24 de set. de 2008

49) PANEM ET CIRCENSES (set'08)


__ “De omni re scibili et quibus dana allis”. Isto é, meus amigos, de tudo o que se pode saber e mais alguma coisa, expresso aqui perante tão augusta platéia a certeza de que minha demanda ao cargo de prefeito dessa magna municipalidade encontrará abrigo em vossos corações agigantados. “Tempus fugit”!

Platéia tomada de grande emoção sob o embalo de ruidosos apupos. Aquilo lhe era, na essência, incompreensível, menos para o ex-padre Rosário que ao cabo de tanto estudo do latim tomara gosto pela cachaça da terra e assim considerou a conveniência de abandonar a batina e viver mundanamente. “Alea jacta est” A sorte está lançada, pronunciou com a ênfase do outrora pastor de almas para encerrar em alto estilo o discurso apoteótico de sua campanha política.

Tinha certeza de que seria eleito. Na cidade, quase todos o conheciam pelo seu apego ao tradicional subproduto da destilação do sumo da nossa “Saccharum officinarum”, como ele, em latim, se referia à caninha que consumia à farta. Como não fazê-lo agora prefeito para tornar realidade o seu apregoado projeto da “Bolsa Cachaça” com distribuição gratuita em todos os dias da semana, exceto, frisava com a veemência de quem sempre professava a fé, aos domingos, dia sagrado que haveria de ser respeitado pelo bem da família e pelo necessário temor a Deus?

Nem por sonho Miguelão, oposicionista, que prometia “Escola e Trabalho para Todos” conseguiria vencer o ex-padre Rosário com seu atraente plano de governo. Até as pesquisas de boca de botequins confirmavam: Rosário 99%, Miguelão 0%, Votos nulos 1%. Favas contadas, isto é, pingas tomadas.

A apuração pega Rosário de surpresa. Miguelão ganha com expressiva diferença contrariando todas as expectativas e até mesmo certezas que se formaram ao longo da campanha. O que teria acontecido? A população teria se conscientizado de que “Estudo e Trabalho” eram mais dignificantes do que o programa pão e circo de Rosário? O comportamento furtivo de seus até então fiéis companheiros de boteco parecia indicar que algo de muito estranho ocorrera nos momentos derradeiros da campanha.

Tudo esclarecido: Enquanto Rosário permanecia até o último minuto da votação no boteco de sempre, Miguelão, numa jogada de mestre, abordava eleitores na boca da urna com a promessa de troca do seu “Escola e Trabalho” por plano equivalente ao de Rosário de distribuição gratuita de cachaça, porém não apenas de segunda a sábado, mas, também, aos domingos.

E o povo votou “feliz e consciente”. À Rosário, inconformado com a traição dos agora ex-amigos, restou-lhe a decisão de um último trago e a partida para outra, não sem antes maldizer: carpe omnium: aproveitem tudo!!

Edson Pinto
23/09/08

17 de set. de 2008

48) O ESTALO DE DICÃO (set'08)



Dicão usava e abusava de seu corpo avantajado. Negro retinto, quase 2 metros de altura, 120 quilos quando fazia dieta, sorriso mordaz e zagueiro sanhoso. Impossível de ser tratado como arma secreta do time da vila, pois aquela montanha de ébano era insubmergível e inocultável. Tê-lo em campo já lhes dava uma vantagem defensiva preciosa, mesmo porque, Dicão também tinha certa intimidade com a gorduchinha.

Prestativo, risonho, amigo e afável até entrar em campo. Dali em diante, era mais feroz do que o urso-negro de regiões boreais. Batia sem dó. Seu inamistoso comportamento no campo refletia uma inquietude existencial permanentemente a fustigá-lo. Fritavam-lhes os miolos quando, no aconchego do lar, refletia sobre o seu modo de ser. Questionava-se: __ Devo ser brando ou bravo com os meus adversários? __ Se Deus me fez tão forte por que não usar isso em favor de meus propósitos? __ Devo agradar a todo mundo? Dicão era, de fato, uma mente atormentada a procura de uma definição. E isto nunca acontecia...

Então, algo inesperado: Dicão, num lance em que tenta tirar uma bola adversária, bate a cabeça no travessão superior. Jogam-lhe uma água fria na nuca e, apesar do estalo que lhe sobrevém, dá uma voltinha pra conferir se estava tudo bem e volta para dominar, como sempre o fizera, o espaço mais perigoso do campo: a zaga.

Primeiro ataque adversário, um franzino atacante ao constatar aquela montanha em sua frente tropeça na bola e cai. Dicão, fraternalmente, levanta o garoto e pergunta se estava tudo bem. Como o juiz havia marcado uma falta, embora Dicão sequer tenha tocado no franzino atacante, ele mesmo posiciona a bola para a cobrança do adversário. Dado o atordoamento do atacante, Dicão, para espanto de todos, bate a falta e marca contra.

Meu Deus, o que está acontecendo! Perplexidade geral, mas Dicão calado, humilde, com ar de responsável se posta sem nenhum sentimento de culpa. Na saída, depois do gol, a bola é recuada à zaga. Dicão a domina, vira-se para o próprio gol, dribla com elegância o companheiro de zaga e marca novamente contra.

Correria sem fim... O time inteiro se reúne aos gritos do desesperado sô Chico, o técnico da equipe. ___ Dicão, o que está acontecendo? Você enlouqueceu? Dois gols contra em menos de 2 minutos, abilolou-se? Dicão, sem dizer uma só palavra, abaixa a cabeça e aceita placidamente a substituição, sentando no banco de reservas com um olhar contemplativo como nunca tivera.

De Bíblia na mão, Dicão passou a ser visto aboletado sobre o banco da praça da vila pregando aos que tinham a paciência de ouvi-lo. O estalo na cabeça daquele seu último jogo reposicionara seus miolos e agora, acreditava ele, teria em fim descoberto que sua missão era fazer o bem, seja a quem fosse, até mesmo aos seus adversários.

O time da vila perdeu o seu melhor zagueiro e a praça ganhou mais um fanático com uma história um tanto absurda, mas especial. Dá para acreditar?

Edson Pinto
postado em 17/09/08

12 de set. de 2008

47) ÊTA MUNDO NOVO!









Bem recentemente acompanhei de soslaio meu filho caçula, 19 anos, na Internet, trabalhando um tema para uma tarefa de sua Faculdade a ser entregue no dia seguinte.

Em menos de 30 minutos, tempo em que eu, ao seu lado, lia os editoriais do meu jornal preferido, ele já imprimia um opúsculo de 12 páginas contendo textos, gráficos, fotos e a indispensável referência bibliográfica.

Embora seja eu, também, um amante e como tal apaixonado pela Internet e por todas essas modernidades que nos assombram a cada momento, acabei traído pela responsável desconfiança de pai zeloso e, com certo ar de suspeita, pedi para ver o que a impressora produzia com tamanha velocidade.

Com o olhar mais de professor do que de pai me dei conta de que o trabalho era bom. As pesquisas fundamentaram bem o conteúdo, havia material enciclopédico clássico, um artigo bem recente publicado por uma revista especializada e várias fotos. Essas, então, enriqueciam de maneira fantástica o tema abordado. Fiz-lhe algumas perguntas e constatei, para minha agradável surpresa, que ele não só se conduzira bem nas diversas e rápidas etapas do trabalho, como ainda retivera em sua mente o essencial do conhecimento que se espera de um jovem em formação.

__ Parabéns, disse eu. E completei: __ Como vocês jovens de hoje são felizardos por contarem com recursos tão fantásticos como a Internet, um bom processador de texto, impressão de qualidade e veloz e a rápida possibilidade de divulgação. Ele acabara de encaminhar por e-mail o novinho trabalho para seus colegas de classe que também estavam envolvidos com a matéria.

__ Por que você dá tanta ênfase a esse assunto que para mim é tão corriqueiro, pai? __ Desde que entrei para o segundo grau e quando você me deu aquele primeiro computador, tenho feito quase tudo desta forma. Não é assim que todo mundo faz? Perguntou-me um tanto curioso...

__ Ainda não todas as pessoas que precisam desenvolver pesquisas ou trabalhos intelectuais, penso. __ Mas, certamente as próximas gerações, mais do que a sua, não conhecerão outra forma de trabalho senão essa que você já domina tão bem. __ Todos aqueles que, como eu têm mais de 50 anos, tiveram a experiência de um mundo menos favorável para a ampliação do nosso conhecimento. __ Sabe, esse trabalho que você acaba de fazer em 30 minutos? Nos anos 60 e 70 quando eu estava na Faculdade teria sido feito, também. Só que demandaria, no mínimo, umas duas semanas até concluí-lo:

__ Veja! Falei:

__ Teríamos que reunir a turma num final de semana; depois dividiríamos as tarefas; uns iriam à biblioteca da Faculdade ou a uma biblioteca pública e implorariam para a bibliotecária lhes indicar referências e ajudar na localização dos textos; tirar cópias nem pensar, pois os recursos eram escassos e caros; depois alguém com mais habilidade desenharia os gráficos; fotos só as recortadas de revistas, se disponível; datilografar, então, era a parte mais crucial e ficava normalmente para as garotas mais habilidosas do grupo. Duas semanas depois, talvez, estaria pronto o trabalho, com erros ortográficos, rasuras e estética pobre.

__ Incrível que haja ainda saudosistas desse tempo, quis completar meu raciocínio. __ Eu mesmo acreditava que o árduo processo de garimpar textos em uma biblioteca dava-nos conhecimento mais sólido do que usar o serviço de busca de meu computador. __ Bobagem pura! O efeito é – conclui – exatamente o contrário: quanto mais fácil encontramos respostas para nossas dúvidas mais nos sentimos estimulados a procurar mais e mais informações. No final, ampliamos o conhecimento de forma mais intensa e em tempo bem mais curto.

__ Você quer saber o porquê do progresso vir de forma tão acelerada nos últimos tempos? Perguntei-lhe, antes que ele apressadamente deixasse o computador que agora tocava música e não mais pesquisava matérias escolares:

__ A base de tudo é sem dúvida a estonteante velocidade com a qual o conhecimento vem sendo disponibilizado de forma democrática. Hoje, e mais ainda no futuro, o conhecimento forma a base da revolução silenciosa que tem tornado o mundo mais igual. Nem as guerras, nem o poder econômico que ainda se concentra nas mãos de poucos, muito menos as ditaduras impedirão o avanço do conhecimento. __ Você está, meu filho, devidamente alojado na cápsula dessa espaçonave que já decolou para um mundo melhor.

__ Fico pensando o quanto meu pai, seu avô, sofreu quando, depois de tantos anos de duro trabalho recolheu-se aposentado, pelo peso da idade, aos pequenos afazeres domésticos. Teria vivido mais 20 anos além do que viveu se pudesse, como podemos hoje, ter acesso ao mundo da Internet; pesquisar assuntos que sempre quisemos no passado e que a dura vida não nos permitia; ler as últimas notícias desse mundo cada vez mais agitado porém muito interessante; ver fotos de gente bonita; trocar e-mails com amigos; cumprir tarefas que outrora requeriam nossa presença física e mil outras coisas que esse universo de informatização e telecomunicação nos propicia.

__ Eu já mudei! Falei-lhe com tom de quem já estava por dar por encerrada uma conversa que começou despretensiosa e escambara para uma reflexão de cunho tecnológico tão saudosista quanto futurista, típica de quem, como eu, não tem mais a obrigação de marcar presença diária num worksite qualquer.

__ Só admito espanar meus livros cheios de traças e lubrificar a velha Remington Rand, anos 50, porque eles fazem parte de minha memória nostálgica, formam o meu relicário, meu baú de ossos, minhas referências contraditórias, antípoda de mim mesmo.

__ Tá bom, pai! Entendi “tudinho”. Agora, dá um "logoff" nessa sua Remington e "deleta" esses arquivos obsoletos do seu HD, isto é, da sua memória...

Fui!

Edson Pinto
11/09/08


6 de set. de 2008

46) A EXTINÇÃO DO DODÔ (set'08)


Imagine uma ave de cerca de 1 metro de altura, 16 quilos, não-voadora e que ainda fosse muitíssimo dócil! Um peruzão de bondade. Assim era o Dodô (Raphus cucullatus), espécie nativa das Ilhas Maurício, costa leste da África, onde, até o final do século XVII vivia em perfeita harmonia com os outros componentes do seu ecossistema. Nesse ponto da história torna-se vitima da própria docilidade. Presa fácil dos caçadores humanos recém chegados que lhes comia a carne e dos ratos, que vieram com os homens, e lhes comia os ovos, bobinhos que eram, foram extintos para sempre...

Por tempos, o Dodô tem sido tomado como exemplo de que a bondade sem limites de alguns seres humanos e a falta de disposição para a luta pode lhes custar a preservação. Parece contraditório que preguemos a paz, o amor, a confiança plena no semelhante, o desprendimento e principalmente a entrega incondicional a tudo e a todos quando sabemos que o mundo não se nos apresenta assim tão favorável.

O preparo para a luta e até mesmo a luta propriamente dita, quando necessária, são os reguladores da extrema “dodolização da vida”. A cada momento é preciso tomar uma decisão importante: ser forte e vencer, ou ser fraco e se extinguir. O enfrentamento não é só com os nossos semelhantes, mas, principalmente, com o inimigo interno que nos tolhe o impulso para o bom combate; com o desânimo que nos impede a realização de uma nova e importante tarefa; com a fraqueza no cara a cara altivo com a doença que sói nos incomodar, e assim por diante. A aparência de bondade não deve necessariamente significar fraqueza por lutar. Mahatma Ghandi por trás de seu angelical semblante tinha uma estratégia de luta e soube vencer.

“Si vis pacem parabellum” esta locução latina quer dizer que se buscamos a paz temos que estar preparados para a guerra. A vida é uma guerra, queiramos ou não. Passar por ela sem ter que ultrapassar obstáculos, derrotar inimigos, sofrer privações e trilhar caminhos ásperos é mero exercício de ilusão. Aos gladiadores jogados na arena dos leões só lhes fazia sentido a vitória para continuar vivendo. Assim é também a vida...

A reflexão que faz todo o sentido para o sucesso contra os males que nos açoitam a cada momento é se devemos lutar como um gladiador, "matando um leão por dia" e assim continuarmos na arena dos vencedores ou se devemos nos entregar com a candura de um Dodô e sermos extintos para sempre?


Edson Pinto
postado em 06/09/08

1 de set. de 2008

45) PINGOS NOS I's (set'08)


Tem circulado de forma insistente pela Internet uma carta atribuída a uma pessoa de origem holandesa, sem identificação do nome, que tece loas ao Brasil, ao mesmo tempo em que nos chama a atenção para a baixa estima a nos acometer quando falamos de nós mesmos.

Nada contra sermos objeto de criticas tão doces. Combate nosso complexo da gata borralheira e nos vinga com exemplos mundo afora - diga-se de passagem, muito questionáveis - para com isso mostrar que somos um povo inteligente, esperto, generoso, progressista e com tantos predicados que até nos comove. Será?

Fiquei com a impressão de que o texto é uma daquelas farsas ultranacionalistas para atender a interesse do governo de plantão, ou ainda, a lavra de um gozador ao estilo do saudoso Stanislaw Ponte Preta ou mesmo da turma do Gazeta e Planeta. Se o espírito é pobre, claro, cai nessa esparrela de capturar ingênuos.

Preferi lê-la com o meu “desconfiômetro” ligadinho. Assim, para não deixá-la prosperar impunemente, fiz uma análise de ponto a ponto de tal carta, deixando em cada um deles o meu comentário e com isso colocando os pingos nos seus devidos i’s. O início de cada item, em preto, é da autora da carta. Os comentários, em azul, são meus. Para ver se você concorda com a minha análise clique aqui para acesso ao texto.

Edson Pinto
01/9/08