22 de jul. de 2008

35) BOSSA NOVA, VIDA NOVA (julho'08)

Este conto participou no concurso de contos do O Estado de São Paulo pela comemoração dos 50 anos da Bossa Nova. O pré-requisito era encaixar a frase simbolo da Bossa Nova: "não quero mais esse negócio de você longe de mim".
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O caminhão da mudança deu um gemido seco procurando apoio na guia da calçada. Mesmo assim, o esperto ajudante de seu José pulou da carroceria já com dois tocos de madeira nas mãos e calçou as rodas traseiras do Ford, anos 40, que levava nossa mudança para a casa novinha em folha.

Papai e mamãe, agora pasmos de encanto, pulam da boléia antes mesmo que o motor barulhento daquele monstrengo parasse de roncar. Na carroceria, aberta ao vento, meu irmão, minha irmã e eu, completamente deslumbrados, ainda nos esforçávamos para evitar que a surrada penteadeira de espelho manchado pela umidade do tempo tombasse sobre a tralhoada. Eram todos os bens que tínhamos, mas a alegria que nos invadia a alma era infinda e sem paralelo em qualquer outro momento que a árdua vida nos reservara até então.

Era final de agosto de 1958, Belo Horizonte, e os ex-combatentes da FEB, como era meu pai, recebiam, com aquela casa financiada em longo prazo, o que consideravam ser a primeira atenção do governo brasileiro pela sua heróica participação na campanha que ajudou a extirpar o Nazismo, este, responsável pelo mais sangrento conflito de todos os tempos, a Segunda Guerra Mundial.

O bairro era novo, centenas de casas com jardins na frente e um modesto quintal fazendo fundos com outras casas, todas iguais e aparentemente - para o garoto de nove anos que eu era - cheio de gente do meu tamanho. A chegada de uma nova família era uma alegria coletiva. Os que já estavam lá acenavam e a garotada acorria, tanto para ajudar na descarga da mudança como, principalmente, para buscar o entrosamento que perduraria por tão longos anos.

Da casa em frente, a vitrola deixava escapar pela janela, agora escancarada como se fosse para nos dar boas-vindas, a voz rouca de João Gilberto em “Chega de Saudade”. Ainda curtíamos a primeira Copa do Mundo, os gênios Pelé e Garrincha, Juscelino construía Brasília e nos ufanávamos da ousadia de crescer 50 em 5. Tínhamos certeza de que novos e bons tempos estavam por vir...

Naquela mesma janela de onde ecoava a Bossa Nova, meus olhos se depararam pela primeira vez com o olhar arisco da menina de fita branca no cabelo que observava atentamente cada movimento dos novos vizinhos, ao mesmo tempo em repetia, quase que instintivamente, a canção que viria marcar para sempre as nossas, ainda tão jovens, vidas.

Quase vinte intensos anos naquele lugar. Amigos que chegaram; amigos que se foram; o irmão que a fatalidade levou para sempre; os primeiros casamentos da turma; o time de futebol; o jornalzinho do bairro; os bailinhos; os namoros mil e a despedida para a cidade ainda maior, porque a vida assim o quis.

E na selva de pedra, São Paulo, a imagem e o som que nunca haviam deixado minha memória tomam conta do coração solitário, porém repleto de sonhos; e volto ao meu bairro antigo para dizer de forma definitiva àquela menina de fita branca no cabelo que: “Não quero mais esse negócio de você longe de mim”.

Edson Pinto
postado em 22/07/08

2 comentários:

Anônimo disse...

Emocionante a sua homenagem pra Jane! Fico imaginando a cena que descreve uma vez que conheço os lugares, as casas

Anônimo disse...

E os conheci ainda jovens antes de se casarem... Lindo!