- Capítulo I -
O GALO DE AÇO E AS PROMESSAS DO AMOR
Ainda assim, e talvez justamente por isso, dei-me ao luxo de
me imaginar em peregrinação até a esplanada da Arena MRV, onde repousa, na
minha Belo Horizonte da juventude dourada, em aço inoxidável e brilho olímpico,
o Galo da Massa, símbolo sagrado do meu Clube Atlético Mineiro.
A escultura é descomunal. Soberba. Quase altiva. Mais de 8
metros de altura e uma massa bruta de 13 toneladas, por sinal o mesmo número
que, no jogo do bicho, corresponde ao galo. Representa, dizem, não apenas um
clube, mas uma paixão.
Ora, se há paixão que não se esgota com as derrotas, é a do
torcedor; e se há fé que sobrevive ao improvável, é a do apaixonado.
O Galo, pois, é símbolo de ambos - e, talvez por isso,
começaram a atribuir-lhe poderes que nem mesmo aos santos de altares mais consagrados
as pessoas verdadeiramente apaixonadas ousariam reivindicar. Galo, um novo
santo milagreiro? Por que não?
A história corre com a pressa e o entusiasmo das notícias
bombásticas: já dizem os fervorosos que quem se aproxima do Galo com intenções
amorosas sai de lá agraciado. Ou com um novo amor, ou com a consolidação do
amor que já possui, ou já possuiu ou, ao menos, com a ilusão suficiente para
tentar de novo.
Fui ver...
Não porque creia - já acreditei em amores eternos - e hoje
coleciono cartas de fim de relacionamento escritas com a tinta poética do
ressentimento. Fui, imaginariamente, porque havia tempo e melancolia de sobra
numa tarde qualquer de um domingo trivial.
Lá estava ele, o Galo, reluzente ao sol como uma verdade que
se recusa a ser discutida.
Aproximei-me com o respeito que se deve a tudo que é grande,
imóvel e silencioso. Fiz uma súplica discreta, quase cínica. Pedi, se não amor,
ao menos um motivo para continuar fingindo que ele existe.
O Galo, como era de esperar, nada disse. Nem um cacarejo
simbólico. Mas juro - e não sou homem de muitos juramentos - que senti alguma
coisa. Uma leve tontura. Um desconforto interior.
Talvez fosse fome. Pode ter sido esperança. O amor, afinal,
muitas vezes se disfarça de ambas as coisas.
Voltei para casa sem companhia, é verdade. Mas com a
impressão de ter sido ouvido por um monumento.
Dentro desse colosso de aço há de ter um coração de verdade,
pensei, virei para o canto e dormi...
- Capítulo II -
EM QUE RECEBO UMA RESPOSTA, OU
ALGO PARECIDO...
No dia seguinte à minha visita ao Galo da Esplanada - de onde, repito, voltei sem milagres nem companhia, mas com certa dignidade intacta - ocorreu-me uma ideia estapafúrdia:
“E se o Galo monumental e milagreiro me houvesse, de fato,
escutado”?
Não me refiro à escuta dos ouvidos humanos que tudo filtram
pela conveniência, mas àquela escuta das coisas que não falam: os cães, as
paredes, os olhos que se desviam antes do beijo.
Há silêncio mais eloquente do que certas declarações, e
talvez o Galo, com seu aço brilhante e altivo, houvesse me respondido com a
melhor resposta de todas: a dúvida.
“Ora, não é o amor também uma espécie de dúvida bem-vestida,
elegante”?
Decidi então observar os sinais. Não os divinos - que esses
sempre aparecem atrasados ou metafóricos demais para minha paciência -, mas os
humanos: uma mensagem inesperada, um reencontro acidental, um café oferecido
com hesitação...
Foi aí que, ao sair da padaria, tropecei (não
metaforicamente, desta vez) em Maria.
Maria!
Nome de epopeia. Tínhamos tido uma história mal pontuada,
cheia de vírgulas em lugares errados e pontos finais mal colocados. Nosso amor
tinha sido como aqueles contos de jornal que ninguém termina, mas que deixam
uma ideia agradável flutuando na cabeça.
Ela sorriu.
Eu também.
Conversamos como quem segura um livro antigo com mãos protegidas
por luvas de pelica, com todo o zelo
necessário... Trocamos banalidades com o cuidado de quem sabe que qualquer
frase pode ser uma armadilha ou uma ponte.
E ali, entre um “você está bem” e um “vamos tomar um café
qualquer dia desses?”, senti, pela segunda vez, aquele desconforto interno,
aquela tontura leve semelhante à de quando olhei o Galo na minha primeira visita.
Será que o Galo da Massa havia me empurrado em sua sabedoria
futebolística-sentimental para esse reencontro?
Talvez..
Ou talvez o amor, esse trapaceiro astuto, tenha apenas
aproveitado a ocasião para pregar mais uma peça no velho cético aqui. Não sei..
Mas saí andando com o coração um pouco menos cheio de sarcasmo
E isso, convenhamos, já é quase amar.
- Capítulo III -
EM QUE TENTO ESCAPAR DE MARIA, E DOU DE CARA COMIGO
Maria...
Nunca duvide de uma mulher que tenha Maria no nome!
Não pelos episódios bíblicos ou pelas ladainhas cantadas aos
domingos. Não sou homem de beatas nem de teologias, mas porque Maria é um nome
que carrega dentro dele a ideia do inevitável.
Todo homem que diz que “Maria foi só mais uma” está, no
fundo, tentando escapar do fato de que foi ela que ficou, mesmo depois de ir.
Depois do reencontro fortuito em frente à padaria, achei por
bem fazer o que todo homem sensato faria diante de uma estranha, mas
compreensível paixão. Por sinal ainda
quente:
Fugir...
Passei a evitar o mercado de bairro, troquei de barbearia,
alterei meu trajeto matinal como quem altera o rumo da própria vida com passos
pequenos e indignos.
Maria, no entanto, reaparecia.
Não fisicamente - o que seria ao menos dramático - mas na
forma mais perversa possível: no pensamento.
Eu lia um livro e lá estava ela, entre uma vírgula e um
suspiro.
Bebia café e o gosto parecia ecoar aquele silêncio nosso
depois das brigas. Silêncio que não era paz, mas um tipo de espera.
“Foi o Galo”, pensei...
Não o de Maria Antonieta, mas o da Esplanada.
Esse Galo de aço inoxidável que agora imagino rindo com sua
crista e rabo reluzentes da minha tentativa de racionalizar o irracional.
Talvez seja um novo tipo de divindade: uma obra de arte que concede castigos
disfarçados de possibilidades.
E Maria era a maior de todas.
Cheguei a escrever-lhe uma carta. Não enviei. O ato de
escrever já me pareceu exposição suficiente.
Na carta, eu pedia desculpas por tudo e por nada. Por não
ter ficado, por ter ficado demais, por rir no momento errado e calar quando ela
esperava por palavras. Enfim, pelas
pequenas traições que o cotidiano impõe e o orgulho sustenta.
Dobrei o papel, guardei na gaveta da cômoda que já foi
nossa.
E, naquela noite, dormi como se ela ainda estivesse do outro
lado da cama – de costas, como sempre dormia depois das discussões ou mesmo
depois das paixões...
O amor, pensei antes de adormecer, é esse fantasma doméstico
que acende luzes depois que saímos do cômodo como a dizer-nos: “eu estava vendo
tudo...”
E Maria, esse nome que não consigo apagar do papel, talvez
seja só isso: a lembrança persistente de um silêncio que um dia, quem sabe, eu
teria conseguido entender...
EM QUE VOLTO AO GALO,
REENCONTRO MARIA E DOU FIM À MINHA HUMANIDADE
Voltei ao Galo.
Não por fé - essa já me abandonou com a pressa circunstancial
a exigir-me mais mudanças -, mas por exaustão. Há um cansaço que não é físico,
nem da alma, mas do personagem. E eu, que fui amante, covarde, sentimental e
irônico, estava farto de mim.
Era fim de tarde. A Esplanada vazia. O sol batia no aço
inoxidável do Galo como se Deus, cansado de dar sinais sutis, decidisse usar um
holofote.
E lá estava ele, o Galo. Intocado pelo tempo, como os
sentimentos que nunca chegaram a ser ditos.
Fiquei alguns minutos calado, como quem espera julgamento.
Foi então que Maria surgiu.
Não como um milagre, mas como um relógio atrasado que, de
vez em quando, acerta a hora.
Estava diferente - ou talvez fosse eu, com os olhos
finalmente desembaçados pelo tempo. Trocamos um olhar que dispensou palavras.
Há silêncios que encerram bibliotecas...
“Então voltou”, ela disse, como quem fala com um fantasma.
“Voltei”, respondi, embora não soubesse exatamente de onde.
Caminhamos lado a lado pela esplanada, sem mãos dadas nem
promessas. Apenas a presença mútua, que é o mais próximo que os desencantados
chegam da eternidade.
Paramos diante do Galo. O céu de Belo Horizonte, sempre
indeciso, nos oferecia uma meia-luz como se hesitasse entre o dia e a noite.
Assim como nós entre a lembrança e o fim.
“Está bonito, não?”, disse ela.
“O Galo?”, perguntei.
“Não. O silêncio, ela sussurrou.”
E foi nesse instante, exato, imóvel, que compreendi: minha
existência humana havia terminado. Não no sentido clínico - continuo
respirando, pagando boletos, respondendo mensagens que não me interessam -, mas
no essencial.
A parte de mim que esperava, desejava, se contorcia por
dentro, essa foi sepultada ali, aos pés do Galo de aço, diante de Maria e do
eco do que não dissemos.
Não chorei.
Não beijei.
Não pedi que ela ficasse, pois sabia ser impossível...
Fomos, cada um por um lado, como quem finalmente entende o
fim de um livro sem se sentir com a obrigação de relê-lo...
O amor, tal qual a humanidade, é um delírio breve.
E eu, livre dele, segui meu caminho.
Inoxidável, como o Galo.
Inútil, como todos os deuses sinceros, pois nos tiram a
ilusão de sucesso na reconfortante busca por explicação e sentido existencial...
Edson Pinto
Maio’ 2025
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