26 de jul. de 2008

36) O PREDESTINADO (julho'08)


Quiseram fazê-lo doutor: Poderia ser um doutor da máquina humana, entendendo tudo sobre coração, nervos, males da pele, dos ossos ou mesmo da alma. Mas, poderia ainda ser um doutor das leis para defender contra as injustiças do mundo a todos quanto o queriam tão bem.

Não conseguindo convence-lo da magnânima importância de tais misteres, quiseram-no, agora, doutor em grandiosidades da engenharia: construiria palácios, estradas, portos e pontes que se sustentariam infinitas por fios fortes como as obras primas dos aracnídeos de Deus.

Dado tanto desinteresse só restava faze-lo um político integro: Pela honestidade, inteligência e verdadeiro espírito gregário, conquistaria a confiança do povo e assim se transformaria no líder tão esperado para levar a nação ao Olímpio de sua glória manifesta, mas, infelizmente, ainda inalcançada. Ou então, no mais reto dos clérigos para arrebanhar almas e levá-las sãs e salvas ao eterno Reino de Deus.

Já desistindo de tudo, melhor seria fechar os olhos e deixar que a vida por si só desse ao filho a tarefa que lhe julgasse apropriada. Não há como interferir nos desígnios da Providência e tudo há de se arranjar pela força de Quem mais pode...

E não é que o filho, de repente e quase que por encanto, revela-se tão mais útil e hábil do que todos os ofícios que lhe desejaram de forma tão ardente: Consertava corpos que nem os doutores da medicina; curava almas como os melhores filósofos clássicos; distribuía justiça a fazer dos causídicos abençoados meros aprendizes; construía pontes entre os homens a causar admiração aos mais respeitados arquitetos de sonhos; agregava cidadãos e distribuía justiça social como nenhum político vestal ousara anteriormente. E, tanto quanto o mais santo dos sacerdotes ensinava aos seus semelhantes os caminhos que os levava serenos a Deus.

Assim constando o sucesso do destino tomado pelo filho, os pais morreram felizes e dizendo:
 
Graças a Deus, nosso filho tornou-se um poeta...
Edson Pinto
postado em 25/07/08

22 de jul. de 2008

35) BOSSA NOVA, VIDA NOVA (julho'08)

Este conto participou no concurso de contos do O Estado de São Paulo pela comemoração dos 50 anos da Bossa Nova. O pré-requisito era encaixar a frase simbolo da Bossa Nova: "não quero mais esse negócio de você longe de mim".
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O caminhão da mudança deu um gemido seco procurando apoio na guia da calçada. Mesmo assim, o esperto ajudante de seu José pulou da carroceria já com dois tocos de madeira nas mãos e calçou as rodas traseiras do Ford, anos 40, que levava nossa mudança para a casa novinha em folha.

Papai e mamãe, agora pasmos de encanto, pulam da boléia antes mesmo que o motor barulhento daquele monstrengo parasse de roncar. Na carroceria, aberta ao vento, meu irmão, minha irmã e eu, completamente deslumbrados, ainda nos esforçávamos para evitar que a surrada penteadeira de espelho manchado pela umidade do tempo tombasse sobre a tralhoada. Eram todos os bens que tínhamos, mas a alegria que nos invadia a alma era infinda e sem paralelo em qualquer outro momento que a árdua vida nos reservara até então.

Era final de agosto de 1958, Belo Horizonte, e os ex-combatentes da FEB, como era meu pai, recebiam, com aquela casa financiada em longo prazo, o que consideravam ser a primeira atenção do governo brasileiro pela sua heróica participação na campanha que ajudou a extirpar o Nazismo, este, responsável pelo mais sangrento conflito de todos os tempos, a Segunda Guerra Mundial.

O bairro era novo, centenas de casas com jardins na frente e um modesto quintal fazendo fundos com outras casas, todas iguais e aparentemente - para o garoto de nove anos que eu era - cheio de gente do meu tamanho. A chegada de uma nova família era uma alegria coletiva. Os que já estavam lá acenavam e a garotada acorria, tanto para ajudar na descarga da mudança como, principalmente, para buscar o entrosamento que perduraria por tão longos anos.

Da casa em frente, a vitrola deixava escapar pela janela, agora escancarada como se fosse para nos dar boas-vindas, a voz rouca de João Gilberto em “Chega de Saudade”. Ainda curtíamos a primeira Copa do Mundo, os gênios Pelé e Garrincha, Juscelino construía Brasília e nos ufanávamos da ousadia de crescer 50 em 5. Tínhamos certeza de que novos e bons tempos estavam por vir...

Naquela mesma janela de onde ecoava a Bossa Nova, meus olhos se depararam pela primeira vez com o olhar arisco da menina de fita branca no cabelo que observava atentamente cada movimento dos novos vizinhos, ao mesmo tempo em repetia, quase que instintivamente, a canção que viria marcar para sempre as nossas, ainda tão jovens, vidas.

Quase vinte intensos anos naquele lugar. Amigos que chegaram; amigos que se foram; o irmão que a fatalidade levou para sempre; os primeiros casamentos da turma; o time de futebol; o jornalzinho do bairro; os bailinhos; os namoros mil e a despedida para a cidade ainda maior, porque a vida assim o quis.

E na selva de pedra, São Paulo, a imagem e o som que nunca haviam deixado minha memória tomam conta do coração solitário, porém repleto de sonhos; e volto ao meu bairro antigo para dizer de forma definitiva àquela menina de fita branca no cabelo que: “Não quero mais esse negócio de você longe de mim”.

Edson Pinto
postado em 22/07/08

15 de jul. de 2008

34) OPERAÇÃO SADIAGALINÁCEA - julho'08 (uma sátira menipéia)


Os nervos de Severino Silva já não suportavam mais aquele estado de permanente apreensão. Depois de a Polícia Federativa, a famosa PF, ter prendido todos os ricos do país, por razões as mais diversas, agora estava chegando a Casinha da Mãe de Deus, povoado sertanejo que de tão pobre e inexpressivo sequer havia merecido dos cartógrafos uma simples, que fosse, referência no mapa de sua região.

Sô Dedé, o padeiro, fora acordado e algemado de madrugada por agentes da PF devidamente acompanhados da Rede Mundo de Televisão. Preso, porque investigações sigilosas, incluindo escutas por detrás de portas autorizadas pela justiça local, flagraram-no entregando 10 espigas de milho ao Chico do Jumento para que este lhe trouxesse, o mais rápido possível, as sacas de farinha de trigo que comprara na cidade. Indícios, afirmou a PF, de inquestionável ato de corrupção...

Padre Antônio, o quase santo pároco da igreja do povoado, também fora algemado pela PF, com cobertura e registro das câmaras da Vênus prateada, enquanto dava a comunhão na única missa que Casinha da Mãe de Deus recebia por mês. Quando levantou a mão para fazer o sinal da cruz abençoando a hóstia sagrada, um agente truculento, com jaleco preto, meteu-lhe a algema no punho direito e ainda sorriu para a câmara. Dona Genilda que estava de boca aberta aguardando a hóstia, nunca mais conseguiu fechá-la, parece – dizem - que de protesto. Acusação: padre Antônio terceirizara a produção de hóstias entregando-a ao Convento das Carmelitas Descalças sem ter procedido aos ritos da abertura de licitação e do necessário estabelecimento de concorrência pública. Não adiantou ao santo padre Antônio provar que recebia as hóstias em troca de uma missa que celebrava mensalmente no Convento. Sair da cadeia só com habeas corpus, e aí já não era mais problema da PF.

Havia ainda boatos de que a PF investigava as condições das vacas do sô Didinho, suspeitando-se de que circulavam livremente entre pastos sem o devido estudo de impacto ambiental a ser feito pelo IBAMA. O velho Zequinha vivia vendendo bodes e nunca pagava impostos. Suspeitava a PF de que ele enviava dinheiro pra fora de Casinha. Não se sabe por que, nem para que fins, pois era um homem miseravelmente pobre. A verdureira, Dona Maria das Couves, abandonara o ofício, pois a PF investigava ostensivamente denuncias de que seus molhos de couve não respeitavam os padrões de pesos e medidas estabelecidos pelo poder central.

Decidiu então, Severino, que para viver tranqüilo e sem o estresse que a PF lhe dava, não sairia mais de casa. __ Se não me relacionar com o mundo, ficarei livre da surpresa de um dia ser algemado por um motivo qualquer e ainda aparecer na TV. __ Isso, jamais farão comigo! __ Vou dedicar o resto de minha vida, em tempo integral, a cuidar bem de minhas galinhas. __ Ficarão mais fortes, mais sadias. Exclamou, depois de muita reflexão. Dito e feito: Severino sai de cena.

Madrugada de um dia qualquer, meses depois de sua voluntária reclusão, a PF e a Rede Mundo que àquela altura já não viviam uma sem a outra, invade o rancho de Severino e o arrasta algemado para o camburão. Aos gritos, Severino tenta obter, do agente chefe, a razão de sua prisão: __ Se o senhor não sabe o que anda fazendo de errado, seu Severino, logo saberá. E, antes de entrar no camburão o agente de jaleco preto, óculos escuros, embora madrugada, aponta para o monitor da Rede Mundo que ali se instalara a espera do evento e fala para Severino: __ Ouça a reportagem!

E a dócil repórter de escova progressiva, microfone em punho lê no “teleprompter”, aquele aparelhinho que reproduz o texto sobre a câmara e que nos ilude ao dar a falsa impressão de grande competência do narrador:

“A Polícia Federativa acaba de concluir com absoluto êxito a operação Sadiagalinácea em que, Severino Silva, desempregado, desdentado, desnutrido, sem CPF e sem RG, aqui do povoado de Casinha da Mãe de Deus, é preso por andar livremente em sua casa vestindo uma simples cueca furada. Filmagens com câmeras ocultas implantadas sob a plumagem de galinhas sadias da casa do próprio Severino foram feitas com autorização judicial. Daí o nome da operação: Sadiagalináceas que não tem nada a ver com a operação Satiagraha que, em local bem distante, prendeu gente não menos importante. Afinal, a lei é dura, mas não faz distinção social para ser aplicada. As investigações serão prosseguidas para constatar a origem das galinhas” Mal a TV soa o 2º “plin plin” e Severino é lançado algemado e de cueca furada para dentro do camburão.

Severino, por falta de recursos financeiros e tendo lhe fugido todos os amigos desde que se isolara do mundo, encontra-se até hoje preso na cadeia de Casinha da Mãe de Deus. Acredita, declarou recentemente o chefe maior da PF, que com o tempo Severino deixará de se comportar de forma tão pouco republicana como vinha fazendo. Afinal a lei é igual para todos...

Corre, contudo, na vara de justiça de Casa da Mãe de Deus uma “penosa e cacarejante” ação promovidas pelas galinhas do Severino contra a arbitrariedade da PF, com o beneplácito do ITJ (Inferior Tribunal de Justiça) do estado, pelo seu inocente uso para a filmagem de seu único e generoso provedor: Severino Silva.

As galinhas emagrecem aceleradamente dia a dia...


Edson Pinto
postado em 15/07/08

11 de jul. de 2008

33 ) O FUNDO DO POÇO - julho'08 - (texto com certa e irresponsável licenciosidade poética)



A pedra tosca desprende-se da montanha crua e rola até estacionar-se inerte bem na borda do poço. Olha para um lado, olha para o outro, e não tendo mais o que fazer deixa-se cair sem se dar prévia conta do que lhe reserva o fim da jornada.

Bate de cá, bate de lá, e não pára de rolar. Só lhe faz sentido notar que, quanto mais caía, mais escuro ficava. Quanto mais ao fundo ia, mais não sabia o que encontrar; nem uma luzinha de esperança, muito menos uma mãozinha, que julgasse ao menos amiga, para lhe amparar.

E rola tanto e tanto se esfola que as suas arestas vão gradativamente sendo aparadas. As partes frágeis e inúteis de sua capa ilusória se desprendem nos solavancos de seu infindo rolar.

E mais rola e mais rala e mais se arredonda até ficar reduzida a sua essência: um núcleo sólido, brilhante, polido, tão puro como um quartzo, tão vistoso como um rubi, tão fascinante como uma esmeralda e duro, resistente, como um diamante. Ela mesma se espanta. Jamais imaginara a si mesma tendo sido feita de matéria tão vistosa.

E não tendo mais para onde rolar, mergulha plácida na água fresca e pura do fundo do poço. E ela que tanto temia estar indo de encontro ao fogo do inferno, só então percebe o quanto valera a pena tanto rolar. Da bruta pedra que hesitante na borda do poço penara ao decidir deixar-se sofrer nas quedas livres ao ar, agora, via contente, uma reluzente pedra preciosa acabara de se revelar.

E como uma mágica, sem explicação, sem a lógica dos formais, sem a ajuda de mãos dos mortais, percebe o fundo do poço abrir-se numa cachoeira resplendorosa a lhe revelar um novo e maravilhoso mundo.

Agora, sim, pronta para ser descoberta e nunca mais deixar de brilhar.

Edson Pinto
postado em 11/07/08

9 de jul. de 2008

32) MY WAY (julho'08)


Se os maus políticos e outros velhacos brasileiros, depois das encrencas em que se metem, soubessem sair de cena na hora certa, penso que – mesmo não vivendo o resto de seus dias com as consciências tranqüilas, pois isso é impossível para quem tem um mínimo de princípios morais/éticos - pelo menos poderiam gozar o lado material e bom de uma aposentadoria.

Vejam a situação de Bill Gate: depois de ganhar tanta grana fazendo softwares caros e problemáticos além de monopolizar destrutivamente mercados, aposentou-se. E o fez em alto estilo. Acessem o link abaixo e constatem que mais importante do que entrar num jogo de alto risco é saber a hora certa para sair dele. Embora se trate de uma charge, e como tal uma brincadeira, traz em seu bojo forte verossimilhança com a realidade do nosso selvagem capitalismo.

Enquanto isso, Celso Pita, Paulo Maluf, Naji Nahas, Daniel Dantas, Salvatore Cacciola e outros (só para citar os casos mais recentemente divulgados pela mídia) insistem em fingir que nada fizeram de errado. Uma hora pegam... Imaginam, do alto de suas arrogâncias típicas da híbris dos vencedores (na tragédia grega, o orgulho e a arrogância do herói que são também responsáveis por sua queda), que passarão incólumes pelos crivos da justiça e da boa opinião pública.

Acontece que, embora não exista sistema melhor - isto já está sobejamente comprovado - o capitalismo, até mesmo por seu principio basilar da liberdade de ação dos agentes econômicos, nunca conseguiu estabelecer marcos ético/morais para bem regular suas performances. Aí, entram os inescrupulosos que usam das falhas do sistema para agirem de forma predatória. Dá no que dá. O resto, todos nós sabemos...

Se pudermos extrair alguma lição desses episódios, uma delas seria que, talvez mais valha termos uma vida mais simples. Exageradamente falando: até mesmo sem CPF, sem conta bancária, sem sociedade jurídica registrada na Junta Comercial e sem outros instrumentos tipicamente capitalistas, do que alçarmos vôos mirabolantes e depois cairmos no mar para alegria dos tubarões de plantão. Em metáfora, a memória do padre Ardeli, aquele do vôo com balões de festa, que o diga...

Ah! E, notem que, agora, teremos o cadastro único dos cidadãos brasileiros: mostrou no Jornal da TV. Tem impressão digital eletrônica e até chip que guarda informações as mais importantes sobre a nossa cidadania. Estamos nos aproximando, mais rápido do que imaginávamos, do verdadeiro “Big Brother” preconizado por George Orwell em seu famoso livro 1984. Nada escapa do controle do Grande Irmão. No nosso caso, morando, atualmente, em Brasília.

Alternativa: ir embora para a Pasárgada de Manuel Bandeira: “Lá sou amigo do rei/Lá tenho a mulher que quero/Na cama que escolherei”...

Edson Pinto
postado em 09/07/08

Bill Gato(?) canta My Way ao se aposentar! Clique no link abaixo. Para retornar ao blog use o botão de retorno (<) do Navegador: http://charges.uol.com.br/2008/07/03/bill-gato-canta-my-way/

4 de jul. de 2008

31) UMA LINDA NEMATOCERA (julho'08)



__ Ufa! Dia igual a esse difícil de se repetir, reclamou Euzébio ao entrar em casa após uma exaustiva jornada de trabalho. Tinha toda a razão: Levantara às 5 da manhã, pois a primeira reunião aconteceria às 8, em ponto. Lá estivera todo o pessoal envolvido com o novo produto que a empresa necessitava lançar em breve. Ele, mais do que ninguém, estava visceralmente alojado no assunto, uma vez que fora escolhido como o líder do projeto. Diziam, até mesmo, que sua carreira deslancharia célere caso o produto se tornasse o sucesso que todos esperavam.

Não conseguiu almoçar. A reunião se estendera mais do que o previsto e nova discussão, agora com fornecedores, na fábrica, já às 14 horas. Pegou um sanduíche frio e equilibrando uma garrafa de refrigerante dirigiu-se, de carro, por mais de 1 hora até o local do segundo encontro do dia. Temas com acertos de preços, prazos, qualidade da matéria-prima e outros estenderam as negociações até próximo das 7 da noite.

Mais 2 horas de volta até a sua casa. Ainda tinha que tomar banho, jantar, falar um pouco com Márcia, sua esposa e – para não trair o seu recente propósito de dar mais atenção aos filhos – conversar amenidades com Mariana, 12 e Juliano 10 anos. Não deitava antes de se atualizar com um dos jornais da TV. Naquela noite – de tão cansado que se encontrava – já tinha até decidido não assistir deitado na cama, o programa do Jô, outra de suas manias antes da entrega plena aos braços de Orfeu. E o pior: a reunião crucial para finalização do projeto a ser, a curtíssimo prazo, apresentado à presidência da empresa. Havia, contudo, uma pendência muito séria colocada pela turma do Marketing e que – se não satisfatoriamente resolvida - colocaria tudo em risco e, por extensão, até mesmo a tão acalentada decolagem de sua carreira.

Mal a dupla de apresentadores do jornal dissera “Boa-noite!”, Euzébio desliga a TV, faz a sua rotineira e rápida oração, beija Márcia que já estava dormindo e assume a sua indefectível posição de repouso com uma perna esticada e outra encolhida até o ventre. O dia fora duro, mas reconforta-se ao convencer-se da inexistência de algo melhor do que uma cama confortável, como aquela, para recompensá-lo pelo dia agitado que tivera.

O zumbido de um pernilongo corta o silêncio do quarto e se aproxima - cada vez mais - de seu desprotegido ouvido direito. A impressão era de que aquilo fosse uma artimanha do vil inseto para testar-lhe a condição de um ser ainda não adormecido. Se já dormindo, ai meu bom Deus! Picada na certa e, no outro dia, era só perceber os pontos avermelhados que ficariam no seu rosto, como de vezes anteriores. Não era justo permitir que aquele intruso barulhento tenha vindo apenas para sugar-lhe o sangue, por nada e impunemente. A empresa, o trabalho, a família, o trânsito ainda vá lá, mas um insignificante e repulsivo inseto, isso já era demais...

Levanta-se de sobressalto, vai até o banheiro e pega a toalha, que por ter sido recentemente usada, tinha o peso e a textura adequados para a tarefa de massacrar impiedosamente o indesejável visitante. Acende as luzes, desperta, obviamente sem intenção, Márcia e começa a esquadrinhar cada centímetro das paredes, do teto, sacode a cortina e nada. Decide deitar outra vez, mas já com a toalha devidamente posicionada ao seu lado. Novo ataque. Ele pragueja; dá novo salto e nova caçada é empreendida. Mais 30 minutos, agora incluindo "toalhadas" giratórias sob a cama e – de novo – nada. Sucedem-se 3 outras vezes a mesma cena. Em apenas uma delas teve a fugaz impressão de ter visto o pernilongo se movimentando de um lado ao outro do quarto, mas quase que por encanto ter desaparecido sem deixar o menor vestígio.

Três horas da manhã, Euzébio ainda acordado, exausto, aborrecido e derrotado por aquele inseto nauseabundo e – diga-se, francamente - desprovido de qualquer escrúpulo por insistir em roubar-lhe tanto a tranqüilidade como o sangue de homem batalhador como era. Tentava inutilmente encontrar alguma utilidade para os pernilongos: Se os morcegos - que ele também detestava e abominava - eram úteis como polinizadores e dispersores de sementes tão vitais para o equilíbrio dos ecossistemas, talvez os pernilongos tivessem alguma contrapartida igualmente compensatória. Nada; nadinha; e isso só aumentava o ódio de Euzébio para com o seu maior inimigo do momento. Agora, já tinha se tornado uma questão de honra: __ Ou ele ou eu, vociferou, enquanto Márcia, indiferente ao drama de Euzébio, volta-se para o canto e dorme.

Meticuloso e disciplinado no trabalho, decidiu dar àquela tormentosa situação um tratamento adequado e eficaz como sempre fazia com as questões que se lhe apresentavam no dia-a-dia da empresa. Era, em primeiro lugar, necessário entender pela luz da Ciência o que leva os pernilongos a agirem de forma tão inconveniente. E a partir daí, sim, neutralizar-lhes a atuação de demolidores irresponsáveis dos sonos alheios.

Vai à estante de sua sala e toma ansiosamente a Enciclopédia: “Pernilongo, inseto da subordem Nematocera, alimenta-se do sangue dos vertebrados, incluindo o humano, para maturar seu ovário antes de pôr os ovos; o zumbido é provocado pelo bater das asas da fêmea atraída pelo CO2 (gás carbônico) que exalamos de nosso corpo, etc., etc..” Claro que outros já haviam pesquisado essas coisas, pensou frustrado enquanto enumerava mentalmente soluções já disponíveis e que ele – infelizmente - não dispunha naquele momento: uma raquetinha que eliminasse o pernilongo com um choque vingador, seria uma boa, mas só se o pernilongo se apresentasse fisicamente, mas aquele maldito espertinho do momento era dissimulado, furtivo que só vendo. Um repelente, um fuminho de citronela, um filó ao estilo daquelas camas medievais que se vê nos museus? Pensou em tudo, porém nada disponível. __ Vou deitar, e seja lá o que Deus quiser. Daqui a pouco tenho que me levantar e - pior de tudo - uma pendência aparentemente insolúvel me aguarda, desafiadora, já na primeira hora do dia de trabalho.

Deita, cobre a cabeça com o lençol e finge não ligar para o calor insuportável daquele verão. Quase sem esforço, vem-lhe a mente duas das informações que a Enciclopédia havia lhe fornecido: quem ataca é o pernilongo fêmea, vou chamá-lo de “pernilonga”, pensou; e o que a atraí é a liberação que nosso corpo faz do gás carbônico. Repassou-as algumas vezes e dormiu. Mal e pouco, mas dormiu. Não deve ter sido picado pela Nematocera oculta, talvez porque rivalizasse com Márcia, pois, quando acordou, ela ria ao dizer que ele a fez lembrar um saco de batatas, tal era a forma em que se encontrava: empacotado e ausente. Se não serviu à pernilonga, tampouco serviu à Márcia...

Chega ao escritório com olheiras típicas de uma noite mal dormida. __ E então Euzébio, pergunta um dos colegas mais afoitos da equipe: __ Será que conseguiremos sanar a pendência relacionada com a falta de atratividade provocada pelo produto? __ Lembre-se, Euzébio, falou outro: __ Se as mulheres não se sentirem atraídas por ele como poderão azucrinar os seus maridos para usá-lo? __ Elas precisam estar tão interessadas a ponto de ficarem zumbindo em suas orelhas até que eles tomem ações pra valer, completou outro membro da equipe mais afeito aos temas lascivos inerentes à psicologia do consumidor.

Para Euzébio tudo aquilo parecia um pesadelo: A noite mal dormida, porque uma “pernilonga” atraída pela sua liberação de gás carbônico ficava zumbindo em seu ouvido e agora...

__ Espera aí pessoal, gritou com tamanho entusiasmo que até parecia ter dormido muito bem por pelo menos 24 horas. __ Tenho a solução. Nunca me perguntem o porquê, e se um dia o fizerem, jamais revelarei a origem da minha idéia. __ Mãos à obra, turma! __ Vamos colocar uma essência artificial que simule o odor do gás carbônico em nosso novo sabonete.

O produto foi testado, virou um sucesso de vendas e Euzébio tornou-se o Diretor de Novos Produtos da empresa. Ganhou substancial aumento de salário, regalias e a fama de grande inovador. Pediu merecidas férias. Foi flagrado, pelos filhos curiosamente vexados quando adentraram ao quarto para o beijo de boa-noite, abraçadinho com Márcia. Na TV ligada, Jô Soares esbanjava exuberância descendo rebolativo de seu tão inútil quanto modorrento elevadorzinho cênico. Enquanto isso, Euzébio filosofava:

__ É querida, às vezes fico pensando como os pernilongos, apesar do seu ruído infernal, podem mudar as nossas vidas para melhor. Ela nada entendeu, nem queria. Achegou-se com olhar lânguido, não disse boa-noite por que não era hora e zumbiu-se como nunca.

Euzébio, com os olhos revoltos e brilhando de felicidade, procurava inutilmente nas paredes escuras do quarto, uma Nematocera, qualquer que fosse, apenas para – penso – dizer-lhe que naquela noite seus ouvidos já se encontravam ocupados...

Edson Pinto
postado em 04/07/08