1 de ago. de 2013

246) COISAS DA VIDA...

No finalzinho dos anos 50, minha família havia se mudado para um bairro novo em Belo Horizonte. Era um conjunto de casas quase todas iguaiszinhas construídas pelo governo Juscelino Kubitschek que, cumprindo uma promessa política, facilitou um pouco a dura vida dos ex-pracinhas da Segunda Guerra Mundial. Meu pai era um deles.

Como a maioria dos nossos pais havia se casado no pós-guerra, aquela nova comunidade apresentava uma característica muito peculiar: As proles eram fartas e regulavam a mesma faixa etária. Não sabia se isso se devia ao espírito obviamente guerreiro daqueles homens que lutaram na Itália com a famosa Força Expedicionária Brasileira, FEB; se era a característica geral das famílias da época, todas grandes; talvez a versão tupiniquim do “Baby boom” americano, que levou à explosão populacional findo o grande conflito mundial, ou mesmo se ali concentravam os ex-combatentes brasileiros que tinham muitos filhos, pois os que se comportaram com mais cautela não precisavam de uma casa financiada em condições especiais pelo governo. Hoje, distante da época, me satisfaço com a ideia de que o fato deveu-se um pouco a cada uma das razões que enumerei.

No inicio, os pré-adolescentes formavam a maioria e é dessa turma que me interessa falar. Éramos muitos. As casas foram entregues só com uma cerca de postinhos brancos e arame liso separando uma das outras. Igualzinho se vê naqueles filmes americanos em que os quintais se encontram e vizinhos se controlam uns aos outros. Assim, passávamos de uma casa a outra sem a necessidade de respeito à convenção de que se deve entrar pela porta da frente. Inesperadamente algum amigo chegava à cozinha de casa e adentrava como se fosse a sua. As famílias foram naturalmente criando laços de amizades muito estreitos, e os filhos – numerosos como já disse – ditavam o ritmo das casas, dos eventos, enfim da vida. E não podia ser diferente.

Com o rápido e inexorável passar do tempo transmutamo-nos à adolescência e quando nos assustamos já éramos adultos cada um cuidando da sua vida aos moldes que as opções individuais nos tinham conduzido. Fomos estudando, namorando, casando e muitos mudando de bairro, de cidade ou mesmo, para nossa tristeza, alguns até mesmo de mundo. Hoje as lembranças são apenas referencias do que foi essa importante fase de nossas vidas. Vez por outra me lembro de algumas passagens pitorescas daqueles tempos. As mais singelas, parece-me, agora que são passados tantos anos, as que mais graça têm.  Vão aqui dois episódios daquele tempo de menino:

O Senhor Jair era um ex-combatente da Infantaria e agia como tal: Gostava de combater a pé, conquistar e manter o terreno. Era destemido. Houve uma época em que o sistema de fornecimento d’água do nosso conjunto residencial começou a falhar. Diziam que o reservatório construído na parte alta do bairro e que, por gravidade, alimentava as casas de toda a região, e não exclusivamente as nossas, não conseguia mais atender à crescente demanda de uma cidade que não parava de se agigantar. A empresa pública responsável pela distribuição vivia fazendo manobras para ora atender certas regiões, ora atender outras. O fato concreto era que vivíamos em constante escassez até o dia em que o senhor Jair, pai de um dos colegas, após tomar umas e outras, resolveu fazer algo parecido com o que fizera em Collechio-Fornovo, na Itália, quando a FEB logrou dominar a famosa 148ª Divisão Panzer e aprisionar, de uma só vez, cerca de 20 mil soldados alemães. Possuído pela canjebrina, como estava, encaixou algumas folhas de plantas por partes de seu corpo como se fosse uma camuflagem, ajeitou um capacete militar na cabeça, empunhou uma borduna e subiu a rua aos brados: Sigam-me os que forem brasileiros! Vamos tomar a caixa d’água! Sigam-me companheiros!

Já devem ter concluído que os verdadeiros companheiros de guerra, provavelmente por estarem sóbrios ou cuidando de seus afazeres, julgaram conveniente não se enfileirarem para aquela batalha e daquela inusitada forma, mas, para a garotada vadia, aquilo era uma festa. Colocamo-nos todos atrás do senhor Jair e seguindo o seu comando fomos até a caixa d’água. O funcionário que lá estava não teve alternativa senão imediatamente pegar uma grande chave inglesa e fazer a reversão do fluxo do líquido vital para as nossas casas. A propósito, daquela data em diante ela nunca mais nos faltou. O senhor Jair tinha a fama de ex-combatente louco, e o funcionário encarregado da caixa d’água, prudente que era, concluiu ser melhor não contrariá-lo.

Outra figura que habitava também aquele pedaço era o pai de outro colega igualmente tido como um ex-pracinha estressado. Tinha, o pai, o sugestivo apelido de “jacaré”. Penso que era porque se comportava sempre bem quietinho até que dava um bote de surpresa. Passava a semana, calminho, gentil, bem comportado, mas, normalmente no final da tarde dos sábados, alguém sempre gritava na rua: “Lá vem o jacaré!” E todos, crianças e adultos entravam rapidamente em suas casas. Jacaré tinha, como sempre fazia aos sábados, ido até ao centro da cidade para tomar a sua dose semanal de pinga, cerveja e sabe-se lá, mais o que. Descia do ônibus na esquina e, invariavelmente, achava que se encontrava de novo em um campo de batalha. Assim, sacava um “trinta oitão” e proferindo palavras de repúdio ao totalitarismo subia a rua dando eventuais tiros para o ar. Nunca causou ferimento ou danos a ninguém nem ao patrimônio alheio, mas que botava medo, ah, se botava... No dia seguinte descia gentil, respeitoso com se nada houvesse acontecido.

Coisas da vida...

Edson Pinto

Agosto’ 2013 

3 comentários:

Blog do Edson Pinto disse...

De: Edson Pinto
Para: Amigos

Caros amigos (as):

O papa Francisco já voltou ao Vaticano. Ficamos todos com a melhor impressão do homem culto, objetivo e simples que é.

Marcou-nos fortemente a forma como ele se relaciona com as pessoas e a importância que a isso dá.

No Vaticano optou por morar na Casa Santa Marta, uma espécie de hotel, só para ter contato permanente com gente abrindo mão do suntuoso e isolado, apartamento pontifício. Grande lição! Deveríamos todos segui-la.

Por falar em gente, todos nós temos algo a dizer sobre episódios pretéritos em que algumas figuras foram marcantes, de certa forma, em nossas vidas, não necessariamente pelos atos importantes que praticaram, mas até mesmo pelas pequenas coisas das quais hoje podemos rir.

Por isso, nesta semana escrevo mais uma vez sobre momentos interessantes que guardo no meu relicário. Leiam, COISAS DA VIDA.

Bom final de semana a todos!

Edson Pinto

Anônimo disse...

Edson,
Caiçara da nossa vida e história.
Hoje lendo seu texto a melhor definição para ele é:
- Ê Caiçara velho de guerra!
Beijos, Regina.

Anônimo disse...

Este texto me faz lembrar de minha infancia vivida numa rua muito calma onde à noite os pais se sentavam à frente da casa conversando com os vizinhos e vendo seus filhos brincarem de pega-pega, pião, corda, amarelinhas e outras brincadeiras próprias das crianças daquela época.Hoje nada disso se observa e as crianças continuam anestesiadas pelas novelas. Abraços André