Há
artistas que pintam quadros, e há os que pintam destinos. Os primeiros usam
tintas e os segundos, ou a genialidade,
ou o humanismo, a sensibilidade musical, a criatividade literária ou até mesmo
outras formas nobres de expressão. Há,
ainda, os que, pelo bem da sociedade, dão o próprio sangue. Entre estes, estão Sócrates,
Joana d’Arc, Giordano Bruno e Joaquim José da Silva Xavier, o nosso mineiríssimo,
Tiradentes.
Neste
décimo sétimo e último miniconto da série “Artistas Perdidos em Minas”, os
quatro se reúnem na eternidade para conversar sobre o que há de comum entre o
pensamento, a fé, o cosmos e a liberdade. São artistas trágicos, criadores do
espírito humano, que fizeram da dor um espetáculo de consciência. Os três de
fora vão ter-se com Tiradentes na Vila
Rica antes de tornar-se a conhecida Ouro Preto.
Sócrates,
o escultor das ideias, ensinou a arte do diálogo e morreu fiel à verdade. Joana
d’Arc, atriz da fé, encenou a coragem de um povo diante da fogueira. Giordano
Bruno, poeta do infinito, imaginou um universo sem muros. E Tiradentes, o
mineiro da utopia, fez da própria forca um altar da liberdade. Cada um, à sua
maneira, foi um artista da existência, moldando o mundo com gestos que nem o
tempo apagou.
Assim
se encerra esta jornada pelos “Artistas Perdidos em Minas”, essa série de
minicontos que escrevi e publiquei no blog ao longo de pouco mais de quatro
meses para dar poesia aos becos da história e da alma da mineiridade que
conservo em mim.
Que
o leitor amigo, ao final desta travessia, perceba que a arte não mora apenas
nas mãos dos que pintam, mas também nas almas que ousam criar o impossível.
Minas Gerais foi e continua sendo campo fértil onde brota fácil a arte em todas
as sua formas.
Encerro
aqui minha caminhada pelos “Artistas Perdidos em Minas”. Foram dezessete
minicontos, todos na forma de encontros imaginários entre personalidades
mundialmente famosos com suas contrapartes mineiras. Dezessete lampejos de
humanidade que procurei registrar com o olhar de quem ainda acredita que a arte
é uma forma de salvação. Minas foi o cenário, mas o tema foi o espírito humano,
esse mineiro silencioso que, mesmo sem palco, continua criando sentido no meio
da vida. O conto vai a seguir:
Edson Pinto
Novembro, 2025
__________________________________________
(17º e último miniconto da série)
Naquela noite abafada de Vila Rica, o vento parecia segredar pelas frestas da antiga taverna desativada. Os Inconfidentes estavam reunidos, cada qual com o coração mais aceso que a vela tremulante. Tiradentes, de olhar inflamado, conduzia a fala:
—
Senhores, a hora se aproxima. O jugo de além-mar é ferro em nossas costas.
Precisamos decidir.
Foi
então que se ouviu uma batida seca à porta. Um silêncio de navalha percorreu a
sala. Alguém sussurrou:
—
E se for um espião?
Tiradentes
ergueu a mão:
—
Perguntem a senha.
Do
lado de fora, uma voz firme respondeu:
—
UAI.
Os
conjurados se entreolharam e sorriram: aquela palavra simples, tão mineira, era
o pacto secreto. A porta se abriu.
Entraram,
para espanto geral, três figuras improváveis: um homem de túnica grega, barba
cerrada e olhar de pedra. Era Sócrates; uma donzela de armadura reluzente, que
parecia ter vindo diretamente de Orleans. era Joana d’Arc; e um frade italiano,
de olhos que ardiam como brasas no escuro. Era Giordano Bruno.
O
tempo, ali, pareceu dobrar-se como folha de papel.
—
Viemos para conversar com José Joaquim da Silva Xavier, vulgo Tiradentes, disse
Sócrates, como quem começa uma aporia.
—
E para lembrar, acrescentou Joana, que a liberdade é paga com o fogo da
coragem.
—
Ou com o fogo literal, murmurou Bruno, sorrindo amargo.
Os
Inconfidentes, atônitos, cederam espaço. A taverna virou ágora, virou praça,
virou tribunal secreto. E o diálogo começou.
Sócrates
inquiriu Tiradentes sobre a justiça:
—
Dize-me, mineiro, que liberdade desejais? A de não pagar tributos? Ou a de
governar a si mesmos?
Joana
ergueu a voz:
—
Não basta desejar. É preciso conduzir o povo, mesmo que zombem, mesmo que
condenem.
Bruno
concluiu:
—
A ideia é maior que o corpo. Se caíres, José Joaquim, tua morte será centelha
para outras fogueiras.
Tiradentes
ouviu, sorveu cada palavra como quem bebe o último gole de esperança.
—
Então que seja assim, disse, batendo o punho na mesa. A liberdade não se
negocia.
Os
conjurados vibraram. Tudo parecia alinhar-se: o plano, a coragem, até a benção
dos mortos ilustres. Mas o destino, sempre irônico, plantara ali um rosto
dissimulado. Joaquim Silvério dos Reis, o traidor, já alimentava em silêncio
sua denúncia. O ouro do delator brilhava mais que qualquer ideia.
Naquela
noite, porém, por um instante, Vila Rica foi o centro do mundo. Sócrates,
Joana, Bruno e Tiradentes falaram a mesma língua: a do sacrifício. E as velas
da taverna, dizem, arderam mais fortes, como se pressentissem que a liberdade
ainda demoraria, mas já tinha encontrado seus mártires.
Edson Pinto
Novembro,
2025
Nota do Autor
José Joaquim da Silva Xavier, o Tiradentes (1746–1792), alferes e dentista em
Vila Rica, atual Ouro Preto, tornou-se o principal líder da Inconfidência
Mineira. Enforcado e esquartejado, transformou-se em mártir da liberdade
brasileira.
Sócrates (469–399 a.C.), filósofo grego, pai da maiêutica, foi
condenado a beber cicuta por desafiar os costumes de Atenas. Sua morte
voluntária tornou-se símbolo da fidelidade à verdade.
Joana d’Arc (1412–1431), camponesa francesa, guiada por visões
místicas, liderou tropas contra os ingleses na Guerra dos Cem Anos. Julgada e
queimada em Rouen, é lembrada como heroína e santa.
Giordano Bruno (1548–1600), filósofo italiano,
defendeu a infinitude do universo e a multiplicidade dos mundos. Condenado pela
Inquisição, morreu na fogueira em Roma, tornando-se emblema da liberdade de
pensamento.
Quatro
figuras distantes no tempo e no espaço, mas reunidas pelo mesmo fio: a coragem
de enfrentar o poder e a certeza de que a morte pode ser apenas o prólogo da
liberdade.

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