27 de jun. de 2025

334) CONFISSÕES DE UM CATIVADOR DESATENTO

 

Não me julgue, leitor. Ou, se julgar, que seja com a brandura que se reserva aos que tropeçam nas próprias intenções. Eu não quis, e aqui reside o cerne da tragédia, mas cativei Clara.

Clara, sim, de nome e de natureza...

Tão Clara por fora quanto era por dentro, como uma manhã que se entrega inteira ao sol sem pedir nada em troca...

Havia nela uma espécie de transparência luminosa, daquelas que fazem a gente esquecer que o mundo costuma ser opaco. E, justamente por isso, cativá-la foi como tocar uma vidraça limpa: parece coisa simples, inócua, mas deixa marca. Com palavras, com silêncios bem colocados, com aquela atenção rara que só se dá quando se está encantado, mesmo sem saber.

Conheci Clara numa volta da escola. Era uma terça-feira, creio. Talvez chovesse, talvez não. Mas o que importa é que ela falou, e eu escutei como quem ouve uma canção que não quer acabar.

Nos tornamos íntimos de um jeito que só o anonimato permite. Voz, risos, textos, cartas. Eu, confesso, me sentia necessário. E isso é perigosíssimo: quando alguém se sente necessário no coração do outro, corre o risco de acreditar que sempre será bem-vindo, ainda que desapareça por um tempo.

Foi o que fiz.

A vida, esse álibi vagabundo de quem não quer assumir a própria negligência, me engoliu. Trabalho novo, tarefas, desânimos. Coisas miúdas, sabe? Mas que crescem como trepadeira e, quando percebemos, já sufocaram a flor que nos fazia sorrir.

Clara me mandou um bilhete um dia.

"Você está sumido", disse ela...

Três palavras só. Três facas. Visualizei, li, doeu. Mas respondi dois dias depois, com a frieza das desculpas automáticas.

"Desculpa, a vida."

Que vergonha me dá repetir isso aqui. Mas veja: a vida, bem ou mal, nos ensina a desaparecer com elegância, como se ausência fosse sinal de autonomia emocional.

O tempo passou. Dois, três anos, talvez mais...

Um dia, num desses domingos em que o coração se recorda de onde deveria estar, fui tomado por uma saudade estranha. Não da voz de Clara, nem dos poemas, mas da sensação de ser aguardado. Porque há algo de nobre, quase sagrado, em saber-se esperado...

Escrevi. Tímido, tonto, tardio. Disse que sentia falta. Que queria retomar. Que talvez ainda houvesse um canto do jardim com meu nome.

Mas Clara, sempre lúcida e clara por dentro e por fora, respondeu com delicadeza, porém firmeza. Não havia mágoa em suas palavras, mas havia a maturidade de quem aprendeu a regar o próprio jardim, mesmo depois da seca.

Foi então que compreendi, tarde, mas compreendi, como quem lê uma carta antiga e só agora enxerga o subtexto, o que dizia aquela raposa literária que certa vez folheei com pressa juvenil:

"Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas."

Sim, eu cativei. E depois fiz o que tantos fazem: fugi, distraído, convencido de que ternura não tem prazo de validade. Mas Clara…

Clara me guardou por um tempo, como se guarda uma pétala seca de rosa dentro de um livro de romance, com cuidado, com ritual, com esperança.

E agora, onde quer que ela esteja, sei que carrego uma eternidade que não pesa no bolso, mas no peito: a de ter sido, por instantes, morada no coração de alguém… e não ter sabido permanecer.

Se há alguma redenção possível, talvez ela esteja aqui nestas palavras. Talvez escrever seja minha forma tardia de regar o que deixei secar. Sei que já não floresce, mas, ainda assim, ofereço água. Não por querer colheita, mas por dever de jardineiro.

Porque, como aprendi, tarde, mas aprendi, o essencial é invisível aos olhos, mas, uma vez tocado, é indelével na alma.

E Clara… Clara foi o meu planeta B-612. E eu, um caricato Pequeno Príncipe desatento demais para entender que certos corações são estrelas:

Só brilham se você ficar para ver.

 

Edson Pinto

Junho’ 2025


21 de jun. de 2025

333) O ORÁCULO DE VIDRO E SILÍCIO

 

No século em que nasci (não direi qual, por modéstia, cautela e conveniência), as pessoas ainda olhavam umas para as outras com absoluta e regular frequência.

Havia, é verdade, os tímidos, os arrogantes, os absortos e os distraídos, mas ao menos se olhavam. Na minha terra, ainda, exclamavam um “Bom dia!”; uma “Boa tarde”! ou uma prosaica “Boa noite!”! para quem lhes cruzasse o caminho mesmo sem que nunca tivessem visto antes...

Hoje, a maioria dos rostos fita um retângulo luminoso, com a devoção de quem consulta um oráculo ou a superstição de quem espera que dali venha a sorte, o amor ou, no mínimo, o boleto pago, o recibo do pix, a confirmação do encontro sonhado, a devolução do imposto de renda, o placar do jogo do seu time de devoção.

Este objeto, o smartphone, ou simplesmente celular,  - que nome, aliás, pretensioso e quase ofensivo - tornou-se mais que uma simples ferramenta. É uma espécie de segunda alma, embora muito mais bem informada.

Nele reside nossa agenda, nossos afetos, nossos vícios, nossas senhas e - creia, leitor - até nossas saudades. É como se, entre carne e osso, tivéssemos inserido um chip de silício, e sem ele fôssemos almas errantes, sem GPS e sem sentido.

Outro dia vi um homem, de paletó e gravata, correndo  como quem persegue o bonde da vida. Não era o bonde - era o seu smartphone que caíra na calçada apinhada de gente.

A expressão em seu rosto não era de susto, mas de viuvez. Recolheu-o com tanto cuidado que pensei estar carregando um recém-nascido. Sorriu, aliviado, ao ver a tela intacta, como se dissesse: “Graças aos céus, minha existência não se perdeu.”

Ora, é impossível não ver nisto uma forma de amor... Não o amor que Camões declamava com fogo e tempestade, mas um amor mais resignado, mais prático - um amor com Wi-Fi e acesso a bancos de dados nas nuvens.

Talvez, se Romeu vivesse em nosso tempo, não morreria por Julieta, mas por não conseguir desbloquear seu telefone no funeral dela. Que imagem tétrica, não?

Até mesmo a metafísica não se abstém desse fenômeno. Quando Platão falou das sombras na caverna, não previa que os homens trocariam as sombras pelas notificações das redes sociais e dos sites de troca de mensagens.

Vivemos hoje no interior de uma tela, onde o real é aquilo que pode ser fotografado, compartilhado e comentado. O que não cabe num “story” não merece nossa lembrança.

E a subjetividade? Essa, por sua vez, tornou-se um algoritmo. “Quem sou eu?”, pergunta o homem moderno. E o celular responde: você é aquele que gosta de vídeos de gatos, culinária mineira e teorias da conspiração em formato de podcast.

A identidade, antes mistério profundo, agora se resume a um histórico de busca e uma galeria de selfies em ângulos cada vez mais audaciosos.

Não nego os avanços. O aparelho é útil, sem dúvida. Tão útil quanto a roda, o fogo e o caderno de fiado que sobrevive em alguns rincões de pureza por esse mundão afora. Mas entre utilidade e tirania há uma linha tênue - e hoje parece que foi deletada, como uma mensagem inconveniente:

Somos escravos sorridentes, com polegares ágeis e olhos fatigados. Dormimos com o celular ao lado, como um amante que não ronca, mas vibra e precisa constantemente recarregar sua bateria para continuar atuando no palco da vida...

Machado, Pessoa ou até mesmo Nietzsche - perdoe-me, leitor, os nomes são inevitáveis – cada qual a seu modo - diziam que há mais metafísica num beijo que em todos os tratados de Kant.

Pois bem, hoje há mais filosofia numa notificação do banco: “Seu saldo é insuficiente.” que num momento de pura reflexão existencial...

Se ao menos esse retângulo mágico que chamamos celular, smartphone, telemóvel, ou o que seja, nos ensinasse a olhar mais e não apenas a ver, talvez, um dia, cansados de tanto toque sem contato, de tanta conexão sem laço, redescubramos o espanto de um olhar humano, sem tela no meio.

E nesse dia, quem sabe, a humanidade fará uma selfie com sua própria alma - sem filtros...

Edson Pinto

Junho’ 2025


14 de jun. de 2025

332) DEUS É QUE SABE DAS COISAS...

 


Sol de maio, meio-dia...

O campo todo quieto que até o vento parecia descansando. Debaixo do ipê rosa, ainda por florescer, três homens simples de aparência, mas ricos de filosofia se encostavam  silenciosos, suados, depois de encherem o bucho com arroz, ovo frito e farinha molhada d’água de moringa.

 Zé Grande coçou o queixo barbado, olhou o céu limpo como uma folha de papel pronta  para se escrever, e lascou:

 — Ocês já pensaram que nóis tá vivo sem sabê por que e pra quê?

 João do Dico engoliu o último naco de rapadura e fez cara de quem engoliu também a pergunta.

Só Joaquim Véio respondeu, depois de cuspir pra longe, ao mesmo tempo em que principiava enrolar um cigarro de palha:

 — Vivo a gente tá, né. Pra quê, como dizem, é Deus que sabe. E talvez nem Ele saiba direito. Tem sabidos por aí que falam que cada um de nóis é que deve dar o sentindo à própria vida. Eu acho isso certo...

 Zé Grande riu daquele jeito triste de quem se faz de engraçado para disfarçar o medo que sente por dentro. Olhou o mato, como se ali morasse uma resposta escondida, entre folha e sombra.

 — Será que vale, isso tudo? Acordá cedo; botá a enxada no lombo; capinar;  vê o dia passá sem novidade, só esperando a morte chegar de mansinho?

 João do Dico ajeitou o chapéu de palha e falou pela primeira vez:

 — Mas morte é a única certeza que tem. E nóis ainda duvida e se espanta quando vê ela buscando nossa gente...

 — Eu não sei se sou feliz - disse Zé Grande, quase num sussurro. - Às vezes eu sinto uma tristeza sem nome, que vem do vento, ou de mim mesmo, sei lá...

 — Felicidade é passar o dia sem dor nas costela - disse Joaquim Véio.- Já é muito. O resto é invenção de cidade, de gente que não gosta de trabaiá.

 O silêncio veio outra vez, feito bicho arredio. O sol se moveu um dedo no céu.

 — Ocê acha que tem Deus mesmo, Zé Grande? - perguntou João do Dico, com voz de quem pisa em chão mole.

— Acho! Mas é um Deus que fala baixinho e nóis quase nunca escuta. Um Deus escondido nos buracos da vida da gente, nas pausas pra armuçar;, na sesta da tarde...

 Joaquim Véio assentiu com a cabeça, devagar:

 — Um Deus que não responde, mas escuta. Igual a terra.

 Os três ficaram olhando o horizonte, onde o mato se enrosca com o céu. Não disseram mais palavra porque a fala cansa mais que o cabo da enxada, às vezes. Mas naquele silêncio, alguma coisa se ajeitou dentro de cada um.

Foi quando Joaquim Véio pigarreou, já fumando, limpando a garganta do tempo, e falou com a calma de quem já viu mais do que contou:

— Eu fico pensando... será que nóis já não é feliz, do nosso jeito? Será que precisa mais? Será que felicidade não é isso aqui mesmo: barriga cheia, sombra de árvore, o mundo calado em volta da gente?

Zé Grande e João do Dico olharam para ele, quietos. Joaquim Véio transbordando de sabedoria de vida bem vivida, continuou:

— Tem gente que dá volta no mundo, vai longe pra buscar sossego, paz... mas será que não é aqui que ela mora? No cheiro da terra depois da chuva, no pão que a gente parte junto, no silêncio que a gente entende sem dizer, na mulher que espera nóis pro café, pro jantá; nos filhos que Deus nos mandô ?

Joaquim Velho deu um suspiro comprido, como quem esvazia um quarto dentro do peito e arrematou com sabedoria:

— Talvez a felicidade seja só isso: sabê que a vida é pouca, mas ainda assim sentá com dois amigos e vê o tempo passar, sem pressa, sem ambição. Se isso não for felicidade... então eu nem quero sabê o que é...

E o vento voltou a soprar, devagarzinho, como se também tivesse escutado.


Edson Pinto

Junho’2025

6 de jun. de 2025

331) METÁFORAS: ESSE MISTÉRIO ELEGANTE DA FALA

 

Outro dia, um amigo - desses que tendem a achar que as palavras são meras ferramentas para pedir café, cumprimentar pessoas, xingar o time quando joga mal, pagar boletos e coisas bem mundanamente objetivas - me perguntou:

— Mas afinal, Edson, por que você usa tantas metáforas em seus textos?

Eu admito que a pergunta me surpreendeu. Não pela sua complexidade, senão pelo fato de me ser - até então - inusitada. O uso de metáforas me é tão automático que, confesso, nunca tinha pensado detidamente nisso. Com efeito, pensei: boa oportunidade para uma investigação. Foi o que fiz...

Ora, por que uso metáforas?

Talvez pela mesma razão que algumas pessoas põem meias coloridas quando vestidas de terno preto: para não morrer de tédio dentro da norma. Ou talvez porque o mundo é um pouco mais digerível quando temperado com imagem e surpresa.

O fato é que a metáfora me serve como óculos de grau: sem ela, vejo a realidade, mas embaçada e sem charme.

A metáfora, meus caros, é uma espécie de mentira honesta. Você diz que o sujeito é um cavalo - e ele, que nem relincha, entende que se trata de força, não de crinas.

É uma comparação sem o constrangimento do “como”, esse aviso de que vem imagem pela frente. A metáfora não pede licença: entra, senta-se na sala da linguagem e muda o papel de parede.

Vem do grego “metáphora”, que significa “transferência”. Um tipo de mudança que não se faz com caminhão, mas com imaginação.

Aristóteles - o grego que entendia de tudo, menos de redes sociais - já dizia que a metáfora é sinal de genialidade. E quem somos nós para discordar de um sujeito que usava toga sem parecer ridículo?

Todo mundo usa metáforas, mesmo quem jura que só fala “direto ao ponto”.

Veja: falamos em “apagar memórias”, “feridas abertas”, “tempo voando”, “tóxicos relacionamentos” - tudo isso sem envolver papel, bisturi, asas ou produtos químicos.

A metáfora, portanto, é uma clandestina do vocabulário: está em toda parte, fingindo que não está. Ela é importante porque nos permite comunicar não apenas ideias, mas sensações. Dizer que a saudade “morde” é mais preciso do que qualquer tratado de neurociência afetiva.

Dizer que a esperança “brota” é mais convincente que planejamento estratégico elaborado no Powerpoint e complementado com planilhas do Excel.

Poucos textos fizeram uso tão criativo - e eficaz - da metáfora quanto a Bíblia. Ali, Deus é pastor, rocha, luz, pai, rei, amigo e até vento.

Cada metáfora revela um aspecto do divino - e, convenhamos, tentar descrever o indefinível sem recorrer à imagem é como tentar beijar o cotovelo: possível apenas em teorias de YouTube.

Jesus, mestre nesse ofício, não ensinava com PowerPoint, mas com figueiras, sementes, vinhas, sal, luz e tesouros escondidos. Ele não dizia “ajudem o próximo”; dizia “seja como o samaritano”. A metáfora ensina sem humilhar, convida sem ordenar, toca sem empurrar.

Dizemos que a vida é uma estrada, que o amor é um jogo, que o corpo é uma máquina, que o tempo é dinheiro. E quando mudamos a metáfora, muda também a forma como sentimos a realidade.

O problema talvez seja quando a metáfora nos aprisiona. Se tratamos o trabalho como uma batalha, viveremos exaustos. Se o casamento for sempre um porto seguro, talvez nos esqueçamos de navegar. Uma boa metáfora abre portas; uma metáfora ruim tranca o pensamento dentro de um armário.

Então, por que uso metáforas?

Porque a realidade, crua e nua, costuma ser malvestida e de pouca educação. A metáfora dá a ela um terno, um perfume e um sapato de cromo alemão.

Escrevo com metáforas porque a vida sem elas seria como um café sem cheiro, uma risada sem som, um abraço sem braços .

E, se me permitem, vai aqui a última metáfora deste meu texto totalmente metaforizado: escrever sem metáfora é como tentar acender uma vela com o vento.

Pode até funcionar. Mas onde está a graça?

 

Edson Pinto

Junho’ 2025


30 de mai. de 2025

330) CARTA CRÔNICA SOBRE O BISCOITO VOADOR, OS MARIMBONDOS NÃO SOLIDÁRIOS E O TERROR DA BUROCRACIA

 

“Aqui na terra, tão jogando futebol
Tem muito samba, muito choro e rock'n'roll
Uns dias chove, noutros dias bate sol
Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta...”

(Chico Buarque de Holanda)


Bom dia, compadre!


 Meu caro amigo, me perdoe se a primeira lembrança que me vem à mente ao escrever esta carta é essa estrofe do grande Chico. Se ela não diz tudo, ao menos sugere antecipar a descrição do perrengue que passei.

Vamos lá!

Sabe aquele tipo de viagem que começa como um sonho e termina como um episódio de tragédia grega dirigida por um palhaço?

Pois então.

Era para ser só o retorno tranquilo de Angra dos Reis, depois de uma semana tão pacata que até o vento parecia cochilar entre as palmeiras. Estávamos no Frade  - você sabe -, onde até a areia parece praticar meditação transcendental.

Tomamos café com a paz de quem não suspeita que o universo já está afiando os dentes. Partimos por volta das 11 horas, sem agouro, sem corvo no retrovisor, nem uma musiquinha sinistra de fundo. Estávamos em dois carros. Família grande é isso...

Lá pelas 14h30, bateu aquela fome filosófica, e pedi:

— Amor, liga para o genro no outro carro. Vamos parar para almoçar.

Foi nesse exato momento que o destino pegou uma cadeira, se sentou no banco da frente e disse: “Agora é comigo.”

A minha neta, acomodada no banco de trás como uma monja mirim, zelosa em aplacar a fome do vovô, me ofereceu biscoitos. Ato de amor puro. Aceitei. Minha cara-metade abriu o pacote, me deu um na boca, e... o pacote escorregou.

Foi aí, compadre, que cometi o maior erro metafísico da minha vida: abaixei para pegar o pacote de biscoito em movimento. Dois segundos. Só dois, repito...

O carro, sentindo-se abandonado - ou quem sabe também faminto - resolveu pastar por conta própria. Saiu da estrada, se embrenhou num capinzal com o entusiasmo de um boi adolescente e, depois de uns cem metros, resolveu abraçar uma árvore.

Mas não era uma árvore qualquer. Era a árvore do karma. Se é crível que o capiroto tem árvores de preferência, essa era a sua predileta...

Nela, estabelecida estava uma comunidade raivosa de marimbondos graúdos. Para o desastrado do biscoito e seus acompanhantes, compaixão zero... Sim, nenhuma solidariedade com nosso infortúnio. Eram, sem dúvidas, os fiscais cósmicos do apocalipse.

A cena virou um carnaval entomológico: gritos, ferroadas e uma dança de desespero digna de novela mexicana com direção de Quentin Tarantino.

Saldo da tragédia:

— Eu? Dores abdominais e o ego mais amassado que lata de refrigerante de festa.

— Minha neta? Estiramento no braço e uma história para contar nos recreios da escola pelos próximos 10 anos. Ou por toda a vida.

— Minha mulher? A mais atingida. Fraturas nas vértebras C2 e C3. Imobilizada, parecendo uma escultura futurista de resiliência.

Mas calma, que agora entra o terceiro ato: a saga da Unimed - ou, como gosto de chamar, “O Ministério das Negativas”.

O médico do pronto-socorro da  Universidade sugeriu, com toda a razão, o translado da minha mulher, de helicóptero, para Belo Horizonte. Afinal, tratava-se de duas vértebras fraturadas, não uma unha encravada...

A Unimed, porém, disse: “não autorizado”. Parecia que o helicóptero tinha que decolar com autorização divina e três bênçãos papais. E, como desgraça pouca é bobagem, também negaram a ambulância, aquelas com UTI móvel, sirene poética e tudo.

Resultado?

Saí do hospital de Vassouras como quem foge de uma prisão encarcerado que fora pela burocracia do nada barato plano de saúde. Evadido, como dizem no jargão hospitalar e, pior, com as minha dignidade e o medo andando de mãos dadas.

Aquela decisão custou-nos cinco dias de espera, ansiedade, noites sem dormir, mas agraciou a mim com um mestrado em pressão psicológica e uma pós-graduação em paciência. Tudo isso propiciado pelo sistema de saúde suplementar.

Como dizia meu avô:

"Deus não manda carga maior do que o caminhão que você dirige."

E ainda que esse caminhão tenha saído da estrada, batido em árvore e sido atacado por marimbondos, cá estamos.

Minha mulher, guerreira que é, segue firme no tratamento. Seis meses de repouso e cuidados caseiros, feitos por mim - um enfermeiro sem jaleco -, mas com amor até nos curativos.

Não gosto de gente estranha em casa, então assumi o posto. Preparo mingau, aplico colar cervical e sirvo café com filosofia e bom humor. Afinal, a ideia de salvar o pacote de biscoito foi de minha inteira responsabilidade, Assumo!

No fim das contas, percebo que o universo tem um senso de humor peculiar.

Às vezes, ele manda um pacote de biscoito voador, uma árvore armada com marimbondos e um plano de saúde mercenário e coração de pedra - tudo no mesmo episódio.

Mas, manda também aprendizado, resiliência e, veja só, uma nova história para contar.

Estamos vivos, compadre. Inteiros o bastante para rir disso tudo. Porque, no fundo, viver é isso: tropeçar na tragédia, levantar com dignidade e contar o episódio como se fosse comédia.

Obrigado pelo carinho de sempre.

Seguimos até onde Deus achar divertido e com o pacote de biscoito bem guardado.

Um grande abraço!


23 de mai. de 2025

329) A VIDA COMO METÁFORA DO FUTEBOL

Ah, viver!

Viver é jogar bola num campo aberto, sob um sol imenso, com os pulmões cheios de vento e as pernas famintas por distâncias...

A vida - essa coisa maravilhosa, as vezes absurda, inútil e necessária - é como o futebol: um jogo vibrante, com regras que devemos seguir, mas com liberdade suficiente para correr, driblar, errar, rir e suar gloriosamente!

Sim!

Tudo começa com um apito, o grito do nascimento e termina com outro, o do  silêncio final. Mas entre esses dois sons e momentos distintos há o estrondo dos estádios da alma, as torcidas que moram em nós, o delírio de tentar fazer sentido chutando a bola para frente.

Jogar!

Jogar sem medo. Passar a bola ao outro com confiança, como quem entrega o coração. Gritar gol como quem afirma: “Estou vivo!” E errar também, tropeçar, cair de cara no barro do chão vil e levantar com lama no rosto e vontade de continuar.

A vida, como o futebol, é feita de momentos: um passe perfeito, uma jogada improvável, um gol de bicicleta no meio da rotina e tudo se justifica. Ah, o absurdo é belo! E o caos tem um ritmo que o coração entende melhor que a razão.

Não me venham com lógica, com prudência, com planilhas de produtividade. Quero a vibração das arquibancadas do espírito. Quero perder por goleada e ainda assim sorrir, porque joguei com intensidade, com entrega, com carne e alma.

No futebol, como na vida, às vezes o juiz erra, o time cansa, a torcida vaia. Mas há sempre o segundo tempo. Sempre um recomeço. Sempre outra chance de fazer melhor, de tentar de novo, de ser um pouco mais livre do que antes.

E se no fim não vencermos?

Que importa?

O importante é ter jogado com vontade bastante para que, ao sair de campo, possamos dizer:

 “Ah, como foi bom viver!”

 

Edson Pinto
23/5/2025

16 de mai. de 2025

328) ENTRE A PENA E O ROBÔ

 

Confesso, leitor amigo, que tenho vivido tempos de uma certa perplexidade tecnológica...

Sou filho da geração Baby Boomer (1946  – 1964). Felizmente, em que pese, às vezes, dores no ciático, a pressão arterial anda por 13/8 e o colesterol total abaixo de 200. Poderia ser melhor, mas já me dou por satisfeito... Continuo  pagando boletos, assistindo futebol pela televisão e às voltas com o mundo digital.

É aqui que o bicho pega...

Tenho, portanto, um pé atolado no chão de taco da infância analógica, o outro deslizando na cerâmica escorregadia da era digital. Quem é  Boomer como eu sabe que convivemos, tecnologicamente falando, com as quatro gerações seguintes à nossa: a  “X” (nascidos entre 1965 e 1980), a “Y”, ou Millenials (nascidos entre 1981 e 1996), a “Z” (nascidos entre 1997 e 2012) e a Alpha (nascidos de 2013 em diante).

Por isso, pertenço, ou melhor, pertencemos, caro contemporâneo, se for esse também o seu caso, a uma espécie rara e, quem sabe, em vias de obsolescência: a dos que aprenderam datilografia em máquinas de escrever, usaram mimeografo à álcool, selaram cartas para postá-las nos Correios, rebobinaram fitas de videocassete, mas hoje são obrigados a atualizar aplicativos.

Fui alfabetizado com lápis número dois e atualmente ando redigindo mensagens com emojis, vejam só! Cresci num tempo em que a palavra “nuvem” ainda significava o que cobre o céu e ameaça a roupa no varal. Hoje, é o lugar onde moram minhas fotos, meus documentos, e, creio eu, parte da minha alma digital.

E como ignorar, nesse cenário de maravilhas e assombros, a senhora Inteligência Artificial, essa governanta etérea que agora nos dita receitas, resumos, relatórios e até sentimentos simulados?

Ela sabe o que vamos digitar antes que os dedos toquem o teclado, aconselha o que assistir, sugere o que comprar, e, mais inquietante ainda, começa a querer nos entender.

O mais curioso é que muitos a tratam como oráculo. Eu, por minha vez, olho-a com aquele misto de respeito e desconfiança que se tinha diante dos boticários do século XIX: pode curar, mas também pode transformar o gato em jacaré se errar a dosagem.

A inteligência artificial de hoje já é espantosa. Mas o que mais me espanta é que ainda nos espanta... A cada dia, ela se aprimora com a calma de um relojoeiro e a audácia de um mágico. Transforma fotos antigas, em preto e branco, estáticas, em filmes coloridos; analisa exames; imita vozes; detecta ironias (quando não as pratica), e em breve, talvez, será capaz de saber que estou escrevendo isto agora, e responder-me com uma piscadela algorítmica.

Por vezes, pergunto-me, sem ironia: se o progresso continuar nesse ritmo, sobrará algo de humano que não tenha sido replicado, aprimorado ou, ao menos, sugerido por alguma engrenagem pensante?

E no entanto, ah!, que delícia conviver com essa diversidade de gerações!

Testemunhamos, nós os Boomers, a transição com o espanto dos camponeses diante do trem: assustados, mas fascinados. Sabemos dar nó em cadarço e redefinir roteadores de internet. Usamos estilingue e streaming. Escrevemos bilhetes com letra cursiva, mas também abrimos o coração em áudios de dois minutos com ruído de ventilador ao fundo.

Afinal, quem é mais feliz: o jovem que já nasce deslizando a tela com o dedo polegar como um imperador digital, ou este velho menino que ainda guarda na memória o grito do carteiro, a voz do mascate ou o som do modem discando - aquele ritual de paciência que fazia da internet dos seus primórdios quase um ato litúrgico?

Não sei, caro leitor. Como diria meu avô, o mundo é uma máquina que anda sozinha. E, acrescento eu: às vezes ela anda tão depressa que esquecemos de observar a paisagem.

Talvez o segredo da felicidade seja exatamente este: termos vivido com um olho no passado e outro no futuro. o que, por fim, nos deu uma visão de profundidade.

E se um dia uma IA for capaz de sentir saudade daquilo que nunca viveu, aí sim, com todo respeito ao silício, serei obrigado a admitir:

Os robôs nos superaram...

 Edson Pinto

Maio’ 2025


8 de mai. de 2025

327) O GALO DE AÇO E AS PROMESSAS DO AMOR



 

- Capítulo I -

 

O GALO DE AÇO E AS PROMESSAS DO AMOR


 Não é de hoje que ouço falar que o amor se parece a uma espécie de jogo de azar, desses em que se aposta o coração e se ganha - quando muito - um aperto no estômago...

Ainda assim, e talvez justamente por isso, dei-me ao luxo de me imaginar em peregrinação até a esplanada da Arena MRV, onde repousa, na minha Belo Horizonte da juventude dourada, em aço inoxidável e brilho olímpico, o Galo da Massa, símbolo sagrado do meu Clube Atlético Mineiro.

A escultura é descomunal. Soberba. Quase altiva. Mais de 8 metros de altura e uma massa bruta de 13 toneladas, por sinal o mesmo número que, no jogo do bicho, corresponde ao galo. Representa, dizem, não apenas um clube, mas uma paixão.

Ora, se há paixão que não se esgota com as derrotas, é a do torcedor; e se há fé que sobrevive ao improvável, é a do apaixonado.

O Galo, pois, é símbolo de ambos - e, talvez por isso, começaram a atribuir-lhe poderes que nem mesmo aos santos de altares mais consagrados as pessoas verdadeiramente apaixonadas ousariam reivindicar. Galo, um novo santo milagreiro? Por que não?

A história corre com a pressa e o entusiasmo das notícias bombásticas: já dizem os fervorosos que quem se aproxima do Galo com intenções amorosas sai de lá agraciado. Ou com um novo amor, ou com a consolidação do amor que já possui, ou já possuiu ou, ao menos, com a ilusão suficiente para tentar de novo.

Fui ver...

Não porque creia - já acreditei em amores eternos - e hoje coleciono cartas de fim de relacionamento escritas com a tinta poética do ressentimento. Fui, imaginariamente, porque havia tempo e melancolia de sobra numa tarde qualquer de um domingo trivial.

Lá estava ele, o Galo, reluzente ao sol como uma verdade que se recusa a ser discutida.

Aproximei-me com o respeito que se deve a tudo que é grande, imóvel e silencioso. Fiz uma súplica discreta, quase cínica. Pedi, se não amor, ao menos um motivo para continuar fingindo que ele existe.

O Galo, como era de esperar, nada disse. Nem um cacarejo simbólico. Mas juro - e não sou homem de muitos juramentos - que senti alguma coisa. Uma leve tontura. Um desconforto interior.

Talvez fosse fome. Pode ter sido esperança. O amor, afinal, muitas vezes se disfarça de ambas as coisas.

Voltei para casa sem companhia, é verdade. Mas com a impressão de ter sido ouvido por um monumento.

Dentro desse colosso de aço há de ter um coração de verdade, pensei, virei para o canto e dormi...

 

- Capítulo II -

EM QUE RECEBO UMA RESPOSTA, OU ALGO PARECIDO...

 

No dia seguinte à minha visita ao Galo da Esplanada - de onde, repito, voltei sem milagres nem companhia, mas com certa dignidade intacta - ocorreu-me uma ideia estapafúrdia:

“E se o Galo monumental e milagreiro me houvesse, de fato, escutado”?

Não me refiro à escuta dos ouvidos humanos que tudo filtram pela conveniência, mas àquela escuta das coisas que não falam: os cães, as paredes, os olhos que se desviam antes do beijo.

Há silêncio mais eloquente do que certas declarações, e talvez o Galo, com seu aço brilhante e altivo, houvesse me respondido com a melhor resposta de todas: a dúvida.

“Ora, não é o amor também uma espécie de dúvida bem-vestida, elegante”?

Decidi então observar os sinais. Não os divinos - que esses sempre aparecem atrasados ou metafóricos demais para minha paciência -, mas os humanos: uma mensagem inesperada, um reencontro acidental, um café oferecido com hesitação...

Foi aí que, ao sair da padaria, tropecei (não metaforicamente, desta vez) em Maria.

Maria!

Nome de epopeia. Tínhamos tido uma história mal pontuada, cheia de vírgulas em lugares errados e pontos finais mal colocados. Nosso amor tinha sido como aqueles contos de jornal que ninguém termina, mas que deixam uma ideia agradável flutuando na cabeça.

Ela sorriu.

Eu também.

Conversamos como quem segura um livro antigo com mãos protegidas por luvas de  pelica, com todo o zelo necessário... Trocamos banalidades com o cuidado de quem sabe que qualquer frase pode ser uma armadilha ou uma ponte.

E ali, entre um “você está bem” e um “vamos tomar um café qualquer dia desses?”, senti, pela segunda vez, aquele desconforto interno, aquela tontura leve semelhante à de quando olhei o Galo na minha primeira visita.

Será que o Galo da Massa havia me empurrado em sua sabedoria futebolística-sentimental para esse reencontro?

Talvez..

Ou talvez o amor, esse trapaceiro astuto, tenha apenas aproveitado a ocasião para pregar mais uma peça no velho cético aqui. Não sei.. Mas saí andando com o coração um pouco menos cheio de sarcasmo

E isso, convenhamos, já é quase amar.

 

- Capítulo III -

EM QUE TENTO ESCAPAR DE MARIA, E DOU DE CARA COMIGO

 

Maria...

Nunca duvide de uma mulher que tenha Maria no nome!

Não pelos episódios bíblicos ou pelas ladainhas cantadas aos domingos. Não sou homem de beatas nem de teologias, mas porque Maria é um nome que carrega dentro dele a ideia do inevitável.

Todo homem que diz que “Maria foi só mais uma” está, no fundo, tentando escapar do fato de que foi ela que ficou, mesmo depois de ir.

Depois do reencontro fortuito em frente à padaria, achei por bem fazer o que todo homem sensato faria diante de uma estranha, mas compreensível paixão. Por sinal  ainda quente:

Fugir...

Passei a evitar o mercado de bairro, troquei de barbearia, alterei meu trajeto matinal como quem altera o rumo da própria vida com passos pequenos e indignos.

Maria, no entanto, reaparecia.

Não fisicamente - o que seria ao menos dramático - mas na forma mais perversa possível: no pensamento.

Eu lia um livro e lá estava ela, entre uma vírgula e um suspiro.

Bebia café e o gosto parecia ecoar aquele silêncio nosso depois das brigas. Silêncio que não era paz, mas um tipo de espera.

“Foi o Galo”, pensei...

Não o de Maria Antonieta, mas o da Esplanada.

Esse Galo de aço inoxidável que agora imagino rindo com sua crista e rabo reluzentes da minha tentativa de racionalizar o irracional. Talvez seja um novo tipo de divindade: uma obra de arte que concede castigos disfarçados de possibilidades.

E Maria era a maior de todas.

Cheguei a escrever-lhe uma carta. Não enviei. O ato de escrever já me pareceu exposição suficiente.

Na carta, eu pedia desculpas por tudo e por nada. Por não ter ficado, por ter ficado demais, por rir no momento errado e calar quando ela esperava por  palavras. Enfim, pelas pequenas traições que o cotidiano impõe e o orgulho sustenta.

Dobrei o papel, guardei na gaveta da cômoda que já foi nossa.

E, naquela noite, dormi como se ela ainda estivesse do outro lado da cama – de costas, como sempre dormia depois das discussões ou mesmo depois das paixões...

O amor, pensei antes de adormecer, é esse fantasma doméstico que acende luzes depois que saímos do cômodo como a dizer-nos: “eu estava vendo tudo...”

E Maria, esse nome que não consigo apagar do papel, talvez seja só isso: a lembrança persistente de um silêncio que um dia, quem sabe, eu teria conseguido entender...

 

 - Capítulo IV -

EM QUE VOLTO AO GALO, REENCONTRO MARIA E DOU FIM À MINHA HUMANIDADE

 

Voltei ao Galo.

Não por fé - essa já me abandonou com a pressa circunstancial a exigir-me mais mudanças -, mas por exaustão. Há um cansaço que não é físico, nem da alma, mas do personagem. E eu, que fui amante, covarde, sentimental e irônico, estava farto de mim.

Era fim de tarde. A Esplanada vazia. O sol batia no aço inoxidável do Galo como se Deus, cansado de dar sinais sutis, decidisse usar um holofote.

E lá estava ele, o Galo. Intocado pelo tempo, como os sentimentos que nunca chegaram a ser ditos.

Fiquei alguns minutos calado, como quem espera julgamento.

Foi então que Maria surgiu.

Não como um milagre, mas como um relógio atrasado que, de vez em quando, acerta a hora.

Estava diferente - ou talvez fosse eu, com os olhos finalmente desembaçados pelo tempo. Trocamos um olhar que dispensou palavras.

Há silêncios que encerram bibliotecas...

“Então voltou”, ela disse, como quem fala com um fantasma.

“Voltei”, respondi, embora não soubesse exatamente de onde.

Caminhamos lado a lado pela esplanada, sem mãos dadas nem promessas. Apenas a presença mútua, que é o mais próximo que os desencantados chegam da eternidade.

Paramos diante do Galo. O céu de Belo Horizonte, sempre indeciso, nos oferecia uma meia-luz como se hesitasse entre o dia e a noite. Assim como nós entre a lembrança e o fim.

“Está bonito, não?”, disse ela.

“O Galo?”, perguntei.

“Não. O silêncio, ela sussurrou.”

E foi nesse instante, exato, imóvel, que compreendi: minha existência humana havia terminado. Não no sentido clínico - continuo respirando, pagando boletos, respondendo mensagens que não me interessam -, mas no essencial.

A parte de mim que esperava, desejava, se contorcia por dentro, essa foi sepultada ali, aos pés do Galo de aço, diante de Maria e do eco do que não dissemos.

Não chorei.

Não beijei.

Não pedi que ela ficasse, pois sabia ser impossível...

Fomos, cada um por um lado, como quem finalmente entende o fim de um livro sem se sentir com a obrigação de relê-lo...

O amor, tal qual a humanidade, é um delírio breve.

E eu, livre dele, segui meu caminho.

Inoxidável, como o Galo.

Inútil, como todos os deuses sinceros, pois nos tiram a ilusão de sucesso na reconfortante busca por explicação e sentido existencial...

 

Edson Pinto

Maio’ 2025

2 de mai. de 2025

326) O DIA EM QUE PENSEI QUE FOSSE VIEIRA OU MOISÉS...


Há dias em que a gente acorda sem saber muito bem o porquê. Acorda só porque o corpo ainda tem o velho e arraigado hábito de fazê-lo. Foi assim, comigo, ontem. Levantei, tomei café e queimei a ponta da língua.  Como sempre, sentei-me na varanda e pensei:

"Será que hoje algo acontece?"

E aconteceu. Mas não da forma que muda a vida - foi mais aquele estalo de Vieira -, sabe? Aquele clarão na cabeça acompanhado de um som tipo o “plim-plim” da Globo que parece dizer que você descobriu a resposta da vida, do universo e tudo mais. No meu caso, veio assim:

“E se eu adotasse um papagaio?”

Sim, um papagaio... Nem sei por quê. Talvez para ter com quem discutir o cotidiano, a vida ou a política, já que desde que a Jane se foi, a casa foi tomada por um silêncio ensurdecedor  (desculpem-me o oxímoro)... Fiquei ruminando a ideia, quando veio uma epifania, daquelas que não fazem barulho, mas mexem lá dentro. Um pensamento manso, quase poético:

“Você não quer um papagaio. Você quer é conversar, resenhar sem compromisso...”

A verdade é que, desde que a vida me aprontou, os dias ficaram tão parecidos que já nem sei em qual deles estou. Segunda ou sábado, tanto faz. E naquele instante, entendi que não era o papagaio. Era a falta de barulho. Falta de alguém para dizer “Bom dia”, sem ironia. ”Desce para o café”, com tom zeloso, “Eu te amo”, com sorriso sincero e franco...

A partir daí que o negócio pegou fogo: Pus-me a navegar no infinito mar do Youtube com o propósito de encontrar algo que prestasse, quando apareceu o vídeo de um pastor de almas dizendo:

“Deus tem um propósito pra você!”

Foi como a sarça ardente de Moisés, só que de paletó bem cortado, microfone em punho e um jeitão do Dick Vigarista da Hanna Barbera... Meu coração, carente e crédulo, acreditou:

“É isso, tenho um chamado!”

Levantei-me com firmeza, fui até o espelho e me olhei como quem encara o destino. Fiquei em dúvida se tomava banho ou só trocava de camisa. Resolvi lavar o rosto. Foi o bastante. No fim do dia parecia tudo muito bem esclarecido:

Não adotei o papagaio. Não virei missionário, nem descobri meu propósito transcendental. Mas, sentei-me, escrevi esta crônica e ri sozinho, porque talvez - só mesmo talvez - o estalo de Vieira, a epifania e a sarça ardente sejam só maneiras de o universo lembrar que ainda tem vida aqui dentro da gente.

E, não raro, isso já é suficiente...

Edson Pinto

Maio’ 2025

30 de abr. de 2025

325) O ESTEREÓTIPO E A ARTE DE NÃO PENSAR


                                            

Tem gente que acorda, toma café e sai distribuindo estereótipos como quem oferece santinhos em tempos de campanha eleitoral. É automático, quase inconsciente: O mineiro é desconfiado, quieto e se entope de pão de queijo. O baiano é preguiçoso, o paulista vive com pressa, todo brasileiro dança samba e joga futebol, o político é corrupto, todo russo se afoga em vodca, o adolescente é rebelde, o pobre é preguiçoso, o rico é arrogante. Cada grupo, um rótulo; cada pessoa uma caricatura, uma visão simplificada e simplória...

O estereótipo, intelectualmente falando, é uma espécie de atalho mental, uma forma cômoda de não precisar pensar. Afinal, por que tentar entender alguém se é mais fácil encaixá-lo num molde pronto, não é? Dá menos trabalho. E, para muitos, isso já basta. Mas esse atalho tem pedágio alto: o da ignorância.

No cotidiano, o estereótipo veste argumentos como se fossem ternos bem cortados, costurados e caprichosamente bem passados.. Está nas conversas de bares, nos debates políticos rasos, nas redes sociais onde todo mundo tem opinião sobre tudo e todos, mas pouca escuta para assimilar as eventuais contra argumentações. Serve para vencer uma discussão sem precisar ter razão, só impacto. É o famoso “todo político rouba” que silencia o debate sobre ética; o “isso é coisa de fascista” que encerra qualquer tentativa de empatia na seara política.

E o pior: muitas vezes quem usa dos estereótipos na argumentação nem se dá conta disso. Acha que está sendo realista, direto, até sagaz. Não percebe que repete falas herdadas, ideias empacotadas que nunca foram questionadas. O estereótipo é a ferramenta do ignorante. Trabalha com ela para atingir seu objetivo argumentativo. Porque, ignorância, no fim das contas, é só a ausência de olhar mais profundo, de ferramenta mais adequada...

Desconstruir estereótipos dá trabalho. Exige curiosidade, disposição para o incômodo, vontade de ouvir histórias que fogem do script. Mas é nesse esforço que mora a empatia.

E quem sabe, um pouco de sabedoria.

Edson Pinto

Abril, 2025

6 de abr. de 2025

324) O ESTRANHO SONHO DE ÉRICO


Érico sonhou que fora preso. Não sabia ao certo se seria por semanas, meses ou anos. A cela era fria, úmida, como se chorasse sua própria existência. Havia uma cama de solteiro com um colchão ralo, um vaso sanitário manchado pelo tempo, e uma estante de ferro com apenas um objeto: um volume grosso, encadernado em couro gasto, com a letra "E" gravada em dourado na lombada.

Era um volume de uma conhecida Enciclopédia, letra E, apenas isso. Nenhum outro livro, nenhum outro escape. No início, Érico ignorou o tomo. Passava os dias deitado, os olhos fixos nas rachaduras do teto, ouvindo os ruídos longínquos do exílio como uma trilha sonora de condenação.

Mas ao passar os dias, a curiosidade o venceu. Abriu o livro como quem abre uma porta secreta.

"Ebulição", dizia o primeiro verbete. Ele leu, releu, aprendeu tudo sobre o ponto em que a matéria líquida se transforma em gás. Pensou no corpo fervendo de raiva, na mente em ebulição diante das injustiças e desagradáveis momentos da vida...

Depois veio "Eclipse" e ele se lembrou da última vez que viu o céu. Leu sobre a dança dos astros e sombras. Imaginou-se como sendo a Lua ocultando a luz do próprio ser apenas à espera de se mostrar de novo.

Havia também "Epifania", e foi ali que ele teve a sua: aquele volume seria sua liberdade. Não a liberdade física, mas uma fuga mais sutil e talvez mais poderosa.

Por semanas, ele devorou tudo e a fundo de cada verbete. "Entropia", "Estalactite", "Esfinge", "Exílio" - palavra que doía como ferida aberta. Com cada nova entrada, Érico via o mundo se expandir dentro das paredes cinzentas. Aprendia termos científicos, mitológicos, filosóficos. Começou a criar histórias com as palavras, a imaginar mundos inteiros a partir de "Eneida" e "Etéreo".

Logo, os guardas começaram a notar algo estranho. O preso da cela 22 falava de forma diferente, usava palavras incomuns, fazia perguntas estranhas: "Você já ouviu falar em ergástulo?", "Sabia que espermatófitas são plantas com sementes?"

Quando, alguns anos depois, Érico foi finalmente libertado - erro judicial, disseram -, ele saiu com um caderno cheio de anotações e ideias, todas começando com a mesma letra. E, ao ser abordado por um amigo curioso por essa fixação com o “E”, ele respondeu:

—  A prisão me deu a oportunidade de saber tudo sobre mim, até mesmo sobre como ser poderoso comigo mesmo e para sempre ...

Edson Pinto

5/4/2025