21 de mai. de 2008

25) ATP (maio'08)


Abelardo atravessou lentamente o corredor que ligava os quartos à sala de visitas de seu apartamento; no caminho, passou pela pequena sala de almoço da qual através de um passador de pratos emoldurado pela antiga cortininha xadrez, era possível ver o que acontecia na cozinha. Nenhuma novidade ao fazer aquele pequeno trajeto, senão o fato de que aquele era o primeiro dia de sua aposentadoria e não eram 6 da manhã como de costume, mas 8 horas de uma segunda-feira. Adélia estava lá, sentada, esperando, como fizera religiosamente nos últimos 40 anos, que Abelardo tomasse o seu café, lhe desse um beijo e saísse para o ramerrão de sempre.

O final de semana tinha sido agitado: uma recepção na casa de seu patrão; muitos companheiros de trabalho atenderam ao convite que sua, agora, ex-secretária distribuíra sob a sua orientação e até mesmo outros que haviam sido convidados diretamente pelo patrão, presidente da empresa, amigo de longa data e compadre. Recebera como mimo um belo relógio de ouro com pulseira escura de couro de crocodilo; ouvira discursos, todos, obviamente recheados de elogios pelos 40 anos dedicados com absoluta retidão à empresa e que foram fundamentais para que ela atingisse a prosperidade que era visível a todos.

Honório, o patrão, 20 anos mais novo do que Abelardo sucedera o pai falecido no comando dos negócios e Abelardo como um dos principais executivos da época soubera, como ninguém, conduzir o jovem de então para que a empresa não só continuasse existindo, como a principio temiam todos, mas que até mesmo prosperasse solidamente, como de fato ocorrera. Além da merecida aposentadoria que Abelardo aos 65 anos conquistara, Honório soubera reconhecer-lhe o valor como tutor, como um grande executivo e como compadres que também se tornaram quando nasceu o seu primeiro filho. Concedera-lhe um bom aporte financeiro de tal modo que Abelardo pudesse vislumbrar uma vida tranqüila na sua melhor idade. Se dependesse de Honório, Abelardo trabalharia o quanto tempo quisesse, mas era necessário entender que ele merecia, agora, descansar.

Cenário perfeito para quem passou anos e anos sendo o primeiro a chegar ao escritório, viajando nos finais de semana para não perder um só minuto no trabalho que fazia nas filiais da empresa espalhadas por todo o país e nunca se recusando ao desafio de uma nova função, uma representação externa, recepcionar e ciceronear uma visita importante ou mesmo tudo aquilo que aborrecia aos outros, mas que para ele nada mais significava do que uma obrigação que cumpria com o maior gosto. Amava o trabalho e por ele tudo fazia...

Os filhos cresceram e já estavam casados. Adélia já se mostrava lamuriante ao sentir os primeiros efeitos do chamado ninho vazio. Filhos independentes vivendo em outras cidades e os dois, só se encontrando no adiantar da noite quando os afazeres da empresa liberavam Abelardo para o difícil retorno ao seu lar.

Tinha sempre a mania de, ao virar a chave do seu apartamento no final do dia, calcular quantas horas havia perdido no trânsito: “Hoje foram duas horas pela manhã, depois gastei mais uma hora quando fui almoçar com aquele cliente do interior e agora mais duas horas para voltar para casa: 5 horas jogadas fora”. Multiplicava por 5 dias na semana, 4 semanas no mês e então concluía: mais de 4 dias inteiros por mês apenas acelerando, freando, pulando lombadas, ouvindo apitos de guardas de trânsito e algumas vezes uma multa, só porque, distraidamente, fora flagrado por um desses radares traiçoeiros que levam boa parte da nossa suada renda. “Se pelo menos tivéssemos um trânsito organizado, vá lá, só que aplicam multas, mas não dão a contrapartida”, pensava, enquanto afetuosamente beijava Adélia após mais um árduo dia de trabalho.

Mas aquele sofrimento estava por acabar. Afinal, sua aposentadoria finalmente chegara e tudo parecia ter sido adequadamente arranjado para que ele e Adélia entrassem numa nova etapa de suas vidas. Planejou viajar, visitar mais os filhos e brincar com os netos, visitar os parentes que não via há muito, ir mais ao cinema, teatros, ler os livros que acumulou ao longo do tempo, muitos deles sem ter sido jamais abertos, freqüentar mais restaurantes e – sonho, um tanto fruto de seu trauma diário – abandonar o automóvel no fundo da garagem e utilizá-lo somente em casos extremos.

Abelardo toma o café, beija Adélia e instintivamente se dirige para a porta do apartamento quando se dá conta de que não precisa mais ir para o trabalho. Adélia acompanha a tudo com um ar complacente. Claro, ele estava tão condicionado que era compreensível vê-lo assim confuso e hesitante. __ Por que você não lê o jornal aqui na sala? Depois saímos. Hoje, a propósito, preciso ir ao supermercado e você poderia me ajudar, disse-lhe Adélia com a naturalidade de quem já havia anteriormente pensado em como seria a nova vida de seu marido.

E lá se foi Abelardo empurrando o carrinho do supermercado. Ao voltar para casa tratou de trocar a água dos passarinhos e como o totó, o poodle de Adélia, tinha sujado a área de serviço, também providenciou a limpeza, seguindo a orientação da esposa para que não machucasse o bumbum de totó quando da higiene final.

Para que o almoço saísse no horário, Adélia pediu que Abelardo descascasse as batatas e se não fosse muito o incômodo – falou docemente – se ele poderia catar o feijão e picar alguns tomates para o molho que ela iria preparar. __ Depois do almoço, Abelardo, será que você poderia consertar a torneira do tanque?

Já no meio da primeira tarde de aposentado, Abelardo começa a se dar conta de que saíra da posição de executivo de uma próspera empresa onde dava ordens e era obedecido de pronto para a situação de ser, agora, um mero ajudante de serviços domésticos. Seria só no primeiro dia ou aquilo era apenas o prenúncio de uma nova situação a perdurar por um longo e imperscrutável tempo? Indagou a si mesmo e sentiu-se impotente para encontrar uma boa resposta.

__ Adélia, vou até a praça para encontrar meus velhos amigos que lá estão jogando conversa fora, exclamou convencido de que estava na hora de retomar a posição de mandante. O jogo estava apenas começando e sentiu que era a hora de dar as cartas. __ Tá bom, Abelardo, aproveita e traz pães fresquinhos, ok?

Sentiu, naquele momento, que algo de muito restritivo estava começando a conduzir a sua vida. Já saíra de casa com uma obrigação a ser cumprida: Era necessário lembrar de comprar pães, fresquinhos e chegar rápido para que fossem consumidos como tal. Usou – como era seu costume na empresa – o recurso do processo mnemônico para não esquecer da tarefa: ATP (aproveita e traz o pão).

Mal tinha se reaproximado dos velhos amigos e a lembrança do ATP já estava interferindo nos seus pensamentos. Não dava para ficar ali sem qualquer compromisso com o relógio. Se ela pediu pão é para se alimentar; necessidade básica, portanto; se tem que ser fresquinho tenho que me apresentar na padaria no momento certo em que o pão sai do forno, então isso é prioritário...

Voltou com os pães, sentou-se na sala e pegou o primeiro de seus livros que tanto planejava ler. __ Abelardo, você poderia ver se a máquina de lavar roupa já completou o ciclo? Se sim, não se importaria de dependurar a roupa para mim? __ Ah, depois leve o lixo até o subsolo do prédio, pois amanhã cedo farão a coleta.

Não precisava de um outro dia para Abelardo ter certeza de que a sua vida dali pra frente seria completamente outra. Trabalhara tanto tempo mandando fazer, analisando números, convocando reuniões para discutir relatórios, planejar, aprovar despesas, assinar contratos, investir, atender grandes clientes e agora, subitamente, encarregado de limpar o totó, consertar a torneira, descascar batatas e nunca se esquecer do ATP (aproveita e traz o pão) que certamente se repetiria nos dias seguintes.

Terça-feira, 8 da manhã, Abelardo não está chegando à cozinha para tomar o seu café. Entra na sala de Honório devidamente engravatado, com uma caixinha na mão e diz: Compadre, estou devolvendo o relógio que você me deu. Estou de volta! Minha vida só tem sentido aqui... Surpreso, Honório que já se preparava para a leitura de um grosso relatório, o que até então tinha sido tarefa exclusiva de Abelardo, vai logo dizendo: __ Valha-me Deus, Abelardo, você sempre será bem-vindo. Recomece com este relatório ATP que tenho certeza não conseguirei digerir. __ ATP, não Honório! Aproveita e Traz o Pão? __ Que isso, meu amigo e compadre, este é o relatório Análise dos Tempos de Produção da nossa fábrica.

Abelardo tirou o paletó, respirou fundo e já começou a pensar o que falar com Adélia quando chegasse à noite em casa: Que belo dia! O trânsito nunca esteve tão bom...

Edson Pinto
16/05/08
postado em 21/05/08

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