__ Ufa! Dia igual a esse difícil de se repetir, reclamou Euzébio ao entrar em casa após uma exaustiva jornada de trabalho. Tinha toda a razão: Levantara às 5 da manhã, pois a primeira reunião aconteceria às 8, em ponto. Lá estivera todo o pessoal envolvido com o novo produto que a empresa necessitava lançar em breve. Ele, mais do que ninguém, estava visceralmente alojado no assunto, uma vez que fora escolhido como o líder do projeto. Diziam, até mesmo, que sua carreira deslancharia célere caso o produto se tornasse o sucesso que todos esperavam.
Não conseguiu almoçar. A reunião se estendera mais do que o previsto e nova discussão, agora com fornecedores, na fábrica, já às 14 horas. Pegou um sanduíche frio e equilibrando uma garrafa de refrigerante dirigiu-se, de carro, por mais de 1 hora até o local do segundo encontro do dia. Temas com acertos de preços, prazos, qualidade da matéria-prima e outros estenderam as negociações até próximo das 7 da noite.
Mais 2 horas de volta até a sua casa. Ainda tinha que tomar banho, jantar, falar um pouco com Márcia, sua esposa e – para não trair o seu recente propósito de dar mais atenção aos filhos – conversar amenidades com Mariana, 12 e Juliano 10 anos. Não deitava antes de se atualizar com um dos jornais da TV. Naquela noite – de tão cansado que se encontrava – já tinha até decidido não assistir deitado na cama, o programa do Jô, outra de suas manias antes da entrega plena aos braços de Orfeu. E o pior: a reunião crucial para finalização do projeto a ser, a curtíssimo prazo, apresentado à presidência da empresa. Havia, contudo, uma pendência muito séria colocada pela turma do Marketing e que – se não satisfatoriamente resolvida - colocaria tudo em risco e, por extensão, até mesmo a tão acalentada decolagem de sua carreira.
Mal a dupla de apresentadores do jornal dissera “Boa-noite!”, Euzébio desliga a TV, faz a sua rotineira e rápida oração, beija Márcia que já estava dormindo e assume a sua indefectível posição de repouso com uma perna esticada e outra encolhida até o ventre. O dia fora duro, mas reconforta-se ao convencer-se da inexistência de algo melhor do que uma cama confortável, como aquela, para recompensá-lo pelo dia agitado que tivera.
O zumbido de um pernilongo corta o silêncio do quarto e se aproxima - cada vez mais - de seu desprotegido ouvido direito. A impressão era de que aquilo fosse uma artimanha do vil inseto para testar-lhe a condição de um ser ainda não adormecido. Se já dormindo, ai meu bom Deus! Picada na certa e, no outro dia, era só perceber os pontos avermelhados que ficariam no seu rosto, como de vezes anteriores. Não era justo permitir que aquele intruso barulhento tenha vindo apenas para sugar-lhe o sangue, por nada e impunemente. A empresa, o trabalho, a família, o trânsito ainda vá lá, mas um insignificante e repulsivo inseto, isso já era demais...
Levanta-se de sobressalto, vai até o banheiro e pega a toalha, que por ter sido recentemente usada, tinha o peso e a textura adequados para a tarefa de massacrar impiedosamente o indesejável visitante. Acende as luzes, desperta, obviamente sem intenção, Márcia e começa a esquadrinhar cada centímetro das paredes, do teto, sacode a cortina e nada. Decide deitar outra vez, mas já com a toalha devidamente posicionada ao seu lado. Novo ataque. Ele pragueja; dá novo salto e nova caçada é empreendida. Mais 30 minutos, agora incluindo "toalhadas" giratórias sob a cama e – de novo – nada. Sucedem-se 3 outras vezes a mesma cena. Em apenas uma delas teve a fugaz impressão de ter visto o pernilongo se movimentando de um lado ao outro do quarto, mas quase que por encanto ter desaparecido sem deixar o menor vestígio.
Três horas da manhã, Euzébio ainda acordado, exausto, aborrecido e derrotado por aquele inseto nauseabundo e – diga-se, francamente - desprovido de qualquer escrúpulo por insistir em roubar-lhe tanto a tranqüilidade como o sangue de homem batalhador como era. Tentava inutilmente encontrar alguma utilidade para os pernilongos: Se os morcegos - que ele também detestava e abominava - eram úteis como polinizadores e dispersores de sementes tão vitais para o equilíbrio dos ecossistemas, talvez os pernilongos tivessem alguma contrapartida igualmente compensatória. Nada; nadinha; e isso só aumentava o ódio de Euzébio para com o seu maior inimigo do momento. Agora, já tinha se tornado uma questão de honra: __ Ou ele ou eu, vociferou, enquanto Márcia, indiferente ao drama de Euzébio, volta-se para o canto e dorme.
Meticuloso e disciplinado no trabalho, decidiu dar àquela tormentosa situação um tratamento adequado e eficaz como sempre fazia com as questões que se lhe apresentavam no dia-a-dia da empresa. Era, em primeiro lugar, necessário entender pela luz da Ciência o que leva os pernilongos a agirem de forma tão inconveniente. E a partir daí, sim, neutralizar-lhes a atuação de demolidores irresponsáveis dos sonos alheios.
Vai à estante de sua sala e toma ansiosamente a Enciclopédia: “Pernilongo, inseto da subordem Nematocera, alimenta-se do sangue dos vertebrados, incluindo o humano, para maturar seu ovário antes de pôr os ovos; o zumbido é provocado pelo bater das asas da fêmea atraída pelo CO2 (gás carbônico) que exalamos de nosso corpo, etc., etc..” Claro que outros já haviam pesquisado essas coisas, pensou frustrado enquanto enumerava mentalmente soluções já disponíveis e que ele – infelizmente - não dispunha naquele momento: uma raquetinha que eliminasse o pernilongo com um choque vingador, seria uma boa, mas só se o pernilongo se apresentasse fisicamente, mas aquele maldito espertinho do momento era dissimulado, furtivo que só vendo. Um repelente, um fuminho de citronela, um filó ao estilo daquelas camas medievais que se vê nos museus? Pensou em tudo, porém nada disponível. __ Vou deitar, e seja lá o que Deus quiser. Daqui a pouco tenho que me levantar e - pior de tudo - uma pendência aparentemente insolúvel me aguarda, desafiadora, já na primeira hora do dia de trabalho.
Deita, cobre a cabeça com o lençol e finge não ligar para o calor insuportável daquele verão. Quase sem esforço, vem-lhe a mente duas das informações que a Enciclopédia havia lhe fornecido: quem ataca é o pernilongo fêmea, vou chamá-lo de “pernilonga”, pensou; e o que a atraí é a liberação que nosso corpo faz do gás carbônico. Repassou-as algumas vezes e dormiu. Mal e pouco, mas dormiu. Não deve ter sido picado pela Nematocera oculta, talvez porque rivalizasse com Márcia, pois, quando acordou, ela ria ao dizer que ele a fez lembrar um saco de batatas, tal era a forma em que se encontrava: empacotado e ausente. Se não serviu à pernilonga, tampouco serviu à Márcia...
Chega ao escritório com olheiras típicas de uma noite mal dormida. __ E então Euzébio, pergunta um dos colegas mais afoitos da equipe: __ Será que conseguiremos sanar a pendência relacionada com a falta de atratividade provocada pelo produto? __ Lembre-se, Euzébio, falou outro: __ Se as mulheres não se sentirem atraídas por ele como poderão azucrinar os seus maridos para usá-lo? __ Elas precisam estar tão interessadas a ponto de ficarem zumbindo em suas orelhas até que eles tomem ações pra valer, completou outro membro da equipe mais afeito aos temas lascivos inerentes à psicologia do consumidor.
Para Euzébio tudo aquilo parecia um pesadelo: A noite mal dormida, porque uma “pernilonga” atraída pela sua liberação de gás carbônico ficava zumbindo em seu ouvido e agora...
__ Espera aí pessoal, gritou com tamanho entusiasmo que até parecia ter dormido muito bem por pelo menos 24 horas. __ Tenho a solução. Nunca me perguntem o porquê, e se um dia o fizerem, jamais revelarei a origem da minha idéia. __ Mãos à obra, turma! __ Vamos colocar uma essência artificial que simule o odor do gás carbônico em nosso novo sabonete.
O produto foi testado, virou um sucesso de vendas e Euzébio tornou-se o Diretor de Novos Produtos da empresa. Ganhou substancial aumento de salário, regalias e a fama de grande inovador. Pediu merecidas férias. Foi flagrado, pelos filhos curiosamente vexados quando adentraram ao quarto para o beijo de boa-noite, abraçadinho com Márcia. Na TV ligada, Jô Soares esbanjava exuberância descendo rebolativo de seu tão inútil quanto modorrento elevadorzinho cênico. Enquanto isso, Euzébio filosofava:
__ É querida, às vezes fico pensando como os pernilongos, apesar do seu ruído infernal, podem mudar as nossas vidas para melhor. Ela nada entendeu, nem queria. Achegou-se com olhar lânguido, não disse boa-noite por que não era hora e zumbiu-se como nunca.
Euzébio, com os olhos revoltos e brilhando de felicidade, procurava inutilmente nas paredes escuras do quarto, uma Nematocera, qualquer que fosse, apenas para – penso – dizer-lhe que naquela noite seus ouvidos já se encontravam ocupados...
Edson Pinto
Não conseguiu almoçar. A reunião se estendera mais do que o previsto e nova discussão, agora com fornecedores, na fábrica, já às 14 horas. Pegou um sanduíche frio e equilibrando uma garrafa de refrigerante dirigiu-se, de carro, por mais de 1 hora até o local do segundo encontro do dia. Temas com acertos de preços, prazos, qualidade da matéria-prima e outros estenderam as negociações até próximo das 7 da noite.
Mais 2 horas de volta até a sua casa. Ainda tinha que tomar banho, jantar, falar um pouco com Márcia, sua esposa e – para não trair o seu recente propósito de dar mais atenção aos filhos – conversar amenidades com Mariana, 12 e Juliano 10 anos. Não deitava antes de se atualizar com um dos jornais da TV. Naquela noite – de tão cansado que se encontrava – já tinha até decidido não assistir deitado na cama, o programa do Jô, outra de suas manias antes da entrega plena aos braços de Orfeu. E o pior: a reunião crucial para finalização do projeto a ser, a curtíssimo prazo, apresentado à presidência da empresa. Havia, contudo, uma pendência muito séria colocada pela turma do Marketing e que – se não satisfatoriamente resolvida - colocaria tudo em risco e, por extensão, até mesmo a tão acalentada decolagem de sua carreira.
Mal a dupla de apresentadores do jornal dissera “Boa-noite!”, Euzébio desliga a TV, faz a sua rotineira e rápida oração, beija Márcia que já estava dormindo e assume a sua indefectível posição de repouso com uma perna esticada e outra encolhida até o ventre. O dia fora duro, mas reconforta-se ao convencer-se da inexistência de algo melhor do que uma cama confortável, como aquela, para recompensá-lo pelo dia agitado que tivera.
O zumbido de um pernilongo corta o silêncio do quarto e se aproxima - cada vez mais - de seu desprotegido ouvido direito. A impressão era de que aquilo fosse uma artimanha do vil inseto para testar-lhe a condição de um ser ainda não adormecido. Se já dormindo, ai meu bom Deus! Picada na certa e, no outro dia, era só perceber os pontos avermelhados que ficariam no seu rosto, como de vezes anteriores. Não era justo permitir que aquele intruso barulhento tenha vindo apenas para sugar-lhe o sangue, por nada e impunemente. A empresa, o trabalho, a família, o trânsito ainda vá lá, mas um insignificante e repulsivo inseto, isso já era demais...
Levanta-se de sobressalto, vai até o banheiro e pega a toalha, que por ter sido recentemente usada, tinha o peso e a textura adequados para a tarefa de massacrar impiedosamente o indesejável visitante. Acende as luzes, desperta, obviamente sem intenção, Márcia e começa a esquadrinhar cada centímetro das paredes, do teto, sacode a cortina e nada. Decide deitar outra vez, mas já com a toalha devidamente posicionada ao seu lado. Novo ataque. Ele pragueja; dá novo salto e nova caçada é empreendida. Mais 30 minutos, agora incluindo "toalhadas" giratórias sob a cama e – de novo – nada. Sucedem-se 3 outras vezes a mesma cena. Em apenas uma delas teve a fugaz impressão de ter visto o pernilongo se movimentando de um lado ao outro do quarto, mas quase que por encanto ter desaparecido sem deixar o menor vestígio.
Três horas da manhã, Euzébio ainda acordado, exausto, aborrecido e derrotado por aquele inseto nauseabundo e – diga-se, francamente - desprovido de qualquer escrúpulo por insistir em roubar-lhe tanto a tranqüilidade como o sangue de homem batalhador como era. Tentava inutilmente encontrar alguma utilidade para os pernilongos: Se os morcegos - que ele também detestava e abominava - eram úteis como polinizadores e dispersores de sementes tão vitais para o equilíbrio dos ecossistemas, talvez os pernilongos tivessem alguma contrapartida igualmente compensatória. Nada; nadinha; e isso só aumentava o ódio de Euzébio para com o seu maior inimigo do momento. Agora, já tinha se tornado uma questão de honra: __ Ou ele ou eu, vociferou, enquanto Márcia, indiferente ao drama de Euzébio, volta-se para o canto e dorme.
Meticuloso e disciplinado no trabalho, decidiu dar àquela tormentosa situação um tratamento adequado e eficaz como sempre fazia com as questões que se lhe apresentavam no dia-a-dia da empresa. Era, em primeiro lugar, necessário entender pela luz da Ciência o que leva os pernilongos a agirem de forma tão inconveniente. E a partir daí, sim, neutralizar-lhes a atuação de demolidores irresponsáveis dos sonos alheios.
Vai à estante de sua sala e toma ansiosamente a Enciclopédia: “Pernilongo, inseto da subordem Nematocera, alimenta-se do sangue dos vertebrados, incluindo o humano, para maturar seu ovário antes de pôr os ovos; o zumbido é provocado pelo bater das asas da fêmea atraída pelo CO2 (gás carbônico) que exalamos de nosso corpo, etc., etc..” Claro que outros já haviam pesquisado essas coisas, pensou frustrado enquanto enumerava mentalmente soluções já disponíveis e que ele – infelizmente - não dispunha naquele momento: uma raquetinha que eliminasse o pernilongo com um choque vingador, seria uma boa, mas só se o pernilongo se apresentasse fisicamente, mas aquele maldito espertinho do momento era dissimulado, furtivo que só vendo. Um repelente, um fuminho de citronela, um filó ao estilo daquelas camas medievais que se vê nos museus? Pensou em tudo, porém nada disponível. __ Vou deitar, e seja lá o que Deus quiser. Daqui a pouco tenho que me levantar e - pior de tudo - uma pendência aparentemente insolúvel me aguarda, desafiadora, já na primeira hora do dia de trabalho.
Deita, cobre a cabeça com o lençol e finge não ligar para o calor insuportável daquele verão. Quase sem esforço, vem-lhe a mente duas das informações que a Enciclopédia havia lhe fornecido: quem ataca é o pernilongo fêmea, vou chamá-lo de “pernilonga”, pensou; e o que a atraí é a liberação que nosso corpo faz do gás carbônico. Repassou-as algumas vezes e dormiu. Mal e pouco, mas dormiu. Não deve ter sido picado pela Nematocera oculta, talvez porque rivalizasse com Márcia, pois, quando acordou, ela ria ao dizer que ele a fez lembrar um saco de batatas, tal era a forma em que se encontrava: empacotado e ausente. Se não serviu à pernilonga, tampouco serviu à Márcia...
Chega ao escritório com olheiras típicas de uma noite mal dormida. __ E então Euzébio, pergunta um dos colegas mais afoitos da equipe: __ Será que conseguiremos sanar a pendência relacionada com a falta de atratividade provocada pelo produto? __ Lembre-se, Euzébio, falou outro: __ Se as mulheres não se sentirem atraídas por ele como poderão azucrinar os seus maridos para usá-lo? __ Elas precisam estar tão interessadas a ponto de ficarem zumbindo em suas orelhas até que eles tomem ações pra valer, completou outro membro da equipe mais afeito aos temas lascivos inerentes à psicologia do consumidor.
Para Euzébio tudo aquilo parecia um pesadelo: A noite mal dormida, porque uma “pernilonga” atraída pela sua liberação de gás carbônico ficava zumbindo em seu ouvido e agora...
__ Espera aí pessoal, gritou com tamanho entusiasmo que até parecia ter dormido muito bem por pelo menos 24 horas. __ Tenho a solução. Nunca me perguntem o porquê, e se um dia o fizerem, jamais revelarei a origem da minha idéia. __ Mãos à obra, turma! __ Vamos colocar uma essência artificial que simule o odor do gás carbônico em nosso novo sabonete.
O produto foi testado, virou um sucesso de vendas e Euzébio tornou-se o Diretor de Novos Produtos da empresa. Ganhou substancial aumento de salário, regalias e a fama de grande inovador. Pediu merecidas férias. Foi flagrado, pelos filhos curiosamente vexados quando adentraram ao quarto para o beijo de boa-noite, abraçadinho com Márcia. Na TV ligada, Jô Soares esbanjava exuberância descendo rebolativo de seu tão inútil quanto modorrento elevadorzinho cênico. Enquanto isso, Euzébio filosofava:
__ É querida, às vezes fico pensando como os pernilongos, apesar do seu ruído infernal, podem mudar as nossas vidas para melhor. Ela nada entendeu, nem queria. Achegou-se com olhar lânguido, não disse boa-noite por que não era hora e zumbiu-se como nunca.
Euzébio, com os olhos revoltos e brilhando de felicidade, procurava inutilmente nas paredes escuras do quarto, uma Nematocera, qualquer que fosse, apenas para – penso – dizer-lhe que naquela noite seus ouvidos já se encontravam ocupados...
Edson Pinto
postado em 04/07/08
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