29 de ago. de 2013

249) BARCO FURADO

Passei quase uma semana inteira cuidando de um assunto prosaico: A tentativa de renovação de minha Carteira Nacional de Habilitação (CNH). Penso que muitos dos meus amigos já passaram por isso, senão várias, pelo menos umas duas vezes na vida. Sabem, portanto, da burocracia envolvida, principalmente se moram em cidade grande e desde quando o Código de Trânsito tornou-se mais rigoroso e implantou multas pelas nossas distrações, pressa, inocência e até mesmo barbeiragem. Aqui em São Paulo até que existe um tal de “Poupatempo” que funciona - pelo menos por ora - bem nessa nobre tarefa de produzir vários de todos esses papéis que a cidadania nos impõe, CNH inclusa.

Bem, primeiro tem-se que preencher um formulário e agendar pela Internet um horário no Poupatempo. Foi o que fiz; aguardei o dia e, no horário, lá estava eu feliz com meus documentos em mãos e um bom livro para, se fosse o caso de espera longa, aproveitar bem o tempo disponível, afinal o nome da repartição pública bem que nos sugere uma boa administração de nosso tempo cada vez mais escasso. Mal passei da triagem e a educada atendente com rápidas digitadas no computador me deu a desagradável notícia de que não poderia renovar a minha CNH, pois havia um bloqueio por excesso de pontos decorrentes de multas. Tinha agora de ir ao DETRAN que no meu município se desdobra em CIRETRAN. É a mesma coisa, só que encarregado dos assuntos de transito do município e com as suas peculiaridades de gestão que mais à frente bem haverão de entender...

___ Mas senhor Delegado - disse eu à “autoridade”, que estranhamente portava e deixava visível um revólver na cintura (instrumento de trabalho necessário?) - eu já havia apresentado no início do ano passado a minha defesa como pode ser visto aqui nesta carta registrada e encaminhada à sua CIRETRAM, por AR (Aviso de Reembolso), na qual eu demonstro que uma das multas não era minha, já tinha sido transferida, e que, ao tirá-la, meus pontos não excediam ao limite de 20 como determina a lei.

___ Sim, senhor Edson, nós recebemos a sua defesa. Ela está aqui, só que foi indeferida. O senhor devia ter vindo aqui até 30 dias após a entrega da defesa para saber do resultado. Como o senhor não veio, agora nada mais pode ser feito. Nem reexaminar a sua defesa podemos fazer.

___ Espera, senhor Delegado! Eu recebi uma Notificação pelos Correios me informando da abertura do processo para suspensão da minha habilitação; respondi por escrito, também pelos Correios, como já constatado, e esperava uma a resposta também por escrito, pelos Correios. Por que só pessoalmente conseguiria ver o resultado?

___ Nada feito, senhor Edson, essa é a regra. Devolva a CNH e deverá ficar 90 dias sem dirigir. Terá ainda que fazer um curso de reciclagem e – importante – não poderá ter nenhuma multa nesse período sob pena de nova penalidade ainda mais severa!

E sabem por que acumulei essas multas, meus amigos? Uma delas, por exemplo, foi quando entrei em uma avenida ampla no município de Osasco, sem perceber que logo no seu inicio havia (cheguei a conferir posteriormente) uma plaquinha camuflada por detrás de galhos de uma árvore que crescera em excesso indicando velocidade máxima de 60 km. Nenhuma outra indicação ao longo da longa avenida, mas radares também ocultados por galhos de árvores estrategicamente postados para o flagrante. Outra multa: em uma avenida que começa indicando 60 km, mas sem nenhuma razão técnica aparente, muda a certa altura para 50 km. Exemplo de outra multa, esta inclusive já anteriormente objeto de defesa, sem sucesso, por passar em rodovia sem uso de cinto de segurança. Não era verdade, e, mais do que isso: praticamente impossível um agente rodoviário poder perceber, com absoluta certeza, que um motorista não usa o cinto de segurança só por uma rápida olhadela para dentro de um carro que passa em velocidade e com vidro fumê na gradação legal. Você sabia que a palavra de um agente de trânsito, assim como funcionários públicos diversos, é revestida do que se chama de “fé pública” da qual se presume autenticidade e por isso não pode ser questionada sem elementos probatórios muito fortes?

Bem, pesquisando o assunto descobri que os recursos de motoristas são em tamanha monta que os órgãos encarregados não se dão ao trabalho de analisar detidamente todas as defesas. Metem logo um INDEFERIDO e tudo fica por isso mesmo... Há, sim, a alternativa do Judiciário para se tentar fazer com que nossos direitos sejam respeitados, incluindo o correto julgamento de defesas dos cidadãos motoristas.  No meu caso em especifico continuo convencido de que a “autoridade” foi no mínimo desatenciosa para com os meus fundados argumentos. Só que – e isso todos nós sabemos - que justiça toma tempo, é cara e pode demorar um tempo tão longo que não contribui positivamente com os interesses práticos de quem precisa se movimentar neste País cada vez mais complicado e difícil de viver. Há outra solução, porém essa devemos repudiar por questão de princípios. Todo mundo sabe qual é e como funcionam as coisas nesta “res publica”.  Neste barco em não entro, pois está furado...

Portanto, meus amigos, com um olho no peixe e outro no gato, ou melhor, um olho no processo, outro no revólver do Delegado, decidi que estarei nos próximos 90 dias restrito em minha movimentação. Minha esposa, cuja pericia de copiloto, já fora comentada no texto anterior, agora sai do banco do carona e passa para o banco do motorista.

A propósito, embora a principio pareça ser uma boa oportunidade para retribuir a sua eficiente copilotagem, penso ser melhor eu ficar calado e continuar a leitura daquele livro que levei para o Poupatempo e não consegui ainda lê-lo por inteiro. O título do livro é “Nobreza de Espírito – um ideal esquecido” de Rob Riemen, Editora Vozes, que me foi presenteado pelo amigo, professor Gilberto Canto. Recomendo!

Edson Pinto

Agosto’ 2013 

15 de ago. de 2013

248) DIREÇÃO AUTOMÁTICA (Self-driving car)

Gosto muito de me inteirar de todas essas maravilhosas tecnologias que prometem nos dar mais segurança e conforto.  Mal nos acostumamos com uma e lá vem outra que passa a desafiar a nossa capacidade de adaptação ao mesmo tempo em que torna obsoleto e antiquado o modo com o qual nos relacionávamos, até então, com o assunto. Caso nos recusemos a aceitá-las, submetemo-nos ao compulsório alheamento à modernidade. Se não quisermos entrar para o rol dos alienados ou mesmo dos jurássicos, o melhor a fazer é tentar entendê-las e até mesmo adotá-las.

Já pararam para pensar o que surgiu de novas tecnologias nos últimos 20 anos? Cito algumas: O computador pessoal, que de utilidade restrita, no início, passou a ser quase uma obrigatoriedade para tudo o que fazemos agora em nossas vidas. Afinal, é com ele que nos informamos, controlamos nossas tarefas, acessamos e operamos a conta bancária, consultamos mapas, agendamos compromissos, escrevemos mensagens, cartas e as enviamos para qualquer lugar do mundo instantaneamente; pedimos a pizza do final do dia; ouvimos música; assistimos filmes; colecionamos fotos e muito mais.

O telefone, aquele mostrengo pesadão que ficava num local especial da casa, virou celular, depois smartphone, ganhou imagem, cores, GPS, acesso à internet, jogos eletrônicos, máquina fotográfica, filmadora, agenda. Serve para chamar taxi, acessar a câmera de vídeo do escritório, ver mapas e até – acreditem ou não – telefonar...

Os automóveis ficaram mais seguros e confortáveis com sistemas automáticos de câmbio, freios ABS, sistema de navegação por satélite, injeção eletrônica e sensores diversos. Poderia aqui enumerar várias outras tecnologias na medicina, nos transportes, na engenharia e outras áreas, mas isto tomaria muito do tempo de que preciso para falar sobre uma em especifico que afeta o dia a dia de uma boa parte dos homens casados:

De uns dois anos a esta parte, temos ouvido falar, com cada vez maior freqüência, sobre estudos que várias empresas de informática, como o Google, universidades, montadoras de automóveis e outras entidades sérias vêm fazendo para o desenvolvimento do carro que dispensa motorista. A essa nova tecnologia tem-se dado o nome de ”Self-driving car” ou, em português, “Direção Automática”. Funcionaria mais ou menos assim: Você entra no seu automóvel e diz para ele que quer ir a tal ou qual destino. Pronto! Pegue o seu jornal, ou seu tablet, ou seu celular, ou entabule uma animada conversa com sua parceira ou parceiro de viagem e esqueça o desassossego do trânsito. O carro fará tudo sozinho, dispensando-o de trocar marchas, atentar-se aos sinais dos semáforos, frear, acelerar, virar o volante, prestar atenção aos demais carros na pista, cuidar de não atropelar pedestres e todas essas coisas que o motorista tem que fazer ainda hoje para se obter o mesmo propósito que é o de se deslocar de um local a outro com rapidez e segurança.

Confesso que acho bonita e muito engenhosa essa nova tecnologia de direção automática.  Não nos espantemos, portanto, se dentro de pouquíssimo tempo começarmos a ver os primeiros carros sem motoristas ao volante circulando por nossas vias públicas. Como aconteceu com outras tecnologias, talvez, um dia, essa eu tenha que assimilar também. Contudo, por ora, e nos estágios das informações que são disponibilizadas ao público, confesso não ver tanta vantagem. Se você meu amigo tiver uma situação parecida com a minha, certamente saberá me dar razão e assim nos alinharmos em pensamentos. Explico:

Quando estou dirigindo com a minha mulher ao lado, todas as funções automáticas do futuro e inovador sistema “self-driving car” já me são completamente supridas: Sou automaticamente dispensado de qualquer esforço intelectual para dirigir, pois ela me diz quando estou próximo demais do carro da frente; me alerta quando há pedestre querendo atravessar a via; me manda mudar de faixa quando constata que a faixa em que me encontro está mais lenta do que a outra; chama-me a atenção para os semáforos, para a sinalização vertical e de solo; me alerta severamente quando a velocidade parece excessiva; determina-me virar à direita ou à esquerda tão logo a esquina ou o cruzamento sejam atingidos; orienta-me para ligar ou desligar o ar-condicionado, o rádio, o farol, a seta, colocar o cd no player e todas e quaisquer outras tarefas que a nova tecnologia vier, suponho, a incorporar nos veículos modernos. Por essa razão não vejo – a principio – muita novidade no que vem por aí.

Como veem, não é pela introdução automática de novas funções de controle que a tecnologia irá suprir o que já têm, em geral, os homens casados com mulheres zelosas, pois ambas propiciam o mesmo nível de controle e segurança. A minha situação atual em particular até que me dispensaria – a priori – de ter um elevado gasto com a aquisição de um carro com o novo e provável sistema de direção automática, uma vez que todas as tecnologias, pelo menos nos seus momentos iniciais, tendem a custar bem caro.

Só há, contudo, uma possibilidade de eu começar a me interessar por ela e, dessa forma, considerar um dia poder adquiri-la: É saber se com a nova tecnologia “self-driving car”, ficarei livre de todas as repreensões que recebo, ao dirigir, do meu sistema automático atual...

Edson Pinto

Agosto’2013 

8 de ago. de 2013

247) A LÍNGUA DO PÊ

Sepe vopocêpê tepevepe inpinfanpancipiapa, vopocêpê vaipai lempembrarpar despestapa brinpincapadeipeirapa.

Se não lembrou, certamente perdeu uma das brincadeiras mais instigantes que a garotada de outros tempos utilizava para agitar os relacionamentos sociais ainda em formação. As meninas, pelo menos na minha época, eram as mais espertas e talvez mais caprichosas do que os meninos para debulharem essa quantidade de palavras aparentemente complexas. Com elas driblavam a curiosidade dos garotos enrolando-os numa trama quase inescapável. Perante outras garotas ainda não iniciadas na brincadeira, impunham-se pela admiração que o domínio do estranho idioma lhes impunha.

A origem da língua do “Pê” remonta à segunda guerra mundial: Dizem que os soldados aliados para se comunicarem sem que fossem interpretados pelos inimigos prisioneiros bolaram uma nova língua a partir da própria língua pátria, simplesmente acrescentando ou pospondo a cada silaba uma outra sempre composta da letra “p” e da final da silaba original a que se ligavam. Há, portanto, lugares em que se colocava a nova sílaba antes e outros depois da principal. Assim, a expressão que começa este texto quer dizer: “Se você teve infância, você vai se lembrar desta brincadeira”. É só tirar o “pe” que vem depois do “se”, o “po” que vem depois do “vo”, o “pê” que vem depois do “cê” e assim por diante. Experimente!

A Celma, minha irmã de 10 anos era batuta nessa linguagem. Dava nó em pingo d’água, ou melhor, “dapavapa nópó empem pinpingopo dapaapaguapa” Entendeu?

Chegou à janela de casa e gritou para uma coleguinha recém-chegada ao bairro:

___  Opo quepe vopocêpê tápá fapazenpendopo? 

A menina perplexa:

___ Não te entendo, o que você tá falando?

___ Vopocêpê nãopão conponhepecepe apa línpínguapa dopo Pêpê?

___ Hein?

___ Então precisa aprender para poder conversar com a gente, entendeu?

___ Você me ensina?

___ Claro, depois que eu assistir a televisão que está ligada aqui do meu lado, você está ouvindo o som?

___ Vocês tem televisão? Ninguém na rua tem!

Era final dos anos 50 e pouca gente tinha um televisor em casa. Era coisa rara e ainda privilégio de gente muito abonada, o que não era o nosso caso. Para a Celma, devia ser naturalmente um sonho que ela realizava de forma esperta e somente para impressionar a inocente amiguinha que acabara de chegar ao bairro.

Na verdade o que tínhamos era um rádio a válvula que ficava sobre um móvel da sala bem nas proximidades da janela onde o diálogo transcorria. Era a preciosidade da casa que requeria autorização especial dos pais para ser ligada. Naquele momento, eventualmente, ele estava e Celma viu então a oportunidade de duplamente se impor sobre a neófita. Já a impressionara com a língua do “Pê” e agora como a televisão imaginária, por que não?

___ Não, não posso deixar ninguém entrar. Meu pai é muito bravo e não deixa que ninguém mexa na televisão.

___ Mas eu não vou mexer – replicou a menina – só quero ver, e isso não estraga...

___ Pode não! Eu já disse. E além do mais, essa televisão tem um problema que você não consegue ainda entender. Quando está ligada sozinha, fala na língua da gente, mas quando tem mais gente por perto ela só fala na língua do “pê”.

Com uma mão tirou o som do rádio e disse adicionalmente para a nova coleguinha:

___ Levanta aí do muro na ponta dos seus pés para que a televisão pelo menos veja a sua cabeça.  Sim! Agora ouça o que ela vai falar:

Pondo a outra mão em frente à boca falou entre dentes:

___ Vopocêpê nãopão popodepe apainpindapa  mepe aspassispistirpir porporquepe vopocêpê nãopão conponhepecepe apa línpínguapa dopo pêpê. Enpentenpendeupeu?

___ Não entendi nada!

___ Então vai embora – disse Celma – porque a televisão disse que você não pode assisti-la porque ainda na fala a língua do pê. Entendeu, agora, sua burrinha?

Edson Pinto

Agosto’2013 

1 de ago. de 2013

246) COISAS DA VIDA...

No finalzinho dos anos 50, minha família havia se mudado para um bairro novo em Belo Horizonte. Era um conjunto de casas quase todas iguaiszinhas construídas pelo governo Juscelino Kubitschek que, cumprindo uma promessa política, facilitou um pouco a dura vida dos ex-pracinhas da Segunda Guerra Mundial. Meu pai era um deles.

Como a maioria dos nossos pais havia se casado no pós-guerra, aquela nova comunidade apresentava uma característica muito peculiar: As proles eram fartas e regulavam a mesma faixa etária. Não sabia se isso se devia ao espírito obviamente guerreiro daqueles homens que lutaram na Itália com a famosa Força Expedicionária Brasileira, FEB; se era a característica geral das famílias da época, todas grandes; talvez a versão tupiniquim do “Baby boom” americano, que levou à explosão populacional findo o grande conflito mundial, ou mesmo se ali concentravam os ex-combatentes brasileiros que tinham muitos filhos, pois os que se comportaram com mais cautela não precisavam de uma casa financiada em condições especiais pelo governo. Hoje, distante da época, me satisfaço com a ideia de que o fato deveu-se um pouco a cada uma das razões que enumerei.

No inicio, os pré-adolescentes formavam a maioria e é dessa turma que me interessa falar. Éramos muitos. As casas foram entregues só com uma cerca de postinhos brancos e arame liso separando uma das outras. Igualzinho se vê naqueles filmes americanos em que os quintais se encontram e vizinhos se controlam uns aos outros. Assim, passávamos de uma casa a outra sem a necessidade de respeito à convenção de que se deve entrar pela porta da frente. Inesperadamente algum amigo chegava à cozinha de casa e adentrava como se fosse a sua. As famílias foram naturalmente criando laços de amizades muito estreitos, e os filhos – numerosos como já disse – ditavam o ritmo das casas, dos eventos, enfim da vida. E não podia ser diferente.

Com o rápido e inexorável passar do tempo transmutamo-nos à adolescência e quando nos assustamos já éramos adultos cada um cuidando da sua vida aos moldes que as opções individuais nos tinham conduzido. Fomos estudando, namorando, casando e muitos mudando de bairro, de cidade ou mesmo, para nossa tristeza, alguns até mesmo de mundo. Hoje as lembranças são apenas referencias do que foi essa importante fase de nossas vidas. Vez por outra me lembro de algumas passagens pitorescas daqueles tempos. As mais singelas, parece-me, agora que são passados tantos anos, as que mais graça têm.  Vão aqui dois episódios daquele tempo de menino:

O Senhor Jair era um ex-combatente da Infantaria e agia como tal: Gostava de combater a pé, conquistar e manter o terreno. Era destemido. Houve uma época em que o sistema de fornecimento d’água do nosso conjunto residencial começou a falhar. Diziam que o reservatório construído na parte alta do bairro e que, por gravidade, alimentava as casas de toda a região, e não exclusivamente as nossas, não conseguia mais atender à crescente demanda de uma cidade que não parava de se agigantar. A empresa pública responsável pela distribuição vivia fazendo manobras para ora atender certas regiões, ora atender outras. O fato concreto era que vivíamos em constante escassez até o dia em que o senhor Jair, pai de um dos colegas, após tomar umas e outras, resolveu fazer algo parecido com o que fizera em Collechio-Fornovo, na Itália, quando a FEB logrou dominar a famosa 148ª Divisão Panzer e aprisionar, de uma só vez, cerca de 20 mil soldados alemães. Possuído pela canjebrina, como estava, encaixou algumas folhas de plantas por partes de seu corpo como se fosse uma camuflagem, ajeitou um capacete militar na cabeça, empunhou uma borduna e subiu a rua aos brados: Sigam-me os que forem brasileiros! Vamos tomar a caixa d’água! Sigam-me companheiros!

Já devem ter concluído que os verdadeiros companheiros de guerra, provavelmente por estarem sóbrios ou cuidando de seus afazeres, julgaram conveniente não se enfileirarem para aquela batalha e daquela inusitada forma, mas, para a garotada vadia, aquilo era uma festa. Colocamo-nos todos atrás do senhor Jair e seguindo o seu comando fomos até a caixa d’água. O funcionário que lá estava não teve alternativa senão imediatamente pegar uma grande chave inglesa e fazer a reversão do fluxo do líquido vital para as nossas casas. A propósito, daquela data em diante ela nunca mais nos faltou. O senhor Jair tinha a fama de ex-combatente louco, e o funcionário encarregado da caixa d’água, prudente que era, concluiu ser melhor não contrariá-lo.

Outra figura que habitava também aquele pedaço era o pai de outro colega igualmente tido como um ex-pracinha estressado. Tinha, o pai, o sugestivo apelido de “jacaré”. Penso que era porque se comportava sempre bem quietinho até que dava um bote de surpresa. Passava a semana, calminho, gentil, bem comportado, mas, normalmente no final da tarde dos sábados, alguém sempre gritava na rua: “Lá vem o jacaré!” E todos, crianças e adultos entravam rapidamente em suas casas. Jacaré tinha, como sempre fazia aos sábados, ido até ao centro da cidade para tomar a sua dose semanal de pinga, cerveja e sabe-se lá, mais o que. Descia do ônibus na esquina e, invariavelmente, achava que se encontrava de novo em um campo de batalha. Assim, sacava um “trinta oitão” e proferindo palavras de repúdio ao totalitarismo subia a rua dando eventuais tiros para o ar. Nunca causou ferimento ou danos a ninguém nem ao patrimônio alheio, mas que botava medo, ah, se botava... No dia seguinte descia gentil, respeitoso com se nada houvesse acontecido.

Coisas da vida...

Edson Pinto

Agosto’ 2013