsculos as tragédias dos homens?

Chagas ergueu os olhos, com aquele ar meio sério, meio desconfiado que é próprio da montanha:

— Procuro, sim.

__ Dentro desse inseto feio, que o povo nem sempre nota, mora um inimigo invisível, prosseguiu Chagas. Descobri que ele carrega um protozoário, o Trypanosoma cruzi, capaz de transformar a infância em cansaço e o coração em peso. Observei os bichos de laboratório, vi as febres, comparei com as crianças das vilas. O ciclo está todo aqui: o inseto, o parasita, o homem e a doença.

Pasteur arqueou as sobrancelhas, como quem vê a si mesmo num espelho distante:

— Admirável! Eu precisei de anos e muitos ajudantes. O senhor, jovem e sozinho, fez uma sinfonia completa, regendo micróbios, insetos e sintomas como quem rege uma orquestra invisível.

Chagas baixou os olhos para o caderno:

— Mas a música que procuro não é de glória, é de utilidade. Quero que o menino que dorme em casa de barro acorde vivo e corra atrás de pião.

O sino repicou de novo, como para confirmar o contrato.

E o francês, já quase se desmanchando no ar, deixou-lhe um conselho que parecia mais uma bênção:

— A ciência, meu caro, não é propriedade, é herança. Não se guarda em cofre, distribui-se como pão. E o que descobriu aqui, neste canto de Minas, ecoará nos quatro cantos do mundo.

Dito isso, desapareceu. Ficou Carlos com seu caderno, a caixinha de vidro e a convicção de que também se escreve ciência em Minas. E que, às vezes, uma praça barroca pode ser tão universal quanto um laboratório de Paris.

 Edson Pinto

Outubro, 2025


Nota do Autor

Louis Pasteur (1822–1895) foi um cientista francês que revolucionou a medicina e a microbiologia. Descobriu os microrganismos responsáveis pela fermentação, desenvolveu vacinas contra a raiva e o antraz e inaugurou a era da higiene científica. Sua obra fez do invisível uma questão de saúde pública.

Carlos Chagas (1879–1934), médico e cientista mineiro, foi o único na história da medicina a descrever integralmente uma nova doença: identificou o parasita (Trypanosoma cruzi), o inseto transmissor (barbeiro), os sintomas clínicos e sua relação com a realidade social. Seu trabalho, feito quase solitariamente, uniu ciência e compaixão, inscrevendo Minas não apenas no mapa da arte, mas também no da ciência mundial.


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