30 de mai. de 2025

330) CARTA CRÔNICA SOBRE O BISCOITO VOADOR, OS MARIMBONDOS NÃO SOLIDÁRIOS E O TERROR DA BUROCRACIA

 

“Aqui na terra, tão jogando futebol
Tem muito samba, muito choro e rock'n'roll
Uns dias chove, noutros dias bate sol
Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta...”

(Chico Buarque de Holanda)


Bom dia, compadre!


 Meu caro amigo, me perdoe se a primeira lembrança que me vem à mente ao escrever esta carta é essa estrofe do grande Chico. Se ela não diz tudo, ao menos sugere antecipar a descrição do perrengue que passei.

Vamos lá!

Sabe aquele tipo de viagem que começa como um sonho e termina como um episódio de tragédia grega dirigida por um palhaço?

Pois então.

Era para ser só o retorno tranquilo de Angra dos Reis, depois de uma semana tão pacata que até o vento parecia cochilar entre as palmeiras. Estávamos no Frade  - você sabe -, onde até a areia parece praticar meditação transcendental.

Tomamos café com a paz de quem não suspeita que o universo já está afiando os dentes. Partimos por volta das 11 horas, sem agouro, sem corvo no retrovisor, nem uma musiquinha sinistra de fundo. Estávamos em dois carros. Família grande é isso...

Lá pelas 14h30, bateu aquela fome filosófica, e pedi:

— Amor, liga para o genro no outro carro. Vamos parar para almoçar.

Foi nesse exato momento que o destino pegou uma cadeira, se sentou no banco da frente e disse: “Agora é comigo.”

A minha neta, acomodada no banco de trás como uma monja mirim, zelosa em aplacar a fome do vovô, me ofereceu biscoitos. Ato de amor puro. Aceitei. Minha cara-metade abriu o pacote, me deu um na boca, e... o pacote escorregou.

Foi aí, compadre, que cometi o maior erro metafísico da minha vida: abaixei para pegar o pacote de biscoito em movimento. Dois segundos. Só dois, repito...

O carro, sentindo-se abandonado - ou quem sabe também faminto - resolveu pastar por conta própria. Saiu da estrada, se embrenhou num capinzal com o entusiasmo de um boi adolescente e, depois de uns cem metros, resolveu abraçar uma árvore.

Mas não era uma árvore qualquer. Era a árvore do karma. Se é crível que o capiroto tem árvores de preferência, essa era a sua predileta...

Nela, estabelecida estava uma comunidade raivosa de marimbondos graúdos. Para o desastrado do biscoito e seus acompanhantes, compaixão zero... Sim, nenhuma solidariedade com nosso infortúnio. Eram, sem dúvidas, os fiscais cósmicos do apocalipse.

A cena virou um carnaval entomológico: gritos, ferroadas e uma dança de desespero digna de novela mexicana com direção de Quentin Tarantino.

Saldo da tragédia:

— Eu? Dores abdominais e o ego mais amassado que lata de refrigerante de festa.

— Minha neta? Estiramento no braço e uma história para contar nos recreios da escola pelos próximos 10 anos. Ou por toda a vida.

— Minha mulher? A mais atingida. Fraturas nas vértebras C2 e C3. Imobilizada, parecendo uma escultura futurista de resiliência.

Mas calma, que agora entra o terceiro ato: a saga da Unimed - ou, como gosto de chamar, “O Ministério das Negativas”.

O médico do pronto-socorro da  Universidade sugeriu, com toda a razão, o translado da minha mulher, de helicóptero, para Belo Horizonte. Afinal, tratava-se de duas vértebras fraturadas, não uma unha encravada...

A Unimed, porém, disse: “não autorizado”. Parecia que o helicóptero tinha que decolar com autorização divina e três bênçãos papais. E, como desgraça pouca é bobagem, também negaram a ambulância, aquelas com UTI móvel, sirene poética e tudo.

Resultado?

Saí do hospital de Vassouras como quem foge de uma prisão encarcerado que fora pela burocracia do nada barato plano de saúde. Evadido, como dizem no jargão hospitalar e, pior, com as minha dignidade e o medo andando de mãos dadas.

Aquela decisão custou-nos cinco dias de espera, ansiedade, noites sem dormir, mas agraciou a mim com um mestrado em pressão psicológica e uma pós-graduação em paciência. Tudo isso propiciado pelo sistema de saúde suplementar.

Como dizia meu avô:

"Deus não manda carga maior do que o caminhão que você dirige."

E ainda que esse caminhão tenha saído da estrada, batido em árvore e sido atacado por marimbondos, cá estamos.

Minha mulher, guerreira que é, segue firme no tratamento. Seis meses de repouso e cuidados caseiros, feitos por mim - um enfermeiro sem jaleco -, mas com amor até nos curativos.

Não gosto de gente estranha em casa, então assumi o posto. Preparo mingau, aplico colar cervical e sirvo café com filosofia e bom humor. Afinal, a ideia de salvar o pacote de biscoito foi de minha inteira responsabilidade, Assumo!

No fim das contas, percebo que o universo tem um senso de humor peculiar.

Às vezes, ele manda um pacote de biscoito voador, uma árvore armada com marimbondos e um plano de saúde mercenário e coração de pedra - tudo no mesmo episódio.

Mas, manda também aprendizado, resiliência e, veja só, uma nova história para contar.

Estamos vivos, compadre. Inteiros o bastante para rir disso tudo. Porque, no fundo, viver é isso: tropeçar na tragédia, levantar com dignidade e contar o episódio como se fosse comédia.

Obrigado pelo carinho de sempre.

Seguimos até onde Deus achar divertido e com o pacote de biscoito bem guardado.

Um grande abraço!


23 de mai. de 2025

329) A VIDA COMO METÁFORA DO FUTEBOL

Ah, viver!

Viver é jogar bola num campo aberto, sob um sol imenso, com os pulmões cheios de vento e as pernas famintas por distâncias...

A vida - essa coisa maravilhosa, as vezes absurda, inútil e necessária - é como o futebol: um jogo vibrante, com regras que devemos seguir, mas com liberdade suficiente para correr, driblar, errar, rir e suar gloriosamente!

Sim!

Tudo começa com um apito, o grito do nascimento e termina com outro, o do  silêncio final. Mas entre esses dois sons e momentos distintos há o estrondo dos estádios da alma, as torcidas que moram em nós, o delírio de tentar fazer sentido chutando a bola para frente.

Jogar!

Jogar sem medo. Passar a bola ao outro com confiança, como quem entrega o coração. Gritar gol como quem afirma: “Estou vivo!” E errar também, tropeçar, cair de cara no barro do chão vil e levantar com lama no rosto e vontade de continuar.

A vida, como o futebol, é feita de momentos: um passe perfeito, uma jogada improvável, um gol de bicicleta no meio da rotina e tudo se justifica. Ah, o absurdo é belo! E o caos tem um ritmo que o coração entende melhor que a razão.

Não me venham com lógica, com prudência, com planilhas de produtividade. Quero a vibração das arquibancadas do espírito. Quero perder por goleada e ainda assim sorrir, porque joguei com intensidade, com entrega, com carne e alma.

No futebol, como na vida, às vezes o juiz erra, o time cansa, a torcida vaia. Mas há sempre o segundo tempo. Sempre um recomeço. Sempre outra chance de fazer melhor, de tentar de novo, de ser um pouco mais livre do que antes.

E se no fim não vencermos?

Que importa?

O importante é ter jogado com vontade bastante para que, ao sair de campo, possamos dizer:

 “Ah, como foi bom viver!”

 

Edson Pinto
23/5/2025

16 de mai. de 2025

328) ENTRE A PENA E O ROBÔ

 

Confesso, leitor amigo, que tenho vivido tempos de uma certa perplexidade tecnológica...

Sou filho da geração Baby Boomer (1946  – 1964). Felizmente, em que pese, às vezes, dores no ciático, a pressão arterial anda por 13/8 e o colesterol total abaixo de 200. Poderia ser melhor, mas já me dou por satisfeito... Continuo  pagando boletos, assistindo futebol pela televisão e às voltas com o mundo digital.

É aqui que o bicho pega...

Tenho, portanto, um pé atolado no chão de taco da infância analógica, o outro deslizando na cerâmica escorregadia da era digital. Quem é  Boomer como eu sabe que convivemos, tecnologicamente falando, com as quatro gerações seguintes à nossa: a  “X” (nascidos entre 1965 e 1980), a “Y”, ou Millenials (nascidos entre 1981 e 1996), a “Z” (nascidos entre 1997 e 2012) e a Alpha (nascidos de 2013 em diante).

Por isso, pertenço, ou melhor, pertencemos, caro contemporâneo, se for esse também o seu caso, a uma espécie rara e, quem sabe, em vias de obsolescência: a dos que aprenderam datilografia em máquinas de escrever, usaram mimeografo à álcool, selaram cartas para postá-las nos Correios, rebobinaram fitas de videocassete, mas hoje são obrigados a atualizar aplicativos.

Fui alfabetizado com lápis número dois e atualmente ando redigindo mensagens com emojis, vejam só! Cresci num tempo em que a palavra “nuvem” ainda significava o que cobre o céu e ameaça a roupa no varal. Hoje, é o lugar onde moram minhas fotos, meus documentos, e, creio eu, parte da minha alma digital.

E como ignorar, nesse cenário de maravilhas e assombros, a senhora Inteligência Artificial, essa governanta etérea que agora nos dita receitas, resumos, relatórios e até sentimentos simulados?

Ela sabe o que vamos digitar antes que os dedos toquem o teclado, aconselha o que assistir, sugere o que comprar, e, mais inquietante ainda, começa a querer nos entender.

O mais curioso é que muitos a tratam como oráculo. Eu, por minha vez, olho-a com aquele misto de respeito e desconfiança que se tinha diante dos boticários do século XIX: pode curar, mas também pode transformar o gato em jacaré se errar a dosagem.

A inteligência artificial de hoje já é espantosa. Mas o que mais me espanta é que ainda nos espanta... A cada dia, ela se aprimora com a calma de um relojoeiro e a audácia de um mágico. Transforma fotos antigas, em preto e branco, estáticas, em filmes coloridos; analisa exames; imita vozes; detecta ironias (quando não as pratica), e em breve, talvez, será capaz de saber que estou escrevendo isto agora, e responder-me com uma piscadela algorítmica.

Por vezes, pergunto-me, sem ironia: se o progresso continuar nesse ritmo, sobrará algo de humano que não tenha sido replicado, aprimorado ou, ao menos, sugerido por alguma engrenagem pensante?

E no entanto, ah!, que delícia conviver com essa diversidade de gerações!

Testemunhamos, nós os Boomers, a transição com o espanto dos camponeses diante do trem: assustados, mas fascinados. Sabemos dar nó em cadarço e redefinir roteadores de internet. Usamos estilingue e streaming. Escrevemos bilhetes com letra cursiva, mas também abrimos o coração em áudios de dois minutos com ruído de ventilador ao fundo.

Afinal, quem é mais feliz: o jovem que já nasce deslizando a tela com o dedo polegar como um imperador digital, ou este velho menino que ainda guarda na memória o grito do carteiro, a voz do mascate ou o som do modem discando - aquele ritual de paciência que fazia da internet dos seus primórdios quase um ato litúrgico?

Não sei, caro leitor. Como diria meu avô, o mundo é uma máquina que anda sozinha. E, acrescento eu: às vezes ela anda tão depressa que esquecemos de observar a paisagem.

Talvez o segredo da felicidade seja exatamente este: termos vivido com um olho no passado e outro no futuro. o que, por fim, nos deu uma visão de profundidade.

E se um dia uma IA for capaz de sentir saudade daquilo que nunca viveu, aí sim, com todo respeito ao silício, serei obrigado a admitir:

Os robôs nos superaram...

 Edson Pinto

Maio’ 2025


8 de mai. de 2025

327) O GALO DE AÇO E AS PROMESSAS DO AMOR



 

- Capítulo I -

 

O GALO DE AÇO E AS PROMESSAS DO AMOR


 Não é de hoje que ouço falar que o amor se parece a uma espécie de jogo de azar, desses em que se aposta o coração e se ganha - quando muito - um aperto no estômago...

Ainda assim, e talvez justamente por isso, dei-me ao luxo de me imaginar em peregrinação até a esplanada da Arena MRV, onde repousa, na minha Belo Horizonte da juventude dourada, em aço inoxidável e brilho olímpico, o Galo da Massa, símbolo sagrado do meu Clube Atlético Mineiro.

A escultura é descomunal. Soberba. Quase altiva. Mais de 8 metros de altura e uma massa bruta de 13 toneladas, por sinal o mesmo número que, no jogo do bicho, corresponde ao galo. Representa, dizem, não apenas um clube, mas uma paixão.

Ora, se há paixão que não se esgota com as derrotas, é a do torcedor; e se há fé que sobrevive ao improvável, é a do apaixonado.

O Galo, pois, é símbolo de ambos - e, talvez por isso, começaram a atribuir-lhe poderes que nem mesmo aos santos de altares mais consagrados as pessoas verdadeiramente apaixonadas ousariam reivindicar. Galo, um novo santo milagreiro? Por que não?

A história corre com a pressa e o entusiasmo das notícias bombásticas: já dizem os fervorosos que quem se aproxima do Galo com intenções amorosas sai de lá agraciado. Ou com um novo amor, ou com a consolidação do amor que já possui, ou já possuiu ou, ao menos, com a ilusão suficiente para tentar de novo.

Fui ver...

Não porque creia - já acreditei em amores eternos - e hoje coleciono cartas de fim de relacionamento escritas com a tinta poética do ressentimento. Fui, imaginariamente, porque havia tempo e melancolia de sobra numa tarde qualquer de um domingo trivial.

Lá estava ele, o Galo, reluzente ao sol como uma verdade que se recusa a ser discutida.

Aproximei-me com o respeito que se deve a tudo que é grande, imóvel e silencioso. Fiz uma súplica discreta, quase cínica. Pedi, se não amor, ao menos um motivo para continuar fingindo que ele existe.

O Galo, como era de esperar, nada disse. Nem um cacarejo simbólico. Mas juro - e não sou homem de muitos juramentos - que senti alguma coisa. Uma leve tontura. Um desconforto interior.

Talvez fosse fome. Pode ter sido esperança. O amor, afinal, muitas vezes se disfarça de ambas as coisas.

Voltei para casa sem companhia, é verdade. Mas com a impressão de ter sido ouvido por um monumento.

Dentro desse colosso de aço há de ter um coração de verdade, pensei, virei para o canto e dormi...

 

- Capítulo II -

EM QUE RECEBO UMA RESPOSTA, OU ALGO PARECIDO...

 

No dia seguinte à minha visita ao Galo da Esplanada - de onde, repito, voltei sem milagres nem companhia, mas com certa dignidade intacta - ocorreu-me uma ideia estapafúrdia:

“E se o Galo monumental e milagreiro me houvesse, de fato, escutado”?

Não me refiro à escuta dos ouvidos humanos que tudo filtram pela conveniência, mas àquela escuta das coisas que não falam: os cães, as paredes, os olhos que se desviam antes do beijo.

Há silêncio mais eloquente do que certas declarações, e talvez o Galo, com seu aço brilhante e altivo, houvesse me respondido com a melhor resposta de todas: a dúvida.

“Ora, não é o amor também uma espécie de dúvida bem-vestida, elegante”?

Decidi então observar os sinais. Não os divinos - que esses sempre aparecem atrasados ou metafóricos demais para minha paciência -, mas os humanos: uma mensagem inesperada, um reencontro acidental, um café oferecido com hesitação...

Foi aí que, ao sair da padaria, tropecei (não metaforicamente, desta vez) em Maria.

Maria!

Nome de epopeia. Tínhamos tido uma história mal pontuada, cheia de vírgulas em lugares errados e pontos finais mal colocados. Nosso amor tinha sido como aqueles contos de jornal que ninguém termina, mas que deixam uma ideia agradável flutuando na cabeça.

Ela sorriu.

Eu também.

Conversamos como quem segura um livro antigo com mãos protegidas por luvas de  pelica, com todo o zelo necessário... Trocamos banalidades com o cuidado de quem sabe que qualquer frase pode ser uma armadilha ou uma ponte.

E ali, entre um “você está bem” e um “vamos tomar um café qualquer dia desses?”, senti, pela segunda vez, aquele desconforto interno, aquela tontura leve semelhante à de quando olhei o Galo na minha primeira visita.

Será que o Galo da Massa havia me empurrado em sua sabedoria futebolística-sentimental para esse reencontro?

Talvez..

Ou talvez o amor, esse trapaceiro astuto, tenha apenas aproveitado a ocasião para pregar mais uma peça no velho cético aqui. Não sei.. Mas saí andando com o coração um pouco menos cheio de sarcasmo

E isso, convenhamos, já é quase amar.

 

- Capítulo III -

EM QUE TENTO ESCAPAR DE MARIA, E DOU DE CARA COMIGO

 

Maria...

Nunca duvide de uma mulher que tenha Maria no nome!

Não pelos episódios bíblicos ou pelas ladainhas cantadas aos domingos. Não sou homem de beatas nem de teologias, mas porque Maria é um nome que carrega dentro dele a ideia do inevitável.

Todo homem que diz que “Maria foi só mais uma” está, no fundo, tentando escapar do fato de que foi ela que ficou, mesmo depois de ir.

Depois do reencontro fortuito em frente à padaria, achei por bem fazer o que todo homem sensato faria diante de uma estranha, mas compreensível paixão. Por sinal  ainda quente:

Fugir...

Passei a evitar o mercado de bairro, troquei de barbearia, alterei meu trajeto matinal como quem altera o rumo da própria vida com passos pequenos e indignos.

Maria, no entanto, reaparecia.

Não fisicamente - o que seria ao menos dramático - mas na forma mais perversa possível: no pensamento.

Eu lia um livro e lá estava ela, entre uma vírgula e um suspiro.

Bebia café e o gosto parecia ecoar aquele silêncio nosso depois das brigas. Silêncio que não era paz, mas um tipo de espera.

“Foi o Galo”, pensei...

Não o de Maria Antonieta, mas o da Esplanada.

Esse Galo de aço inoxidável que agora imagino rindo com sua crista e rabo reluzentes da minha tentativa de racionalizar o irracional. Talvez seja um novo tipo de divindade: uma obra de arte que concede castigos disfarçados de possibilidades.

E Maria era a maior de todas.

Cheguei a escrever-lhe uma carta. Não enviei. O ato de escrever já me pareceu exposição suficiente.

Na carta, eu pedia desculpas por tudo e por nada. Por não ter ficado, por ter ficado demais, por rir no momento errado e calar quando ela esperava por  palavras. Enfim, pelas pequenas traições que o cotidiano impõe e o orgulho sustenta.

Dobrei o papel, guardei na gaveta da cômoda que já foi nossa.

E, naquela noite, dormi como se ela ainda estivesse do outro lado da cama – de costas, como sempre dormia depois das discussões ou mesmo depois das paixões...

O amor, pensei antes de adormecer, é esse fantasma doméstico que acende luzes depois que saímos do cômodo como a dizer-nos: “eu estava vendo tudo...”

E Maria, esse nome que não consigo apagar do papel, talvez seja só isso: a lembrança persistente de um silêncio que um dia, quem sabe, eu teria conseguido entender...

 

 - Capítulo IV -

EM QUE VOLTO AO GALO, REENCONTRO MARIA E DOU FIM À MINHA HUMANIDADE

 

Voltei ao Galo.

Não por fé - essa já me abandonou com a pressa circunstancial a exigir-me mais mudanças -, mas por exaustão. Há um cansaço que não é físico, nem da alma, mas do personagem. E eu, que fui amante, covarde, sentimental e irônico, estava farto de mim.

Era fim de tarde. A Esplanada vazia. O sol batia no aço inoxidável do Galo como se Deus, cansado de dar sinais sutis, decidisse usar um holofote.

E lá estava ele, o Galo. Intocado pelo tempo, como os sentimentos que nunca chegaram a ser ditos.

Fiquei alguns minutos calado, como quem espera julgamento.

Foi então que Maria surgiu.

Não como um milagre, mas como um relógio atrasado que, de vez em quando, acerta a hora.

Estava diferente - ou talvez fosse eu, com os olhos finalmente desembaçados pelo tempo. Trocamos um olhar que dispensou palavras.

Há silêncios que encerram bibliotecas...

“Então voltou”, ela disse, como quem fala com um fantasma.

“Voltei”, respondi, embora não soubesse exatamente de onde.

Caminhamos lado a lado pela esplanada, sem mãos dadas nem promessas. Apenas a presença mútua, que é o mais próximo que os desencantados chegam da eternidade.

Paramos diante do Galo. O céu de Belo Horizonte, sempre indeciso, nos oferecia uma meia-luz como se hesitasse entre o dia e a noite. Assim como nós entre a lembrança e o fim.

“Está bonito, não?”, disse ela.

“O Galo?”, perguntei.

“Não. O silêncio, ela sussurrou.”

E foi nesse instante, exato, imóvel, que compreendi: minha existência humana havia terminado. Não no sentido clínico - continuo respirando, pagando boletos, respondendo mensagens que não me interessam -, mas no essencial.

A parte de mim que esperava, desejava, se contorcia por dentro, essa foi sepultada ali, aos pés do Galo de aço, diante de Maria e do eco do que não dissemos.

Não chorei.

Não beijei.

Não pedi que ela ficasse, pois sabia ser impossível...

Fomos, cada um por um lado, como quem finalmente entende o fim de um livro sem se sentir com a obrigação de relê-lo...

O amor, tal qual a humanidade, é um delírio breve.

E eu, livre dele, segui meu caminho.

Inoxidável, como o Galo.

Inútil, como todos os deuses sinceros, pois nos tiram a ilusão de sucesso na reconfortante busca por explicação e sentido existencial...

 

Edson Pinto

Maio’ 2025

2 de mai. de 2025

326) O DIA EM QUE PENSEI QUE FOSSE VIEIRA OU MOISÉS...


Há dias em que a gente acorda sem saber muito bem o porquê. Acorda só porque o corpo ainda tem o velho e arraigado hábito de fazê-lo. Foi assim, comigo, ontem. Levantei, tomei café e queimei a ponta da língua.  Como sempre, sentei-me na varanda e pensei:

"Será que hoje algo acontece?"

E aconteceu. Mas não da forma que muda a vida - foi mais aquele estalo de Vieira -, sabe? Aquele clarão na cabeça acompanhado de um som tipo o “plim-plim” da Globo que parece dizer que você descobriu a resposta da vida, do universo e tudo mais. No meu caso, veio assim:

“E se eu adotasse um papagaio?”

Sim, um papagaio... Nem sei por quê. Talvez para ter com quem discutir o cotidiano, a vida ou a política, já que desde que a Jane se foi, a casa foi tomada por um silêncio ensurdecedor  (desculpem-me o oxímoro)... Fiquei ruminando a ideia, quando veio uma epifania, daquelas que não fazem barulho, mas mexem lá dentro. Um pensamento manso, quase poético:

“Você não quer um papagaio. Você quer é conversar, resenhar sem compromisso...”

A verdade é que, desde que a vida me aprontou, os dias ficaram tão parecidos que já nem sei em qual deles estou. Segunda ou sábado, tanto faz. E naquele instante, entendi que não era o papagaio. Era a falta de barulho. Falta de alguém para dizer “Bom dia”, sem ironia. ”Desce para o café”, com tom zeloso, “Eu te amo”, com sorriso sincero e franco...

A partir daí que o negócio pegou fogo: Pus-me a navegar no infinito mar do Youtube com o propósito de encontrar algo que prestasse, quando apareceu o vídeo de um pastor de almas dizendo:

“Deus tem um propósito pra você!”

Foi como a sarça ardente de Moisés, só que de paletó bem cortado, microfone em punho e um jeitão do Dick Vigarista da Hanna Barbera... Meu coração, carente e crédulo, acreditou:

“É isso, tenho um chamado!”

Levantei-me com firmeza, fui até o espelho e me olhei como quem encara o destino. Fiquei em dúvida se tomava banho ou só trocava de camisa. Resolvi lavar o rosto. Foi o bastante. No fim do dia parecia tudo muito bem esclarecido:

Não adotei o papagaio. Não virei missionário, nem descobri meu propósito transcendental. Mas, sentei-me, escrevi esta crônica e ri sozinho, porque talvez - só mesmo talvez - o estalo de Vieira, a epifania e a sarça ardente sejam só maneiras de o universo lembrar que ainda tem vida aqui dentro da gente.

E, não raro, isso já é suficiente...

Edson Pinto

Maio’ 2025