Sabe aqueles momentos raros em
que a partir de uma observação despretensiosa nos surge repentinamente a solução
de um enigma que há muito nos atormentava?
A Igreja considera isso como
sendo uma manifestação divina, espontânea e a denomina de “epifania”. As ciências
também se ocupam desse mesmo fenômeno em que descobertas importantes são frutos
do acaso e não de uma busca metodológica da solução e chamam-na de “serendipitia”,
anglicismo cuja origem está no conto infantil de Horace Walpole, de 1754, “Os
três príncipes de Serendipe”. No famoso conto, os três príncipes viviam a fazer
descobertas inesperadas para
problemas que sequer os atormentavam naqueles específicos instantes da
descoberta. A propósito, Serendipe era o nome do antigo Ceilão, hoje Sri Lanka.
No campo ainda das ciências sociais, o fenômeno da serendipitia é
estimulado como forma de criatividade. Uma pessoa criativa, creiam, está sempre
extraindo das observações que faz de tudo e de todos ideias sobre como resolver
problemas de que nem mesmo se ocupam. Existe uma expressão popular que se
encaixa à perfeição nesse tema da serendipitia, ou da epifania, ou mesmo da
criatividade. Quando se diz, “a ficha caiu”, isto quer dizer que uma percepção
clara sobre alguma situação nebulosa se fez presente, trazendo-nos, como
consequência, um esclarecimento ou uma solução para um determinado problema até
então insolúvel.
E a minha ficha caiu exatamente no momento em que lia toda essa montanha de
notícias e análises que nos chegam sobre o novo papa Francisco. Todo o mundo
está admirado com a simplicidade austera que lhe suporta o nome. Pode ter vindo
tanto de Francisco Xavier, co-fundador da Companhia de Jesus, no século XVI, como
de Francisco de Assis, fundador da Ordem Mendicante dos Frades Menores, no
século XIII. A expressão “simplicidade franciscana” vem exatamente da
associação que se faz a esses dois santos nomes.
O novo papa recusou o uso do automóvel oficial e preferiu seguir de ônibus
com todos os outros cardeais para se deslocar durante um evento no Vaticano.
Foi até o hotel onde se hospedara ainda como cardeal e sozinho, humilde e
humanamente, fechou a conta mesmo já tendo todo o aparato de sumo pontífice à
sua disposição. Dizem que prepara ele mesmo suas próprias refeições e trata a
todos, ricos ou pobres, chefes ou subalternos, de forma igual.
Há quase dez anos, meu seleto círculo de amigos se vê confrontado com um
episódio enigmático que se passou na vida do querido Ataíde. Explico: Era seu
aniversário e a esposa Vânia preparou-lhe um agradável encontro de amigos em
sua casa com direito a um animado “parabéns a você”, sopro de dezenas de
velinhas e o tradicional corte, pelo aniversariante, do bolo. A festa era só
alegria...
O enigma surge quando Ataíde, ao cortar o primeiro pedaço do bolo e contrariando
a tradição de ofertá-lo à esposa, obviamente, por méritos dela e acima de tudo pelo
imenso amor que sabemos, há décadas, lhes unem de forma sólida,
displicentemente entrega-o à sua empregada que naquele infeliz momento aparecera
para adicionar alguns talheres na mesa.
Nem é preciso dizer que a perplexidade tomou conta de todos, não apenas naquele
exato momento de absoluta discplicência e descontração do Ataíde, mas sempre e a
cada encontro da turma nos dez anos posteriores. Certas passagens da vida, feliz
ou infelizmente, dependendo de sua natureza, são como aquela mensagem da propaganda
de que o primeiro sutiã nunca se esquece. Esta, com toda a certeza, o Ataíde
não verá esquecida jamais.
O grande desafio que pairava ainda na cabeça de todos os seus amigos era
conseguir entender porque aquilo acontecera e daquela forma. Afortunadamente,
para ele, a Vânia, ao contrário de se aborrecer, não só faz disso uma pilhéria
gostosa como aproveita o caso para sempre nos divertir quando os encontros
começam a ficar um tanto mornos. É só lembrar do assunto e lá vem a patuscada
de novo à tona. Ataíde já nem mais se avermelha com o recall da sua gafe histórica,
pelo contrário, sabe como ninguém acrescentar-lhe alguns elementos novos que
tornam o caso cada vez mais delicioso.
A solução definitiva do enigma, contudo, ninguém lograra ainda encontrar,
mesmo porque, nunca se soube, ou ninguém nunca especulou, mesmo que de forma shakespeariana,
se por detrás do gesto do bom mineiro Ataíde haveria mais coisas do que
pudessem supor nossas vãs filosofias . Por outro lado, a manutenção da dúvida, de
forma assim perene, até que enriquece o folclore de nossas amizades.
Mas, meus amigos, infelizmente, e da forma a que me refiro no início deste
texto, lamento ter de lhes revelar que acabo de desvendar o enigma. Sei que, de
agora em diante, ele perderá a graça e talvez ganhe apenas escassos recalls em
nossos encontros. Corre até mesmo o risco de ser definitivamente esquecido:
Acabo de descobrir que Ataide é dotado da mesma simplicidade franciscana do
novo papa e dos Franciscos que o antecederam. Se o papa faz a sua própria
comida, anda de ônibus, paga ele mesmo a conta do hotel e beija os pobres,
Ataíde, com o seu gesto magnânimo de priorizar a empregada na entrega do bolo
de seu aniversário, demonstrou-se igualmente dotado da mesma franciscanidade
das nobres figuras.
Assim, tirem por favor de suas cabeças maldosas todas as conjeturas lascivas
que puderam conceber nestes últimos dez anos em que tripudiaram sobre o
generoso Ataíde, pois saibam que ele, para orgulho de todos os seus amigos, é o
mais puro dos franciscanos.
Edson Pinto
Março’ 2013
3 comentários:
De: Edson Pinto
Para: Amigos
Caros amigos:
Nas últimas semanas, escrevi sobre o papa Francisco e suas admiráveis simplicidade e humildade.
Agora, mudei de assunto, mas mesmo assim não me descolei inteiramente da análise desse modo franciscano que se aplica tanto ao papa como a certas pessoas do nosso relacionamento.
Escrevi, então, HUMILDADE APLICADA para analisar um caso real de um amigo bem próximo e querido.
Abraço a todos!
Edson Pinto
De: Ataide Lopes
Para: Edson Pinto
Meu querido amigo Edson,
Só hoje pude ler o seu blog.
Nos primeiros parágrafos eu já estava querendo lhe remeter um email dizendo-lhe que a gente sempre se acultura mais quando lê as suas crônicas.
Esse tal de "SERENDIPITIA" (que confesso, humildemente, não sabia de que se tratava) com a relação cristã de uma EPIFANIA e a boa tradução para o "a ficha caiu" demonstra a sua forma culta de tornar as coisas, para nós mortais, mais fáceis.
Aí fui lendo, lendo, lendo e me deparei com a forma espetacular que tratou o CASO DO BOLO DA EMPREGADA. Ficou ótimo, ótimo mesmo.
Mas, descobri (com uma falsa modéstia) que eu posso ser mesmo um candidato a Papa !!!!!! ou no mínimo substituir o D. Odilo (que amarelou na reta final).
Vou continuar tentando......
abraços e obrigado pela linda cronica.
Ataíde
De: Vânia Byrro
Para: Edson Pinto
Edson ,
LI a sua crônica , cuja primeira parte foi muito instrutiva, mas na segunda parte a cumplicidade masculina está latente...
Agora estou temerosa de que o Ataíde comece a distribuir bolos a todos, e resolva criar como nosso governo o programa "BOLO PARA TODOS"...
Veja só que "monstro" você pode ter criado...
Um grande abraço a você e Jane e mais uma vez parabéns pelas suas tão deliciosas crônicas,
VÂNIA
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