28 de nov. de 2025

355) A JANELA E O MUNDO QUE ME OLHA

 

“Há momentos em que o mundo nos contempla em silêncio, como se quisesse saber o que faremos com tanta beleza disponível.” (Epígrafe criada para esta crônica)

 

Há dias em que a vida resolve se exibir. Hoje, mais cedo, na aprazível Três Corações, encostei-me à janela do meu apartamento, esse camarote privilegiado da existência. O mundo, todo prosa, começou a desfilar diante de mim.

O Rio Verde seguia lá embaixo, praticando sua velha filosofia de não ter pressa. Serpenteava com a calma dos sábios, passava sob a ponte ferroviária de treliça, desativada,  que já deve ter ouvido confissões de maquinistas e lamentos de vagões  e que prosseguia sem se perturbar com as pressões humanas...

A chuva, que havia visitado mais cedo, deixou tudo brilhando como se tivesse dado um lustre no planeta. A mata ao fundo cintilava, exibindo verdes de todos os tipos: verde-claro, verde-maduro, verde-tímido, verde-atrevido. Entre as árvores, algumas casas se mostravam discretas, como quem aparece na foto sem querer sair muito na frente.

É domingo de primavera. A cidade parecia ter assinado um acordo de paz com o tempo. Os carros passavam devagar, respeitando algum pacto silencioso que desconheço, e o céu, ainda nublado, mantinha aquele ar de quem chorou, lavou a alma e agora repousa.

No outro extremo da paisagem, uma fazenda balançava o lenço do campo. O gado, espalhado no pasto, meditava sem qualquer compromisso. Sempre achei que vacas filosofam melhor que nós, talvez porque não têm reuniões, boletos ou políticos para atrapalhar.

E atrás de tudo isso, as montanhas. Ah, as montanhas de Minas! Elas não são apenas cumes. São capítulos da minha vida. Ondulam como antigas lembranças que se recusam a ir embora. De vez em quando, trazem de volta meus entes queridos que já partiram, meus amigos do Caiçara, ou o cheiro do barro depois da chuva. Uma geografia inteira feita de memórias.

Enquanto observo o cenário, percebo que também estou sendo olhado. O mundo, esse velho cúmplice, parece perguntar baixinho: “E então, o que você sente agora?” Sinto uma serenidade que não se compra, dessas que só vem depois de alguns invernos da alma. E penso no futuro, que se esconde atrás das montanhas com aquele ar misterioso de quem sabe mais do que conta.

Deixo-o lá. Aprendi com o Rio Verde que o que importa mesmo é continuar. Chegar é detalhe.

Fico assim, entre a paisagem e o pensamento, entre a cidade e aquilo que ainda lateja cá dentro. E concluo, com o meu lado machadiano sorrindo de canto de boca, que talvez o segredo da vida seja notar que o essencial não faz alarde. Apenas se deixa ver quando a gente se permite olhar.

Edson Pinto

Novembro, 2025


21 de nov. de 2025

354) O GOL INVISÍVEL

Sempre que assisto a uma partida de futebol do meu querido Atlético Mineiro, o Galo, percebo que há muito mais gente em campo do que os 22 que a televisão insiste em mostrar. Há também os medos, as expectativas, as promessas feitas no vestiário, os santos de devoção, os traumas de infância, as cobranças de salário atrasado e, sobretudo, aquele personagem que ninguém vê, mas que decide tudo que é a psicologia. Sim, ela mesma. Sorrateira, silenciosa e, na maior parte do tempo, muito mais veloz do que os alas e os volantes.

E é por isso que, às vezes, o time cheio de craques perde para o time “arrumadinho”, que a imprensa descreve com aquele ar paternalista de quem fala de um sobrinho esforçado. Craque demais entra em campo com peso. Peso de salário, peso de manchete, peso de expectativa. Joga com uma mala imaginária nas costas e nem sempre é mala leve. Já o limitado joga leve porque, francamente, ninguém espera muita coisa dele. E quando ninguém espera, tudo o que acontece vira surpresa, e surpresa é combustível psicológico de primeira.

A torcida, coitada, não sabe o poder que tem. Ou sabe e exagera. Porque, quando o time está bem, ela empurra. Mas quando está mal, ela empurra… para o abismo. Torcida é como família, ama, mas exige. Grita, mas apoia. Cobra, mas abraça. E às vezes basta um resmungo vindo da arquibancada para um zagueiro que estava em paz descobrir que possui a rara capacidade de tropeçar em si mesmo.

Mas, claro, não se pode esquecer da sorte. Ela é o cronista malandro do futebol, desses que chegam no último parágrafo para virar a história. A bola bate na trave, pega no zagueiro, volta no goleiro e entra. Pronto! Já temos tese de doutorado sobre “as contingências metafísicas do chute despretensioso”. O acaso gosta de participar do jogo, nem que seja só para provar que nenhuma planilha prevê o imponderável. Nem Carlo Ancelotti, nem Jorge Sampaoli escapam.

Agora, o que realmente me fascina, e aí entro no meu território filosófico favorito, são as condições internas do clube. Certa vez pensei que time de futebol fosse apenas grupo de jogadores. Ingenuidade minha. O time leva para o campo a temperatura da diretoria, o humor do treinador, a fofoca da semana, a conta de luz atrasada, o jantar mal dormido e até a discussão conjugal do lateral, que entrou em campo com a alma em atraso. Tudo isso joga. E, às vezes, joga contra.

E, no entanto, como acontece conosco, há momentos em que um time inteiro resolve acreditar que pode. Não que tenha obrigação, mas que pode. E aí acontece aquele fenômeno bonito que não está nos livros de psicologia, ou seja, o gol invisível. É o gol feito antes da bola rolar, marcado na conversa, no silêncio, no aperto de mão, na respiração funda. Um gol que nasce no espírito e só depois se materializa na rede, quando o corpo finalmente entende o recado.

No fim das contas, ou melhor, no fim da partida, o futebol é um resumo da existência. Ganha não quem tem mais qualidades, mas quem, no instante crítico, acredita mais profundamente que merece vencer. E é por isso que, de vez em quando, Davi acerta uma pedrada em Golias e o VAR, por mais moderno que seja, não consegue anular aquilo que a alma decidiu marcar.

Porque, eu diria, sem medo de errar, que, no futebol, como na vida, o gol mais importante é aquele que ninguém viu, mas que já estava decidido lá dentro, naquele território misterioso onde moram a motivação, a crença e o acaso. Todos sem esquema tático perfeito, sem técnico, sem planilha, mas com uma vontade danada de surpreender.

Espero que amanhã, sábado, 22/11/2025, em Assunção, no Paraguai, o meu galo entre em campo com gol invisíveis já marcados e que adicione alguns gols visíveis para a dele e nossa glória.

Edson Pinto

Novembro, 2025

14 de nov. de 2025

353) O INVERNO DO CANIÇO PENSANTE

 (Reflexões de um avô que se dobra, mas não se quebra)

Há dias em que acordo com a sensação de que o corpo já não obedece à alma. Ou, talvez, seja a alma que, cansada, tenha resolvido se deitar mais cedo e por isso acorda antes do corpo. Noto um descompasso entre ambos. A alma quer voar, enquanto o corpo precisa destravar as articulações. É assim que se chega ao inverno das estações da vida, esse tempo em que o corpo encolhe, mas a mente, teimosa, continua a se esticar como quem quer alcançar o infinito.

E foi numa dessas manhãs em que o espelho me olhou com ironia que me lembrei de Blaise Pascal, o francês que nos comparou a um caniço pensante.

Ora! Pascal foi um desses homens que conseguiram a proeza de caber em várias gavetas ao mesmo tempo. Foi matemático, físico, inventor e, por fim, teólogo. Um gênio, portanto, mas também um melancólico que via o homem como um fiapo entre a lama e as estrelas.

Dizia ele que somos frágeis como um caniço (uma vara fina e quebradiça), dessas que o vento dobra, mas que tem a insolência de pensar. E é justamente aí que mora nossa grandeza.

Na minha infância e juventude, lá em Belo Horizonte, eu não entendia bem essa história. Caniço, para mim, era planta de beira de córrego, às vezes, usada  para  pescar outras vezes para cutucar formigueiros.

Pensar, eu já fazia demais, ainda que com os erros de quem acha que vai durar para sempre. Hoje percebo que Pascal tinha razão, ou seja, o corpo é um bambuzinho que o tempo vai afinando. Mas o pensamento… ah, o pensamento, ainda canta.

Lembro dos filhos que criei e dos netos que ainda correm pela casa, cada qual um rebento novo do mesmo caniço antigo. Todos pensantes, espero. E vejo em cada um deles essa mistura de fragilidade e coragem que Pascal tanto admirava, ou seja, a capacidade de ser pequeno e, mesmo assim, refletir sobre o universo.

Se eu fosse reescrever o pensamento de Pascal à luz da  minha própria experiência, diria que o homem é um caniço persistente. Ele pensa, apanha, insiste, e ainda agradece o vento que o dobra. É o vento, afinal, que nos mantém em movimento. Um caniço sem vento seria apenas uma vara parada. E o homem sem adversidade, um vegetal vaidoso.

O curioso é que, quanto mais o corpo se curva, mais a mente parece erguer-se. A cada fisgadinha  no ciático, descubro uma nova pergunta sobre o sentido das coisas. Talvez seja assim mesmo, isto é,  a resiliência do corpo é física, mas a resistência da mente é metafísica. Enquanto o corpo declina, o pensamento floresce, como se a natureza quisesse compensar uma coisa com a outra.

Hoje, olhando para trás, vejo que a vida inteira foi um ensaio para aprender a dobrar sem quebrar. O menino que virou gente grande, pai, avô e, por fim, cronista das próprias torções. Continuo me dobrando, é verdade, às juntas enferrujadas, às saudades, aos boletos. Mas ainda penso. E, enquanto pensar, serei digno da metáfora de Pascal.

No frigir dos ovos, temos que admitir que, ser um caniço pensante não é uma ofensa, é um elogio disfarçado. É admitir que somos frágeis, sim, mas não tolos. Que somos  vulneráveis, mas não vãos. E no dia que o vento nos levar, que leve junto as ideias que plantamosi. Quem sabe, em algum canto do tempo, outro caniço as escute e continue a pensar?

 Edson Pinto

Novembro, 2025



 Nota do Autor


Blaise Pascal (1623–1662) foi um dos grandes gênios franceses do século XVII. Matemático e físico precoce, inventou a primeira calculadora mecânica e lançou as bases da teoria das probabilidades. Mais tarde, aproximou-se da filosofia e da teologia, tornando-se um dos pensadores cristãos mais profundos de sua época. Em sua obra inacabada Pensées (Pensamentos), refletiu sobre a condição humana, essa estranha mistura de grandeza e miséria. Daí nasceu sua metáfora célebre: “O homem é um caniço, o mais fraco da natureza, mas é um caniço pensante.”, ou seja, somos frágeis como a erva, mas dotados de consciência, e é nesse pensamento que reside toda a nossa dignidade.


7 de nov. de 2025

352) MÁRTIRES HISTÓRICOS EM VILA RICA


 

Há artistas que pintam quadros, e há os que pintam destinos. Os primeiros usam tintas e os segundos, ou a  genialidade, ou o humanismo, a sensibilidade musical, a criatividade literária ou até mesmo outras formas nobres de expressão.  Há, ainda, os que, pelo bem da sociedade, dão o  próprio sangue. Entre estes, estão Sócrates, Joana d’Arc, Giordano Bruno e Joaquim José da Silva Xavier, o nosso mineiríssimo, Tiradentes.

Neste décimo sétimo e último miniconto da série “Artistas Perdidos em Minas”, os quatro se reúnem na eternidade para conversar sobre o que há de comum entre o pensamento, a fé, o cosmos e a liberdade. São artistas trágicos, criadores do espírito humano, que fizeram da dor um espetáculo de consciência. Os três de fora vão ter-se com Tiradentes  na Vila Rica antes de tornar-se a conhecida Ouro Preto.

Sócrates, o escultor das ideias, ensinou a arte do diálogo e morreu fiel à verdade. Joana d’Arc, atriz da fé, encenou a coragem de um povo diante da fogueira. Giordano Bruno, poeta do infinito, imaginou um universo sem muros. E Tiradentes, o mineiro da utopia, fez da própria forca um altar da liberdade. Cada um, à sua maneira, foi um artista da existência, moldando o mundo com gestos que nem o tempo apagou.

Assim se encerra esta jornada pelos “Artistas Perdidos em Minas”, essa série de minicontos que escrevi e publiquei no blog ao longo de pouco mais de quatro meses para dar poesia aos becos da história e da alma da mineiridade que conservo em mim.

Que o leitor amigo, ao final desta travessia, perceba que a arte não mora apenas nas mãos dos que pintam, mas também nas almas que ousam criar o impossível. Minas Gerais foi e continua sendo campo fértil onde brota fácil a arte em todas as sua formas. 

Encerro aqui minha caminhada pelos “Artistas Perdidos em Minas”. Foram dezessete minicontos, todos na forma de encontros imaginários entre personalidades mundialmente famosos com suas contrapartes mineiras. Dezessete lampejos de humanidade que procurei registrar com o olhar de quem ainda acredita que a arte é uma forma de salvação. Minas foi o cenário, mas o tema foi o espírito humano, esse mineiro silencioso que, mesmo sem palco, continua criando sentido no meio da vida. O conto vai a seguir:

Edson Pinto

Novembro, 2025

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(17º e último miniconto da série)

Naquela noite abafada de Vila Rica, o vento parecia segredar pelas frestas da antiga taverna desativada. Os Inconfidentes estavam reunidos, cada qual com o coração mais aceso que a vela tremulante. Tiradentes, de olhar inflamado, conduzia a fala:

— Senhores, a hora se aproxima. O jugo de além-mar é ferro em nossas costas. Precisamos decidir.

Foi então que se ouviu uma batida seca à porta. Um silêncio de navalha percorreu a sala. Alguém sussurrou:

— E se for um espião?

Tiradentes ergueu a mão:

— Perguntem a senha.

Do lado de fora, uma voz firme respondeu:

— UAI.

Os conjurados se entreolharam e sorriram: aquela palavra simples, tão mineira, era o pacto secreto. A porta se abriu.

Entraram, para espanto geral, três figuras improváveis: um homem de túnica grega, barba cerrada e olhar de pedra. Era Sócrates; uma donzela de armadura reluzente, que parecia ter vindo diretamente de Orleans. era Joana d’Arc; e um frade italiano, de olhos que ardiam como brasas no escuro. Era Giordano Bruno.

O tempo, ali, pareceu dobrar-se como folha de papel.

— Viemos para conversar com José Joaquim da Silva Xavier, vulgo Tiradentes, disse Sócrates, como quem começa uma aporia.

— E para lembrar, acrescentou Joana, que a liberdade é paga com o fogo da coragem.

— Ou com o fogo literal, murmurou Bruno, sorrindo amargo.

Os Inconfidentes, atônitos, cederam espaço. A taverna virou ágora, virou praça, virou tribunal secreto. E o diálogo começou.

Sócrates inquiriu Tiradentes sobre a justiça:

— Dize-me, mineiro, que liberdade desejais? A de não pagar tributos? Ou a de governar a si mesmos?

Joana ergueu a voz:

— Não basta desejar. É preciso conduzir o povo, mesmo que zombem, mesmo que condenem.

Bruno concluiu:

— A ideia é maior que o corpo. Se caíres, José Joaquim, tua morte será centelha para outras fogueiras.

Tiradentes ouviu, sorveu cada palavra como quem bebe o último gole de esperança.

— Então que seja assim, disse, batendo o punho na mesa. A liberdade não se negocia.

Os conjurados vibraram. Tudo parecia alinhar-se: o plano, a coragem, até a benção dos mortos ilustres. Mas o destino, sempre irônico, plantara ali um rosto dissimulado. Joaquim Silvério dos Reis, o traidor, já alimentava em silêncio sua denúncia. O ouro do delator brilhava mais que qualquer ideia.

Naquela noite, porém, por um instante, Vila Rica foi o centro do mundo. Sócrates, Joana, Bruno e Tiradentes falaram a mesma língua: a do sacrifício. E as velas da taverna, dizem, arderam mais fortes, como se pressentissem que a liberdade ainda demoraria, mas já tinha encontrado seus mártires.

Edson Pinto

Novembro, 2025

 

Nota do Autor

José Joaquim da Silva Xavier, o Tiradentes (1746–1792), alferes e dentista em Vila Rica, atual Ouro Preto, tornou-se o principal líder da Inconfidência Mineira. Enforcado e esquartejado, transformou-se em mártir da liberdade brasileira.

Sócrates (469–399 a.C.), filósofo grego, pai da maiêutica, foi condenado a beber cicuta por desafiar os costumes de Atenas. Sua morte voluntária tornou-se símbolo da fidelidade à verdade.

Joana d’Arc (1412–1431), camponesa francesa, guiada por visões místicas, liderou tropas contra os ingleses na Guerra dos Cem Anos. Julgada e queimada em Rouen, é lembrada como heroína e santa.

Giordano Bruno (1548–1600), filósofo italiano, defendeu a infinitude do universo e a multiplicidade dos mundos. Condenado pela Inquisição, morreu na fogueira em Roma, tornando-se emblema da liberdade de pensamento.

Quatro figuras distantes no tempo e no espaço, mas reunidas pelo mesmo fio: a coragem de enfrentar o poder e a certeza de que a morte pode ser apenas o prólogo da liberdade.