No finalzinho dos anos 50, minha
família havia se mudado para um bairro novo em Belo Horizonte. Era um conjunto
de casas quase todas iguaiszinhas construídas pelo governo Juscelino Kubitschek
que, cumprindo uma promessa política, facilitou um pouco a dura vida dos
ex-pracinhas da Segunda Guerra Mundial. Meu pai era um deles.
Como a maioria dos nossos pais
havia se casado no pós-guerra, aquela nova comunidade apresentava uma característica
muito peculiar: As proles eram fartas e regulavam a mesma faixa etária. Não sabia
se isso se devia ao espírito obviamente guerreiro daqueles homens que lutaram
na Itália com a famosa Força Expedicionária Brasileira, FEB; se era a característica
geral das famílias da época, todas grandes; talvez a versão tupiniquim do “Baby boom”
americano, que levou à explosão populacional findo o grande conflito mundial, ou
mesmo se ali concentravam os ex-combatentes brasileiros que tinham muitos
filhos, pois os que se comportaram com mais cautela não precisavam de uma casa financiada em condições especiais pelo governo. Hoje, distante da época, me satisfaço com a
ideia de que o fato deveu-se um pouco a cada uma das razões que enumerei.
No inicio, os pré-adolescentes
formavam a maioria e é dessa turma que me interessa falar. Éramos muitos. As
casas foram entregues só com uma cerca de postinhos brancos e arame liso separando
uma das outras. Igualzinho se vê naqueles filmes americanos em que os quintais
se encontram e vizinhos se controlam uns aos outros. Assim, passávamos de uma
casa a outra sem a necessidade de respeito à convenção de que se deve entrar
pela porta da frente. Inesperadamente algum amigo chegava à cozinha de casa e
adentrava como se fosse a sua. As famílias foram naturalmente criando laços de
amizades muito estreitos, e os filhos – numerosos como já disse – ditavam o ritmo
das casas, dos eventos, enfim da vida. E não podia ser diferente.
Com o rápido e inexorável passar
do tempo transmutamo-nos à adolescência e quando nos assustamos já éramos
adultos cada um cuidando da sua vida aos moldes que as opções individuais nos tinham
conduzido. Fomos estudando, namorando, casando e muitos mudando de bairro, de
cidade ou mesmo, para nossa tristeza, alguns até mesmo de mundo. Hoje as
lembranças são apenas referencias do que foi essa importante fase de nossas
vidas. Vez por outra me lembro de algumas passagens pitorescas daqueles tempos.
As mais singelas, parece-me, agora que são passados tantos anos, as que mais graça
têm. Vão aqui dois episódios daquele
tempo de menino:
O Senhor Jair era um ex-combatente
da Infantaria e agia como tal: Gostava de combater a pé, conquistar e manter o
terreno. Era destemido. Houve uma época em que o sistema de fornecimento d’água
do nosso conjunto residencial começou a falhar. Diziam que o reservatório
construído na parte alta do bairro e que, por gravidade, alimentava as casas de
toda a região, e não exclusivamente as nossas, não conseguia mais atender à crescente
demanda de uma cidade que não parava de se agigantar. A empresa pública responsável
pela distribuição vivia fazendo manobras para ora atender certas regiões, ora
atender outras. O fato concreto era que vivíamos em constante escassez até o
dia em que o senhor Jair, pai de um dos colegas, após tomar umas e outras,
resolveu fazer algo parecido com o que fizera em Collechio-Fornovo, na Itália, quando
a FEB logrou dominar a famosa 148ª Divisão Panzer e aprisionar, de uma só vez, cerca
de 20 mil soldados alemães. Possuído pela canjebrina, como estava, encaixou
algumas folhas de plantas por partes de seu corpo como se fosse uma camuflagem,
ajeitou um capacete militar na cabeça, empunhou uma borduna e subiu a rua aos brados:
Sigam-me os que forem brasileiros! Vamos tomar a caixa d’água! Sigam-me
companheiros!
Já devem ter concluído que os
verdadeiros companheiros de guerra, provavelmente por estarem sóbrios ou
cuidando de seus afazeres, julgaram conveniente não se enfileirarem para aquela
batalha e daquela inusitada forma, mas, para a garotada vadia, aquilo era uma
festa. Colocamo-nos todos atrás do senhor Jair e seguindo o seu comando fomos
até a caixa d’água. O funcionário que lá estava não teve alternativa senão
imediatamente pegar uma grande chave inglesa e fazer a reversão do fluxo do líquido
vital para as nossas casas. A propósito, daquela data em diante ela nunca mais
nos faltou. O senhor Jair tinha a fama de ex-combatente louco, e o funcionário
encarregado da caixa d’água, prudente que era, concluiu ser melhor não contrariá-lo.
Outra figura que habitava também aquele
pedaço era o pai de outro colega igualmente tido como um ex-pracinha
estressado. Tinha, o pai, o sugestivo apelido de “jacaré”. Penso que era porque
se comportava sempre bem quietinho até que dava um bote de surpresa. Passava a
semana, calminho, gentil, bem comportado, mas, normalmente no final da tarde dos
sábados, alguém sempre gritava na rua: “Lá vem o jacaré!” E todos, crianças e
adultos entravam rapidamente em suas casas. Jacaré tinha, como sempre fazia aos
sábados, ido até ao centro da cidade para tomar a sua dose semanal de pinga,
cerveja e sabe-se lá, mais o que. Descia do ônibus na esquina e,
invariavelmente, achava que se encontrava de novo em um campo de batalha. Assim,
sacava um “trinta oitão” e proferindo palavras de repúdio ao totalitarismo
subia a rua dando eventuais tiros para o ar. Nunca causou ferimento ou danos a
ninguém nem ao patrimônio alheio, mas que botava medo, ah, se botava... No dia
seguinte descia gentil, respeitoso com se nada houvesse acontecido.
Coisas da vida...
Edson Pinto
Agosto’ 2013
3 comentários:
De: Edson Pinto
Para: Amigos
Caros amigos (as):
O papa Francisco já voltou ao Vaticano. Ficamos todos com a melhor impressão do homem culto, objetivo e simples que é.
Marcou-nos fortemente a forma como ele se relaciona com as pessoas e a importância que a isso dá.
No Vaticano optou por morar na Casa Santa Marta, uma espécie de hotel, só para ter contato permanente com gente abrindo mão do suntuoso e isolado, apartamento pontifício. Grande lição! Deveríamos todos segui-la.
Por falar em gente, todos nós temos algo a dizer sobre episódios pretéritos em que algumas figuras foram marcantes, de certa forma, em nossas vidas, não necessariamente pelos atos importantes que praticaram, mas até mesmo pelas pequenas coisas das quais hoje podemos rir.
Por isso, nesta semana escrevo mais uma vez sobre momentos interessantes que guardo no meu relicário. Leiam, COISAS DA VIDA.
Bom final de semana a todos!
Edson Pinto
Edson,
Caiçara da nossa vida e história.
Hoje lendo seu texto a melhor definição para ele é:
- Ê Caiçara velho de guerra!
Beijos, Regina.
Este texto me faz lembrar de minha infancia vivida numa rua muito calma onde à noite os pais se sentavam à frente da casa conversando com os vizinhos e vendo seus filhos brincarem de pega-pega, pião, corda, amarelinhas e outras brincadeiras próprias das crianças daquela época.Hoje nada disso se observa e as crianças continuam anestesiadas pelas novelas. Abraços André
Postar um comentário