7 de nov. de 2025

352) MÁRTIRES HISTÓRICOS EM VILA RICA


 

Há artistas que pintam quadros, e há os que pintam destinos. Os primeiros usam tintas e os segundos, ou a  genialidade, ou o humanismo, a sensibilidade musical, a criatividade literária ou até mesmo outras formas nobres de expressão.  Há, ainda, os que, pelo bem da sociedade, dão o  próprio sangue. Entre estes, estão Sócrates, Joana d’Arc, Giordano Bruno e Joaquim José da Silva Xavier, o nosso mineiríssimo, Tiradentes.

Neste décimo sétimo e último miniconto da série “Artistas Perdidos em Minas”, os quatro se reúnem na eternidade para conversar sobre o que há de comum entre o pensamento, a fé, o cosmos e a liberdade. São artistas trágicos, criadores do espírito humano, que fizeram da dor um espetáculo de consciência. Os três de fora vão ter-se com Tiradentes  na Vila Rica antes de tornar-se a conhecida Ouro Preto.

Sócrates, o escultor das ideias, ensinou a arte do diálogo e morreu fiel à verdade. Joana d’Arc, atriz da fé, encenou a coragem de um povo diante da fogueira. Giordano Bruno, poeta do infinito, imaginou um universo sem muros. E Tiradentes, o mineiro da utopia, fez da própria forca um altar da liberdade. Cada um, à sua maneira, foi um artista da existência, moldando o mundo com gestos que nem o tempo apagou.

Assim se encerra esta jornada pelos “Artistas Perdidos em Minas”, essa série de minicontos que escrevi e publiquei no blog ao longo de pouco mais de quatro meses para dar poesia aos becos da história e da alma da mineiridade que conservo em mim.

Que o leitor amigo, ao final desta travessia, perceba que a arte não mora apenas nas mãos dos que pintam, mas também nas almas que ousam criar o impossível. Minas Gerais foi e continua sendo campo fértil onde brota fácil a arte em todas as sua formas. 

Encerro aqui minha caminhada pelos “Artistas Perdidos em Minas”. Foram dezessete minicontos, todos na forma de encontros imaginários entre personalidades mundialmente famosos com suas contrapartes mineiras. Dezessete lampejos de humanidade que procurei registrar com o olhar de quem ainda acredita que a arte é uma forma de salvação. Minas foi o cenário, mas o tema foi o espírito humano, esse mineiro silencioso que, mesmo sem palco, continua criando sentido no meio da vida. O conto vai a seguir:

Edson Pinto

Novembro, 2025

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(17º e último miniconto da série)

Naquela noite abafada de Vila Rica, o vento parecia segredar pelas frestas da antiga taverna desativada. Os Inconfidentes estavam reunidos, cada qual com o coração mais aceso que a vela tremulante. Tiradentes, de olhar inflamado, conduzia a fala:

— Senhores, a hora se aproxima. O jugo de além-mar é ferro em nossas costas. Precisamos decidir.

Foi então que se ouviu uma batida seca à porta. Um silêncio de navalha percorreu a sala. Alguém sussurrou:

— E se for um espião?

Tiradentes ergueu a mão:

— Perguntem a senha.

Do lado de fora, uma voz firme respondeu:

— UAI.

Os conjurados se entreolharam e sorriram: aquela palavra simples, tão mineira, era o pacto secreto. A porta se abriu.

Entraram, para espanto geral, três figuras improváveis: um homem de túnica grega, barba cerrada e olhar de pedra. Era Sócrates; uma donzela de armadura reluzente, que parecia ter vindo diretamente de Orleans. era Joana d’Arc; e um frade italiano, de olhos que ardiam como brasas no escuro. Era Giordano Bruno.

O tempo, ali, pareceu dobrar-se como folha de papel.

— Viemos para conversar com José Joaquim da Silva Xavier, vulgo Tiradentes, disse Sócrates, como quem começa uma aporia.

— E para lembrar, acrescentou Joana, que a liberdade é paga com o fogo da coragem.

— Ou com o fogo literal, murmurou Bruno, sorrindo amargo.

Os Inconfidentes, atônitos, cederam espaço. A taverna virou ágora, virou praça, virou tribunal secreto. E o diálogo começou.

Sócrates inquiriu Tiradentes sobre a justiça:

— Dize-me, mineiro, que liberdade desejais? A de não pagar tributos? Ou a de governar a si mesmos?

Joana ergueu a voz:

— Não basta desejar. É preciso conduzir o povo, mesmo que zombem, mesmo que condenem.

Bruno concluiu:

— A ideia é maior que o corpo. Se caíres, José Joaquim, tua morte será centelha para outras fogueiras.

Tiradentes ouviu, sorveu cada palavra como quem bebe o último gole de esperança.

— Então que seja assim, disse, batendo o punho na mesa. A liberdade não se negocia.

Os conjurados vibraram. Tudo parecia alinhar-se: o plano, a coragem, até a benção dos mortos ilustres. Mas o destino, sempre irônico, plantara ali um rosto dissimulado. Joaquim Silvério dos Reis, o traidor, já alimentava em silêncio sua denúncia. O ouro do delator brilhava mais que qualquer ideia.

Naquela noite, porém, por um instante, Vila Rica foi o centro do mundo. Sócrates, Joana, Bruno e Tiradentes falaram a mesma língua: a do sacrifício. E as velas da taverna, dizem, arderam mais fortes, como se pressentissem que a liberdade ainda demoraria, mas já tinha encontrado seus mártires.

Edson Pinto

Novembro, 2025

 

Nota do Autor

José Joaquim da Silva Xavier, o Tiradentes (1746–1792), alferes e dentista em Vila Rica, atual Ouro Preto, tornou-se o principal líder da Inconfidência Mineira. Enforcado e esquartejado, transformou-se em mártir da liberdade brasileira.

Sócrates (469–399 a.C.), filósofo grego, pai da maiêutica, foi condenado a beber cicuta por desafiar os costumes de Atenas. Sua morte voluntária tornou-se símbolo da fidelidade à verdade.

Joana d’Arc (1412–1431), camponesa francesa, guiada por visões místicas, liderou tropas contra os ingleses na Guerra dos Cem Anos. Julgada e queimada em Rouen, é lembrada como heroína e santa.

Giordano Bruno (1548–1600), filósofo italiano, defendeu a infinitude do universo e a multiplicidade dos mundos. Condenado pela Inquisição, morreu na fogueira em Roma, tornando-se emblema da liberdade de pensamento.

Quatro figuras distantes no tempo e no espaço, mas reunidas pelo mesmo fio: a coragem de enfrentar o poder e a certeza de que a morte pode ser apenas o prólogo da liberdade.