Em Minas, costuma-se dizer que tudo se resume à arte: o barro de Congonhas, a poesia de Drummond, as curvas de Niemeyer, o bordado das rezas nas procissões. Mas há que se corrigir o equívoco: mineiro não vive só de música, pintura ou escultura. Há também a ciência, essa arte sem moldura, invisível e muitas vezes ingrata.
E
se a França ostenta um Pasteur, Minas guarda um Chagas, que não compôs sonata
nem pintou paisagem, mas arrancou do escuro dos sertões um mal que dormia nas
frestas das casas de pau-a-pique.
Foi
numa tarde imaginária, como convém às boas histórias, que um estrangeiro de
barbas célebres apareceu na praça de Oliveira. O sino da matriz repicava, os
meninos corriam atrás de pião, e Carlos, ainda moço, observava um barbeiro
dentro de uma caixinha de vidro, como quem vigia um segredo prestes a escapar.
—
Meu rapaz, disse o francês, ajeitando a gravata que parecia deslocada na poeira
mineira
—
Também procura nos seres minúsculos as tragédias dos homens?
Chagas
ergueu os olhos, com aquele ar meio sério, meio desconfiado que é próprio da
montanha:
—
Procuro, sim.
__
Dentro desse inseto feio, que o povo nem sempre nota, mora um inimigo invisível,
prosseguiu Chagas. Descobri que ele carrega um protozoário, o Trypanosoma
cruzi, capaz de transformar a infância em cansaço e o coração em peso. Observei
os bichos de laboratório, vi as febres, comparei com as crianças das vilas. O
ciclo está todo aqui: o inseto, o parasita, o homem e a doença.
Pasteur
arqueou as sobrancelhas, como quem vê a si mesmo num espelho distante:
—
Admirável! Eu precisei de anos e muitos ajudantes. O senhor, jovem e sozinho,
fez uma sinfonia completa, regendo micróbios, insetos e sintomas como quem rege
uma orquestra invisível.
Chagas
baixou os olhos para o caderno:
—
Mas a música que procuro não é de glória, é de utilidade. Quero que o menino
que dorme em casa de barro acorde vivo e corra atrás de pião.
O
sino repicou de novo, como para confirmar o contrato.
E
o francês, já quase se desmanchando no ar, deixou-lhe um conselho que parecia
mais uma bênção:
—
A ciência, meu caro, não é propriedade, é herança. Não se guarda em cofre,
distribui-se como pão. E o que descobriu aqui, neste canto de Minas, ecoará nos
quatro cantos do mundo.
Dito
isso, desapareceu. Ficou Carlos com seu caderno, a caixinha de vidro e a
convicção de que também se escreve ciência em Minas. E que, às vezes, uma praça
barroca pode ser tão universal quanto um laboratório de Paris.
Outubro, 2025
Nota do Autor
Louis Pasteur (1822–1895) foi um cientista francês
que revolucionou a medicina e a microbiologia. Descobriu os microrganismos
responsáveis pela fermentação, desenvolveu vacinas contra a raiva e o antraz e
inaugurou a era da higiene científica. Sua obra fez do invisível uma questão de
saúde pública.
Carlos Chagas (1879–1934), médico e cientista
mineiro, foi o único na história da medicina a descrever integralmente uma nova
doença: identificou o parasita (Trypanosoma cruzi), o inseto transmissor
(barbeiro), os sintomas clínicos e sua relação com a realidade social. Seu
trabalho, feito quase solitariamente, uniu ciência e compaixão, inscrevendo
Minas não apenas no mapa da arte, mas também no da ciência mundial.
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