14 de nov. de 2025

353) O INVERNO DO CANIÇO PENSANTE

 (Reflexões de um avô que se dobra, mas não se quebra)

Há dias em que acordo com a sensação de que o corpo já não obedece à alma. Ou, talvez, seja a alma que, cansada, tenha resolvido se deitar mais cedo e por isso acorda antes do corpo. Noto um descompasso entre ambos. A alma quer voar, enquanto o corpo precisa destravar as articulações. É assim que se chega ao inverno das estações da vida, esse tempo em que o corpo encolhe, mas a mente, teimosa, continua a se esticar como quem quer alcançar o infinito.

E foi numa dessas manhãs em que o espelho me olhou com ironia que me lembrei de Blaise Pascal, o francês que nos comparou a um caniço pensante.

Ora! Pascal foi um desses homens que conseguiram a proeza de caber em várias gavetas ao mesmo tempo. Foi matemático, físico, inventor e, por fim, teólogo. Um gênio, portanto, mas também um melancólico que via o homem como um fiapo entre a lama e as estrelas.

Dizia ele que somos frágeis como um caniço (uma vara fina e quebradiça), dessas que o vento dobra, mas que tem a insolência de pensar. E é justamente aí que mora nossa grandeza.

Na minha infância e juventude, lá em Belo Horizonte, eu não entendia bem essa história. Caniço, para mim, era planta de beira de córrego, às vezes, usada  para  pescar outras vezes para cutucar formigueiros.

Pensar, eu já fazia demais, ainda que com os erros de quem acha que vai durar para sempre. Hoje percebo que Pascal tinha razão, ou seja, o corpo é um bambuzinho que o tempo vai afinando. Mas o pensamento… ah, o pensamento, ainda canta.

Lembro dos filhos que criei e dos netos que ainda correm pela casa, cada qual um rebento novo do mesmo caniço antigo. Todos pensantes, espero. E vejo em cada um deles essa mistura de fragilidade e coragem que Pascal tanto admirava, ou seja, a capacidade de ser pequeno e, mesmo assim, refletir sobre o universo.

Se eu fosse reescrever o pensamento de Pascal à luz da  minha própria experiência, diria que o homem é um caniço persistente. Ele pensa, apanha, insiste, e ainda agradece o vento que o dobra. É o vento, afinal, que nos mantém em movimento. Um caniço sem vento seria apenas uma vara parada. E o homem sem adversidade, um vegetal vaidoso.

O curioso é que, quanto mais o corpo se curva, mais a mente parece erguer-se. A cada fisgadinha  no ciático, descubro uma nova pergunta sobre o sentido das coisas. Talvez seja assim mesmo, isto é,  a resiliência do corpo é física, mas a resistência da mente é metafísica. Enquanto o corpo declina, o pensamento floresce, como se a natureza quisesse compensar uma coisa com a outra.

Hoje, olhando para trás, vejo que a vida inteira foi um ensaio para aprender a dobrar sem quebrar. O menino que virou gente grande, pai, avô e, por fim, cronista das próprias torções. Continuo me dobrando, é verdade, às juntas enferrujadas, às saudades, aos boletos. Mas ainda penso. E, enquanto pensar, serei digno da metáfora de Pascal.

No frigir dos ovos, temos que admitir que, ser um caniço pensante não é uma ofensa, é um elogio disfarçado. É admitir que somos frágeis, sim, mas não tolos. Que somos  vulneráveis, mas não vãos. E no dia que o vento nos levar, que leve junto as ideias que plantamosi. Quem sabe, em algum canto do tempo, outro caniço as escute e continue a pensar?

 Edson Pinto

Novembro, 2025



 Nota do Autor


Blaise Pascal (1623–1662) foi um dos grandes gênios franceses do século XVII. Matemático e físico precoce, inventou a primeira calculadora mecânica e lançou as bases da teoria das probabilidades. Mais tarde, aproximou-se da filosofia e da teologia, tornando-se um dos pensadores cristãos mais profundos de sua época. Em sua obra inacabada Pensées (Pensamentos), refletiu sobre a condição humana, essa estranha mistura de grandeza e miséria. Daí nasceu sua metáfora célebre: “O homem é um caniço, o mais fraco da natureza, mas é um caniço pensante.”, ou seja, somos frágeis como a erva, mas dotados de consciência, e é nesse pensamento que reside toda a nossa dignidade.


7 de nov. de 2025

352) MÁRTIRES HISTÓRICOS EM VILA RICA


 

Há artistas que pintam quadros, e há os que pintam destinos. Os primeiros usam tintas e os segundos, ou a  genialidade, ou o humanismo, a sensibilidade musical, a criatividade literária ou até mesmo outras formas nobres de expressão.  Há, ainda, os que, pelo bem da sociedade, dão o  próprio sangue. Entre estes, estão Sócrates, Joana d’Arc, Giordano Bruno e Joaquim José da Silva Xavier, o nosso mineiríssimo, Tiradentes.

Neste décimo sétimo e último miniconto da série “Artistas Perdidos em Minas”, os quatro se reúnem na eternidade para conversar sobre o que há de comum entre o pensamento, a fé, o cosmos e a liberdade. São artistas trágicos, criadores do espírito humano, que fizeram da dor um espetáculo de consciência. Os três de fora vão ter-se com Tiradentes  na Vila Rica antes de tornar-se a conhecida Ouro Preto.

Sócrates, o escultor das ideias, ensinou a arte do diálogo e morreu fiel à verdade. Joana d’Arc, atriz da fé, encenou a coragem de um povo diante da fogueira. Giordano Bruno, poeta do infinito, imaginou um universo sem muros. E Tiradentes, o mineiro da utopia, fez da própria forca um altar da liberdade. Cada um, à sua maneira, foi um artista da existência, moldando o mundo com gestos que nem o tempo apagou.

Assim se encerra esta jornada pelos “Artistas Perdidos em Minas”, essa série de minicontos que escrevi e publiquei no blog ao longo de pouco mais de quatro meses para dar poesia aos becos da história e da alma da mineiridade que conservo em mim.

Que o leitor amigo, ao final desta travessia, perceba que a arte não mora apenas nas mãos dos que pintam, mas também nas almas que ousam criar o impossível. Minas Gerais foi e continua sendo campo fértil onde brota fácil a arte em todas as sua formas. 

Encerro aqui minha caminhada pelos “Artistas Perdidos em Minas”. Foram dezessete minicontos, todos na forma de encontros imaginários entre personalidades mundialmente famosos com suas contrapartes mineiras. Dezessete lampejos de humanidade que procurei registrar com o olhar de quem ainda acredita que a arte é uma forma de salvação. Minas foi o cenário, mas o tema foi o espírito humano, esse mineiro silencioso que, mesmo sem palco, continua criando sentido no meio da vida. O conto vai a seguir:

Edson Pinto

Novembro, 2025

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(17º e último miniconto da série)

Naquela noite abafada de Vila Rica, o vento parecia segredar pelas frestas da antiga taverna desativada. Os Inconfidentes estavam reunidos, cada qual com o coração mais aceso que a vela tremulante. Tiradentes, de olhar inflamado, conduzia a fala:

— Senhores, a hora se aproxima. O jugo de além-mar é ferro em nossas costas. Precisamos decidir.

Foi então que se ouviu uma batida seca à porta. Um silêncio de navalha percorreu a sala. Alguém sussurrou:

— E se for um espião?

Tiradentes ergueu a mão:

— Perguntem a senha.

Do lado de fora, uma voz firme respondeu:

— UAI.

Os conjurados se entreolharam e sorriram: aquela palavra simples, tão mineira, era o pacto secreto. A porta se abriu.

Entraram, para espanto geral, três figuras improváveis: um homem de túnica grega, barba cerrada e olhar de pedra. Era Sócrates; uma donzela de armadura reluzente, que parecia ter vindo diretamente de Orleans. era Joana d’Arc; e um frade italiano, de olhos que ardiam como brasas no escuro. Era Giordano Bruno.

O tempo, ali, pareceu dobrar-se como folha de papel.

— Viemos para conversar com José Joaquim da Silva Xavier, vulgo Tiradentes, disse Sócrates, como quem começa uma aporia.

— E para lembrar, acrescentou Joana, que a liberdade é paga com o fogo da coragem.

— Ou com o fogo literal, murmurou Bruno, sorrindo amargo.

Os Inconfidentes, atônitos, cederam espaço. A taverna virou ágora, virou praça, virou tribunal secreto. E o diálogo começou.

Sócrates inquiriu Tiradentes sobre a justiça:

— Dize-me, mineiro, que liberdade desejais? A de não pagar tributos? Ou a de governar a si mesmos?

Joana ergueu a voz:

— Não basta desejar. É preciso conduzir o povo, mesmo que zombem, mesmo que condenem.

Bruno concluiu:

— A ideia é maior que o corpo. Se caíres, José Joaquim, tua morte será centelha para outras fogueiras.

Tiradentes ouviu, sorveu cada palavra como quem bebe o último gole de esperança.

— Então que seja assim, disse, batendo o punho na mesa. A liberdade não se negocia.

Os conjurados vibraram. Tudo parecia alinhar-se: o plano, a coragem, até a benção dos mortos ilustres. Mas o destino, sempre irônico, plantara ali um rosto dissimulado. Joaquim Silvério dos Reis, o traidor, já alimentava em silêncio sua denúncia. O ouro do delator brilhava mais que qualquer ideia.

Naquela noite, porém, por um instante, Vila Rica foi o centro do mundo. Sócrates, Joana, Bruno e Tiradentes falaram a mesma língua: a do sacrifício. E as velas da taverna, dizem, arderam mais fortes, como se pressentissem que a liberdade ainda demoraria, mas já tinha encontrado seus mártires.

Edson Pinto

Novembro, 2025

 

Nota do Autor

José Joaquim da Silva Xavier, o Tiradentes (1746–1792), alferes e dentista em Vila Rica, atual Ouro Preto, tornou-se o principal líder da Inconfidência Mineira. Enforcado e esquartejado, transformou-se em mártir da liberdade brasileira.

Sócrates (469–399 a.C.), filósofo grego, pai da maiêutica, foi condenado a beber cicuta por desafiar os costumes de Atenas. Sua morte voluntária tornou-se símbolo da fidelidade à verdade.

Joana d’Arc (1412–1431), camponesa francesa, guiada por visões místicas, liderou tropas contra os ingleses na Guerra dos Cem Anos. Julgada e queimada em Rouen, é lembrada como heroína e santa.

Giordano Bruno (1548–1600), filósofo italiano, defendeu a infinitude do universo e a multiplicidade dos mundos. Condenado pela Inquisição, morreu na fogueira em Roma, tornando-se emblema da liberdade de pensamento.

Quatro figuras distantes no tempo e no espaço, mas reunidas pelo mesmo fio: a coragem de enfrentar o poder e a certeza de que a morte pode ser apenas o prólogo da liberdade.



31 de out. de 2025

351) FRIDA KAHLO EM ARAXÁ



Chegou envolta num xale vermelho, com flores no cabelo e uma mala que parecia pesar mais de lembranças que de roupas.

A cidade era Araxá. O céu, de um azul quase mineral. E o ar , espesso como saudade.

Frida Kahlo desceu do trem como quem não procura nada, mas está pronta para encontrar tudo. Andou pelas ruas de calçamento, sentindo nos pés a firmeza da terra que guardava segredos. Ali, diziam, vivera uma mulher de nome sussurrado entre lendas e escândalos: Dona Beja. Frida ouviu o nome pela primeira vez num mercado, quando uma senhora lhe ofereceu uma goiabada e disse:

— Esta terra é de mulheres fortes, minha filha. Aqui até a vergonha tem orgulho.

Intrigada, Frida caminhou até o antigo casarão onde Beja vivera.

Lá, em silêncio, tocou a parede com a palma da mão como se esperasse ouvir um eco vindo de séculos.

E ouviu...

Não com os ouvidos, mas com os ossos.

Sentiu uma presença quente, decidida, como se o passado estivesse sentada num divã bordado.

— E você? Veio sofrer ou provocar?, disse uma voz doce, mas com lâmina por dentro.

Frida virou-se e viu Beja, vestida de branco, os olhos vivos como brasas, sentada em uma cadeira de balanço que não balançava.

— Ambas as coisas. A dor me visita, mas quem decide o chá sou eu, respondeu Frida.

As duas se olharam por longos segundos. Não havia estranheza, só reconhecimento.

— Aqui fui amada e odiada. Beijei e bati. Fui desejo e escândalo.

— No México também. Me chamaram de louca, de feia, de santa e de mural.

— Disseram que eu era fácil.

— Disseram que eu era difícil.

— Eu cavalguei homens com meu nome.

— Eu cavalguei a dor com meu pincel.

Beja se levantou. Caminhou até Frida com a leveza de quem já não carrega corpo, apenas memória. Pegou uma flor do cabelo da pintora e disse:

— Deixa isso no meu túmulo, quando fores embora. Assim saberão que estive viva também depois da morte.

Frida assentiu.

Naquela noite, pintou um retrato imaginário: duas mulheres, uma com espelhos no ventre, outra com ferraduras nos olhos.

Chamou o quadro de “As que não pediram permissão”.

Dizem que, antes de partir, Frida caminhou até o antigo cemitério e deixou a flor sobre a lápide de Dona Beja, sussurrando em espanhol:

“A liberdade sempre encontra um corpo. E um nome.”

 

Edson Pinto

Outubro, 2025

 

Nota do autor

Frida Kahlo (1907–1954) foi uma pintora mexicana que transformou sua dor física e emocional em arte intensa e visceral. Símbolo da força feminina e da autoexpressão, pintou a si mesma como quem se reconstrói.

Dona Beja (Ana Jacinta de São José, 1800–1873) foi uma figura lendária de Araxá, conhecida por sua beleza, inteligência e espírito livre. Desafiou as convenções sociais de seu tempo, foi amante e empreendedora, admirada e condenada. Hoje é lembrada como símbolo da mulher que não se curva. 

24 de out. de 2025

350) MONET EM AIMORÉS

 

Aimorés acordava aos poucos. A luz ainda hesitava nas serras, e as árvores balançavam devagar, como se testassem o vento do dia.

Lá estava ele: Sebastião Salgado, de chapéu, barba por fazer e olhos que pareciam guardar o mundo inteiro. Montava o tripé com a lentidão de quem sabe que a pressa não serve para nada diante da natureza.

Foi então que ouviu o som de passos suaves. Virou-se e viu um senhor de barbas brancas, paletó de linho, chapéu curvo e olhos lavados de azul.

— Bonjour, monsieur, disse o estranho, com um sorriso tímido.

— Bom dia... O senhor é de onde?

— Sou da França. Me chamo Claude Monet. Vim ver como a luz respira por aqui.

Salgado arregalou os olhos.

— Monet? O Monet dos nenúfares? Da catedral de Rouen? Da névoa de Londres?

Monet apenas sorriu. Apontou para o céu de Aimorés:

— Nunca pintei um céu como esse. Aqui, a luz parece brotar da terra, e não descer do céu.

Caminharam juntos por trilhas, pedras e veredas. Monet parava a cada flor, a cada reflexo d’água. Salgado, mais contido, buscava o ângulo que revelasse o silêncio por trás da beleza.

— O senhor vê cor demais, brincou Salgado.

— E você vê tudo que a cor esconde, respondeu Monet.

Pararam diante de um riacho onde crianças se banhavam entre risos. Monet sacou um pequeno caderno de esboços. Salgado ajustou a lente. E ali ficaram, capturando o mesmo instante por vias opostas, como dois músicos tocando partituras diferentes da mesma sinfonia.

— Eu pinto a luz.

— Eu fotografo a sombra.

— Mas no fundo, completou Monet, estamos tentando salvar o mesmo mundo da indiferença.

Antes do pôr do sol, Monet colheu uma flor do cerrado, pequena e tímida, de tom lilás.

— Guarde isso. É leve, mas contém a paleta de um continente.

Salgado agradeceu em silêncio.

Mais tarde, quando já não havia mais sinal do francês, Salgado revelaria suas fotos daquele dia e veria nelas algo de novo: uma luz macia, quase pictórica, como se a alma da terra tivesse passado por um pincel antes de chegar à lente.

 

Edson Pinto

Outubro, 2025

 Nota do autor

Claude Monet (1840–1926), pintor francês e um dos fundadores do impressionismo, dedicou-se a capturar as mudanças da luz e da atmosfera na natureza, criando séries que eternizaram momentos fugazes.

Sebastião Salgado (1944--2025), natural de Aimorés, MG, foi um dos maiores fotógrafos documentais do mundo. Sua obra retrata trabalhadores, povos esquecidos, desastres ambientais e a beleza do planeta, sempre com profundo humanismo e densidade estética.

17 de out. de 2025

349) O ENCONTRO NA PRAÇA DE CARATINGA

 

Era uma tarde clara, daquelas em que o sol mineiro se diverte em espalhar ouro por entre as folhas das mangueiras. A praça de Caratinga, tranquila e rotineira, parecia não esperar nada além do jogo de peão das crianças, o pregão da quitanda e o badalar da igreja. Mas o destino, esse grande desenhista de coincidências, tinha preparado uma charge para o mundo inteiro.

Ziraldo chegou primeiro, com seu sorriso mineiro e o Menino Maluquinho correndo à frente, panela na cabeça, como se fosse general de brinquedo. Sentou-se no banco, ajeitou os óculos e abriu o caderno de esboços. Eis que, não se sabe como, nem por onde, apareceu Quino, meio sério, carregando Mafalda pela mão. A menina, como sempre, resmungava contra a política, contra a guerra, contra a sopa e contra tudo que a contraria. Quino, argentino universal, trazia nos olhos a ironia das tiras que explicam o mundo melhor que tratados.

Ziraldo levantou-se, riu, e logo entendeu que ali se tramava alguma travessura do tempo. Apertaram-se as mãos como velhos amigos, embora nunca tivessem se visto. Conversaram de ditaduras, de censura, de como o humor é navalha embrulhada em papel de seda.

Foi quando, para surpresa maior, um senhor de cabelos lisos e expressão tímida aproximou-se, seguido por Charlie Brown, Lucy e, claro, Snoopy em sua casinha imaginária. Era Charles Schulz, que viera de muito longe e parecia encantado com aquele pedaço de Minas. “É aqui que mora o humor que fala a língua das crianças”, disse em seu inglês carregado de silêncio.

Os três sentaram-se lado a lado no banco da praça. O Menino Maluquinho provocava Snoopy, Mafalda discutia com Lucy, Charlie Brown coçava a cabeça tentando entender o português. E os autores, esses três pais de papel, riam-se uns dos outros, descobrindo que o desenho é a língua secreta da humanidade, mais universal que o latim e mais sincera que qualquer manifesto.

Ziraldo contou das serras, dos colégios, das crianças de rua que riam de tudo. Quino falou das assembleias argentinas, dos militares que temiam uma tirinha mais do que um discurso. Schulz confidenciou que a solidão americana era mais suportável quando virava traço. No fundo, perceberam: todos haviam desenhado a mesma coisa: o coração humano visto com olhos de criança.

A praça de Caratinga nunca mais foi a mesma. Alguns dizem que, quando o sol baixa e as sombras se alongam, ainda se ouvem risadas misturadas em três idiomas, vindas daquele banco de madeira. Talvez sejam apenas os meninos de peão, talvez não.

Edson Pinto

Outubro, 2025

 

Nota do Autor

Joaquín Salvador Lavado Tejón, o Quino (1932–2020), argentino de Mendoza, deu ao mundo Mafalda, a menina que perguntava ao poder o que os adultos não sabiam responder. Seu traço simples e profundo fez da tirinha um tratado universal sobre liberdade e justiça.

Charles Monroe Schulz (1922–2000), norte-americano de Minneapolis, criou Peanuts, a turma de Charlie Brown e Snoopy. Com melancolia e ternura, retratou a infância como metáfora da condição humana, em tiras que se tornaram parte da cultura mundial.

Ziraldo Alves Pinto (1932–2024), mineiro de Caratinga, foi cartunista, chargista, escritor e humorista gráfico. Criador do inesquecível Menino Maluquinho, suas ilustrações atravessaram a política, a infância e a crítica social, sempre com humor e poesia.

Três homens de diferentes terras, mas unidos por uma mesma vocação: transformar a criança, real ou imaginada, em voz da humanidade.

10 de out. de 2025

348) T. S. ELIOT EM ITABIRA


 Itabira acordava lenta, como sempre. O sino da matriz ainda guardava ecos, e a praça tinha cheiro de ferro e infância. Drummond, atrás de seus óculos grossos, observava o vazio. Havia pedras no caminho, claro, mas também poeira de mina, lembranças e uma solidão que lhe pesava no bolso do paletó.

De repente, um homem de terno escuro e rosto cansado surgiu, como se tivesse saído das páginas de um livro inglês. T. S. Eliot ajeitou o chapéu e sentou-se ao lado do poeta mineiro.

— O mundo terminou em estalos, não em explosões, disse Eliot, em inglês arrastado.

Drummond sorriu de canto.

— E o Brasil começou com pau-brasil e termina com minério escoado. Cada povo tem sua ruína.

Houve silêncio, até que Drummond abriu o bolso do paletó e retirou um papel amassado.

— Veja, Eliot, escrevi isto aqui, com o humor triste de Itabira:

Quadrilha: 

João amava Teresa / que amava Raimundo / que amava Maria / que amava Joaquim / que amava Lili / que não amava ninguém.  

João foi para os Estados Unidos, / Teresa para o convento, / Raimundo morreu de desastre, / Maria ficou para tia, / Joaquim suicidou-se / e Lili casou com J. Pinto Fernandes que não tinha entrado na história. 


Eliot leu devagar, quase soletrando. Depois ergueu os olhos:

— A futilidade das paixões… e a circularidade da vida. Na minha Londres devastada, vi algo parecido: homens ocos, existências quebradas, amores sem sentido.

Drummond ajeitou os óculos, com ironia mineira:

— É, Eliot. A vida parece uma brincadeira de roda, mas sempre falta alguém no meio. E quem entra por acaso, como esse J. Pinto Fernandes, vira o dono do enredo.

— The waste land of feelings, murmurou Eliot. O deserto das paixões.

— Ou, como digo, o “sentimento do mundo”, replicou Drummond. Todos buscando, ninguém encontrando.

Conversaram como quem troca pedras por ruínas. Eliot falava da Terra Devastada, dos homens ocos, do tempo quebrado. Drummond respondia com sua rosa do povo, com a solidão de Itabira, e agora com essa quadrilha de desencontros.

No fim, Eliot suspirou:

— After such knowledge, what forgiveness?

Drummond retrucou:

— No meio do caminho tinha uma pedra.

— E depois?, perguntou Eliot.

— Depois, continuamos tropeçando.

O sino da matriz bateu outra vez. Eliot se levantou e desapareceu pelas ladeiras. Drummond ficou, rascunhando em silêncio, como quem transforma ruína em poesia. Olhou em volta: a praça, a igreja, as pedras. Suspirou fundo e pensou consigo:

— Um dia deixarei Itabira. Irei para Belo Horizonte. E esta cidade será apenas um retrato na parede. A festa acabou, José. A festa acabou.

 

Edson Pinto

Outubro, 2025

 

Nota do Autor

Carlos Drummond de Andrade (1902–1987), mineiro de Itabira, é considerado o maior poeta brasileiro do século XX. Modernista, mestre da ironia e da intimidade, deu voz ao homem comum, às contradições do Brasil e às dores universais. Obras como Alguma Poesia, Sentimento do Mundo e A Rosa do Povo marcaram sua trajetória.

Thomas Stearns Eliot (T. S. Eliot) (1888–1965), poeta e crítico anglo-americano, é uma das vozes mais influentes da poesia moderna. Autor de The Waste Land (A Terra Devastada), The Hollow Men (Os Homens Ocos) e Four Quartets (Quatro Quartetos), retratou o desencanto, a fragmentação e a busca espiritual do homem no século XX.

Dois poetas de terras distantes, mas próximos no olhar: ambos souberam transformar a ruína da vida moderna em pedra de poesia.


3 de out. de 2025

347) LOUIS PASTEUR EM OLIVEIRA

Em Minas, costuma-se dizer que tudo se resume à arte: o barro de Congonhas, a poesia de Drummond, as curvas de Niemeyer, o bordado das rezas nas procissões. Mas há que se corrigir o equívoco: mineiro não vive só de música, pintura ou escultura. Há também a ciência, essa arte sem moldura, invisível e muitas vezes ingrata.

E se a França ostenta um Pasteur, Minas guarda um Chagas, que não compôs sonata nem pintou paisagem, mas arrancou do escuro dos sertões um mal que dormia nas frestas das casas de pau-a-pique.

Foi numa tarde imaginária, como convém às boas histórias, que um estrangeiro de barbas célebres apareceu na praça de Oliveira. O sino da matriz repicava, os meninos corriam atrás de pião, e Carlos, ainda moço, observava um barbeiro dentro de uma caixinha de vidro, como quem vigia um segredo prestes a escapar.

— Meu rapaz, disse o francês, ajeitando a gravata que parecia deslocada na poeira mineira

— Também procura nos seres minúsculos as tragédias dos homens?

Chagas ergueu os olhos, com aquele ar meio sério, meio desconfiado que é próprio da montanha:

— Procuro, sim.

__ Dentro desse inseto feio, que o povo nem sempre nota, mora um inimigo invisível, prosseguiu Chagas. Descobri que ele carrega um protozoário, o Trypanosoma cruzi, capaz de transformar a infância em cansaço e o coração em peso. Observei os bichos de laboratório, vi as febres, comparei com as crianças das vilas. O ciclo está todo aqui: o inseto, o parasita, o homem e a doença.

Pasteur arqueou as sobrancelhas, como quem vê a si mesmo num espelho distante:

— Admirável! Eu precisei de anos e muitos ajudantes. O senhor, jovem e sozinho, fez uma sinfonia completa, regendo micróbios, insetos e sintomas como quem rege uma orquestra invisível.

Chagas baixou os olhos para o caderno:

— Mas a música que procuro não é de glória, é de utilidade. Quero que o menino que dorme em casa de barro acorde vivo e corra atrás de pião.

O sino repicou de novo, como para confirmar o contrato.

E o francês, já quase se desmanchando no ar, deixou-lhe um conselho que parecia mais uma bênção:

— A ciência, meu caro, não é propriedade, é herança. Não se guarda em cofre, distribui-se como pão. E o que descobriu aqui, neste canto de Minas, ecoará nos quatro cantos do mundo.

Dito isso, desapareceu. Ficou Carlos com seu caderno, a caixinha de vidro e a convicção de que também se escreve ciência em Minas. E que, às vezes, uma praça barroca pode ser tão universal quanto um laboratório de Paris.

 Edson Pinto

Outubro, 2025


Nota do Autor

Louis Pasteur (1822–1895) foi um cientista francês que revolucionou a medicina e a microbiologia. Descobriu os microrganismos responsáveis pela fermentação, desenvolveu vacinas contra a raiva e o antraz e inaugurou a era da higiene científica. Sua obra fez do invisível uma questão de saúde pública.

Carlos Chagas (1879–1934), médico e cientista mineiro, foi o único na história da medicina a descrever integralmente uma nova doença: identificou o parasita (Trypanosoma cruzi), o inseto transmissor (barbeiro), os sintomas clínicos e sua relação com a realidade social. Seu trabalho, feito quase solitariamente, uniu ciência e compaixão, inscrevendo Minas não apenas no mapa da arte, mas também no da ciência mundial.


26 de set. de 2025

346) EÇA DE QUEIROZ EM MONTES CLAROS


Diz-se que o trem noturno que cruzou o sertão mineiro naquela quinta-feira parou por engano em Montes Claros (ou seria Teumira?).

Mas quem o viu descer juraria que não havia engano algum: o cavalheiro de bigodes impecáveis, bengala aristocrática e olhar entre o cético e o lírico parecia saber exatamente onde estava. Era Eça de Queiroz.

Sim, o próprio, com sua elegância do século XIX e sua alma do futuro. Vinha de um longo e metafísico passeio por serras portuguesas, e agora, movido por um boato de montanha, buscava as Serras de Minas. Mais precisamente, queria encontrar Cyro dos Anjos.

— Ouvi dizer que ele vive em meio a arquivos, cafés e melancolias, confidenciou Eça à dona da pensão onde se hospedou. Dizem que escreve com a alma de quem arquiva sonhos.

Foi fácil encontrar o endereço: cartório, segundo andar, porta com rangido filosófico. Cyro o recebeu como quem recebe um irmão de outras páginas.

— Senhor Queiroz! Aqui? Em Montes Claros?

— Vim atrás do senhor. Dizem que só os mineiros sabem o que fazer com o silêncio.

Conversaram por horas. Eça queria saber de Minas: do tédio burocrático, dos cafés vespertinos, das mulheres que prometem pouco mas deixam muito. Cyro, por sua vez, queria entender Portugal: como se escreve com tanta ironia sem perder a doçura?

Num dado momento, os dois mudaram de tom.

Eça falou de Jacinto, o homem civilizado que reencontrou a alma entre as serras portuguesas. Cyro respondeu com Belmiro, o homem desacreditado que sonhava à beira da rotina mineira. E assim, sem que percebessem, Eça foi virando Jacinto, e Cyro, Belmiro. As palavras passaram a vir carregadas de personagens.

— Então o senhor acredita que a civilização nos roubou a simplicidade?, perguntou Cyro.

— Creio que a civilização nos ensinou a saudade do que nunca deveríamos ter perdido, respondeu Eça.

Subiram juntos até o Alto do Cruzeiro. Olharam a cidade embaçada pelo crepúsculo. O sino da matriz dobrou sem urgência.

— Minas é um espelho opaco de Tormes, disse Eça, com um sorriso discreto. Aqui, também se pode voltar a ser humano.

No dia seguinte, Eça partiu. Deixou com Cyro um exemplar amarelado de A Cidade e as Serras, com uma dedicatória que dizia: Ao cronista das serras brasileiras, com admiração fraterna de quem também se perdeu para se encontrar.

Cyro, por sua vez, anotou no seu diário:

“Recebi hoje a visita de um português desiludido e encantado. Conversamos como se fôssemos personagens um do outro. E, por algumas horas, Minas foi Lisboa, e Elmira, Tormes.”

Edson Pinto

Setembro, 2025

 

Nota do autor:

Eça de Queiroz (1845–1900), escritor português, é um dos maiores nomes do realismo em língua portuguesa. Autor de obras como Os Maias, O Primo Basílio e A Cidade e as Serras, combinou crítica social, ironia refinada e lirismo na construção de uma literatura elegante e penetrante.

Cyro dos Anjos (1906–1994), natural de Montes Claros, MG, destacou-se como romancista, cronista e memorialista. Seu livro O Amanuense Belmiro é considerado um marco da literatura mineira, com sua prosa introspectiva, filosófica e profundamente humana.

19 de set. de 2025

345) FRANZ KAFKA EM CORDISBURGO


Cordisburgo dormia.

Era tarde, ou cedo demais. O tipo de hora em que só os bichos e os mortos escutam.

Guimarães Rosa, de chapéu de aba mole, camisa de linho e olhos longes, caminhava devagar por uma trilha de terra batida. Trazia no bolso um caderninho com palavras ainda não inventadas.

Foi então que o viu.

Um homem magro, de terno escuro e olhar espantado, como se estivesse perdido entre realidades. Sentado numa pedra, franzindo o cenho como quem tenta decifrar a existência de um formigueiro.

— Perdido?, perguntou Rosa, com aquela voz que parecia vir do chão.

O outro hesitou, respondeu em um português que tinha gosto de alemão sonhado:

— Não sei se estou aqui, ou se aqui está em mim. Talvez seja apenas um erro de linguagem.

Guimarães sorriu.

— Ah... então cê é do tipo que vê o mundo por dentro do verbo.

— O mundo é um tribunal. Só que esqueceram de anunciar o crime.

— No meu sertão, a gente é réu sem saber. Mas também é juiz sem toga, respondeu Rosa, se sentando ao lado dele.

— Franz Kafka, disse o homem, estendendo a mão com certa hesitação.

— João, muito prazer! Mas me chamam Rosa. Nome de flor pra quem nasceu no mato.

Silêncio. Os dois olharam o céu, onde estrelas tentavam fazer sentido em meio à poeira.

— Aqui tudo é seco, comentou Kafka, coçando a garganta.

— É. Mas é nesse seco que a alma sua, pra parir coisa viva.

Kafka suspirou.

— No meu mundo, os homens viram insetos.

— No meu, os homens viram bichos. Mas continuam homens. Pior que bicho.

— Você escreve para se salvar?

— Escrevo pra não morrer de mundo. E você?

— Escrevo pra tentar explicar o que não tem explicação.

— Então estamos no mesmo livro, disse Rosa.

— Mas em línguas diferentes, completou Kafka.

Lá adiante, um burro passou devagar, puxando uma carroça vazia. Os dois seguiram a pé, em silêncio, como dois profetas que esqueceram as pragas, mas ainda lembravam o deserto. Chegaram a uma encruzilhada. Guimarães parou.

— Aqui se bifurca.

— Sempre se bifurca. E nunca há placas.

Guimarães então tirou do bolso o caderninho e arrancou uma folha. Entregou a Kafka.

— Uma palavra. Nova.

— O que ela significa?

— Nada. Mas carrega tudo.

Kafka guardou o papel no paletó, como quem guarda uma bênção. Deu meia-volta e desapareceu por uma trilha que ninguém conhecia.

Guimarães Rosa ficou olhando, quieto, como quem escutava as pedras pensarem. Depois murmurou, só para si:

“O sertão é onde o pensamento da alma esbarra no impossível. E o impossível é onde mora o estrangeiro.”

 

Edson Pinto

Setembro, 2025

 

Nota do autor

Franz Kafka (1883–1924), nascido em Praga, (capital da atual República Tcheca) foi um dos mais influentes escritores do século XX. Com uma obra marcada por angústia existencial, labirintos burocráticos e a sensação constante de absurdo, é autor de A Metamorfose e O Processo.

João Guimarães Rosa (1908–1967), mineiro de Cordisburgo, reinventou a língua portuguesa na literatura. Sua obra, como Grande Sertão: Veredas, mescla filosofia, metafísica e oralidade sertaneja em busca dos limites da experiência humana.

12 de set. de 2025

344) VIVALDI EM UBÁ


Era uma manhã de verão em Ubá, Zona da Mata, MG,  e o sol já brincava de escorregar pelos telhados. Ary Barroso apareceu na varanda de sua casa, de chinelo e paletó, com um copo de café na mão e uma melodia na cabeça.

— Hoje vai sair samba novo, disse para ninguém, espantando uma borboleta que dançava no ar como nota fora da pauta.

Sentou-se ao piano. Tocou um acorde largo, depois outro. Assoviou como quem risca o céu com som. Lá pelas tantas, ouviu um violino. Não um violino qualquer. Um som doce e arisco, como chuva fina em tarde quente. Um trinado que parecia conjurar flores, passarinhos e brisas.

Virou-se, desconfiado.

Bem ali, na esquina da sua rua, um homem de cabelos brancos, casaco longo e sapatos que afundavam um pouco na poeira mineira, tocava um violino com os olhos fechados e o espírito em festa.

— Meu senhor... o que é isso? — perguntou Ary, encantado.

— La Primavera, respondeu o outro, abrindo um sorriso vermelho como o céu do entardecer.

— Primavera? Isso aí tá é mais pra manhã de junho em Minas, com cheiro de laranja e roupa no varal.

— Então é primavera com café.

Riram os dois. O violino repousou. O piano chamou.

— Meu nome é Ary, Ary Barroso. E o senhor?

— Antônio Vivaldi. Vim ver onde nascem as cores do som.

Ary o convidou para subir. Sentaram-se os dois: o brasileiro ao piano, o italiano com seu violino. Um começou a dedilhar o começo de Aquarela do Brasil, e o outro respondeu com o motivo de La Primavera.

E assim ficaram por horas: um trocando acordes tropicais, outro respondendo com contrapontos barrocos. A vizinhança parou. Os passarinhos silenciaram. Até o vento ouvia.

— Esse seu “Brasil” parece uma orquestra, disse Vivaldi, encantado.

— E essa sua primavera parece uma escola de samba que leu poesia.

No fim da tarde, escreveram juntos uma peça que nunca foi ouvida:

“Concerto para Dois Sóis e Um Pandeiro”.

A partitura, dizem, se perdeu numa tempestade de pétalas ou foi levada por um sanhaço azul.

Antes de partir, Vivaldi tirou o chapéu, fez uma reverência e disse:

— O mundo gira em dó maior. Mas aqui ele dança.

Ary respondeu, sorrindo:

— E aqui, maestro, até o silêncio tem ritmo.

 

Edson Pinto

Stembro, 2025

 

Nota do autor

Antônio Vivaldi (1678–1741), compositor e violinista barroco italiano, é autor das célebres Quatro Estações, obras que transformaram os ciclos da natureza em música.

Ary Barroso (1903–1964), mineiro de Ubá, foi compositor, pianista e locutor, criador de “Aquarela do Brasil” e outros sambas imortais. Sua música exalta o Brasil com ritmo, cor e alma.

4 de set. de 2025

343) CAMÕES EM SÃO JOÃO DEL REI

 


Luís Vaz de Camões apareceu em São João del Rei como quem retorna a um lugar onde nunca esteve. Desceu de uma nuvem que misturava mares antigos e poeira de estrada colonial. Trazia um soneto no bolso, mas não era dele:

 “Fulgente estrela, que o meu bem governa,

Astro brilhante, que me guia o passo…

Por que me obriga a suportar no laço

De amor tão forte pena tão eterna”

Leu e releu várias vezes, na varanda do casarão branco. Estava encantado com a melodia daquele poeta das Gerais, um tal Alvarenga Peixoto, que ousava rimar estrelas como se falasse com Vênus em pessoa.

— Há sangue lírico neste sertão, e eu preciso conhecê-lo.

Foi fácil encontrá-lo: bastou seguir os ecos de uma paixão por Bárbara Heliodora e os boatos sobre um inconfidente que escrevia melhor que confessava.

Alvarenga o recebeu com hospitalidade de alma antiga. Conversaram longamente sobre o amor e suas algemas douradas, sobre a liberdade das palavras e a prisão das ideias. Camões sentiu-se, pela primeira vez em séculos, compreendido.

— Camarada, disse-lhe Alvarenga, num brinde de cachaça suave, se em Lisboa havia reis e mares, aqui há montanhas que rimam com os homens. Proponho nos reencontrar em Ouro Preto, onde vivem os poetas em forma de igreja, pedra e abismo.

Camões apertou-lhe a mão com o vigor de quem sela um destino.

— Em Ouro Preto, pois. Lá escreveremos o que nem a morte ousa apagar.

Dizem que tempos depois Camões chegou a Ouro Preto como quem cumpre promessa feita sob a lua. Subiu e desceu ladeiras em forma de alexandrino. Viu casas inclinadas como interjeições, igrejas como metáforas sacras e sinos que falavam em redondilhas maiores.

No largo, reencontrou Alvarenga Peixoto, agora com os olhos mais escuros, como se tivesse conversado com fantasmas.

— Chegastes, irmão de penas! , disse o mineiro. A cidade vos esperava. Só não fostes o primeiro.

— Como assim?, perguntou Camões, arqueando a sobrancelha boa.

— Antes de vós, chegou aqui um tal Shakespeare. Inglesinho agitado, barba cheia, olhos esbugalhados de espanto. Disse que queria ver o palco das tragédias brasileiras. Anotava tudo: escravos, promessas, igrejas. Escreveu versos em guardanapos e depois refugiou-se num casarão de janelas azuis lá pelos caminhos de Mariana, onde vive sozinho..

Camões pigarreou.

— O mundo anda pequeno para os poetas, parece.

— Ou os poetas é que andam grandes demais para o mundo, respondeu Alvarenga, com um meio-sorriso barroco.

Naquela noite, beberam vinho de jabuticaba e escreveram à luz de lamparina. Não falaram mais do inglês. Mas Camões, no fundo, desconfiava que os ecos de suas metáforas estavam sendo traduzidos com sotaque de Stratford.

Antes de partir, escreveu na parede de uma senzala abandonada:

“Nesta terra, o verbo resiste. E o poeta, mesmo exilado, persiste.”

Ele partiu, deixando montanhas, ladeiras e um amigo que falava tanto português quanto inglês.

 

Edson Pinto

Setembro, 2025

 

 

Nota do autor:

Luís Vaz  de Camões (c. 1524–1580), poeta maior da língua portuguesa, é autor de Os Lusíadas e de uma obra lírica marcada pela tensão entre razão e paixão, destino e liberdade. Viajante, guerreiro e exilado, fez da palavra seu território de permanência e de resistência.

Inácio José de Alvarenga Peixoto (1744–1792), nascido no Rio de Janeiro, mas radicado em Minas Gerais, foi poeta do Arcadismo e figura central da Inconfidência Mineira. Sua poesia combina refinamento formal e emoção contida, como no célebre soneto “Ao coração que a Bárbara me deu”. Viveu entre o amor, a beleza e a luta por liberdade.