18 de jun. de 2011

170) AVENTURAS DE AURELIANO - III

Aureliano, o Bu, não era de guardar mágoas. Era prático, otimista, contemporizador, objetivo e insensível. O tombo cinematográfico que levou quando rodopiava na cadeira giratória de couro legítimo do Dr. Sérgio enquanto fanfarronava-se com Dr. Ferraz, o importante cliente de São Paulo, só lhe deixou algumas marcas. Nenhuma significativa o suficiente para arrefecer o seu espírito de convicto obsequiador genérico do escritório. A coluna só doeu por alguns dias, mas superou. Só não conseguiu superar o trauma pelas cadeiras giratórias, especialmente aquela de couro legítimo da sala do Dr. Sérgio. Passou a fazer o sinal da cruz toda vez que passava em frente à sala do presidente.

Agora era época de eleições e Bu aparece com a novidade para todo o escritório: Era candidato a vereador e imaginava mudar de vida pela via mais democrática possível, ou seja, pelo voto popular. O povo haveria de fazer-lhe legislador do município. Mais do que levar materiais para exames em laboratórios, dirigir o carro do chefe, limpar os sanitários do escritório ou correr a bancos e Correios, quem sabe ajudaria a escrever leis que melhorassem a vida do povo. Ele sempre quis fazer todo mundo feliz. Agora, por que não, até ele mesmo poderia se converter em um homem tão feliz quanto aos outros fazia ser.

O tempo não tinha ainda corrido o bastante para se chegar à época do Tiririca ou de outros excêntricos que atualmente usam a política para o escárnio dos incautos. Mas ouvira falar que um tal rinoceronte Cacareco, não fazia muito tempo desde aquela data, sem ter feito qualquer esforço, havia amealhado mais de 100 mil votos nas eleições de 1959 para a Câmara municipal de São Paulo. Por que ele, Aureliano, o Bu, amado por todos, esperto, pau para toda obra e serviçal convicto não poderia fazer também um bom papel naquele próximo pleito. Modesto, como era, não procurou o partido para se candidatar. Um companheiro notívago, daqueles com que se divide o balcão de botecos e de quem nunca se deve esperar lealdade, sinceridade ou compromisso é que lhe fez a proposta: “Você Aureliano se candidata e vamos no “boca a boca” conseguir os seus votos. Você já tem o meu”, completou.

“Bu, você não vai mandar confeccionar nem um santinho para distribuir?”, perguntava a turma do escritório como se tivesse real interesse em ajudar na sua campanha. “Não precisa e, além disso, não tenho dinheiro”. Houve, sim, não se sabe por iniciativa de quem, uma coleta de trocados que resultou na produção dos tais santinhos com a foto de Aureliano e o texto: “A Câmara jamais será a mesma”. Seja lá o que isso quisesse dizer, a glória de Bu já estava assegurada, de tal modo que mais obrigado ainda a servir, ele se sentia. Já era um servidor do escritório. Tendia, agora, a ser também um verdadeiro servidor público. Passou a obsequiar qualquer pessoa, do escritório ou fora dele, desde que aparentasse ter idade para ir às urnas no pleito da sua vida. Ao agradecimento por qualquer favor, metia-lhes um santinho e a recomendação de se lembrar dele na urna.

Fechadas as urnas e apurados os votos, lá estava estampada a realidade. Bu não era um Cacareco da vida que teria se empanturrado de votos e garantido o assento no legislativo municipal, mas também não passou em branco no escrutínio. Teve dois votos. Com absoluta certeza um deles fora dado por ele mesmo. O outro poderia ser de qualquer um dos milhares de “amigos” que juraram ter votado nele. Mas, poderia ser também o voto de sua mulher ou do amigo de boteco que o havia lançado como candidato.

Como todos continuavam garantindo que havia lhe dado um voto, Bu decidiu, para o seu próprio bem, que continuaria mais feliz com a dúvida sobre o autor do único voto que recebera do que a certeza da ingratidão de tanta gente a quem vivia servindo de forma tão fiel. Afinal, pensou ele, de que valeria ser vereador com dinheiro no bolso se não fosse feliz...

Edson Pinto

Junho’ 2011

11 de jun. de 2011

169) AVENTURAS DE AURELIANO - II


Na semana passada introduzi a figura do Aureliano. Por méritos inquestionáveis detentor de varias alcunhas, todas consentidas e apreciadas pela personagem central deste conto seriado. Tal como Clark Kent era o alterego do Superman, Batman, o alterego de Bruce Wayne e Hanna Montana o alterego de Miley Cirus, Burrinho, Baixinho, Sentado, Possuído e Água, entre outros, eram perfeitos alteregos de Aureliano.
Do ponto de vista da Psicologia esses alteregos seriam expressões de um eu inconsciente, mas para Aureliano, não. Ele se realizava em plenitude desafiando a lógica de se manter oculto desse seu outro eu, ou melhor, outros eus. Nada de ser meramente o lado não revelado da mesma moeda. Era, verdadeiramente, íntimo com cada um dos papéis que assumia. Com o tempo, suas múltiplas faces amplamente cobertas por codinomes variados cederiam espaço para algo mais simples, o apelido dos apelidos: Bu. Forma apocopada de Burrinho que já com o tempo lhe soava mais carinhosa e prática.
Já de partida, ligeirinho como sempre, para mais uma de suas missões mundanas: levar em sua desproporcional grande pasta de couro, para o laboratório, o material para o exame de fezes e urina de alguns funcionários graduados e folgados do escritório, Os mortais faziam-nos por conta própria, mas aqueles mais ou menos qualificados na hierarquia restringiam-se, por razões óbvias, ao trabalho de coletar suas próprias escórias. Levá-las ao laboratório já era missão para Bu. De terno, gravata e pasta de executivo já anunciava a saída triunfal do escritório quando ao passar defronte a mesa da Secretária não lhe escapou perceber que ela dizia ao telefone que o Presidente da empresa, Sr. Sérgio, estava em viagem e que, portanto, não seria possível ao Dr. Ferraz, importante cliente de São Paulo, contatá-lo para tratarem do urgente assunto que então se colocava. Como há de convir, a época era pré-celular, pré-Internet, pré-tudo. Tempo em que éramos felizes e não sabíamos...
__ Um minuto – intercedeu Bu de forma voluntariosa e altaneira – Diga ao Dr. Ferraz que você vai passar a ligação para o Dr. Aureliano. Assim vou atendê-lo. Transfira a ligação para a sala do Dr. Sérgio que já estou indo para lá.
Como não poderia deixar de ser, todo o escritório, que, diga-se de passagem não era grande, se volta para a cena, apreciando mais uma das ousadias de Bu. Fazer a faxina, dirigir o carro do chefe, levar as fezes de outros ao laboratório, correr ao banco aos Correios ou assumir quaisquer outras tarefas banais, tudo bem, mas, falar com o maior cliente da empresa e em nome do Dr. Sérgio, o presidente, aí já era uma ousadia peculiar. Como se seguissem a uma ordem de comando, correm todos para a porta da sala do presidente onde Bu acabara de entrar com sua pasta multitarefa.
Bu coloca a pasta sobre a mesa. Apressadamente, contorna-a com a mesma leveza e graça com que Fred Astaire contornava Ginger Rogers ao dançar Smoke Gets in Your Eyes. E “pluft”. já estava sentado na poltrona giratória do Dr. Sérgio. A Secretária passá-lhe a ligação. Ciente e orgulhoso da platéia que já se acotovelava na porta da sala para apreciar a sua performance, capricha no cumprimento elevando-o em alguns tons ao mesmo tempo em que modulava sua voz ligeira para uma postura de mais seriedade.
__ Oi sô Ferraz! Aqui é o Aurelianu... O dotô Sérgio num tá, mas em qui posso ajudá?
A media em que do outro lado da linha o Dr. Ferraz fazia suas considerações, só se ouvia Bu em repetidos assentimentos:
__ Sim... sim... sim...
Convencido de que a platéia já se mostrava perplexa com o seu domínio oratório, isto o leva a exacerbar o desejo da suprema ousadia com o propósito de propiciar maior encantamento a todos: Enquanto concordava com o interlocutor em infindos “sims”, esporadicamente sucedidos por “pois nãos”, vai colocando os pés sobre a mesa enquanto refestelava-se na poltrona giratória de couro legitimo do Dr. Sérgio. Prazer dos prazeres, glória de todas as glórias, lança impiedoso olhar mortiço sobre a platéia já em fulminante apoplexia.
Mas, eis que senão quando, o mundo de Bu vira-se literalmente de cabeça para baixo. A cadeira giratória de couro legítimo do Dr. Sérgio se vinga da astúcia de Bu e resolve romper sua mola mestra. Desprende-se com tamanha violência que quebra o pé da mesa, seu vidro de suporte e vem tudo sobre o pobre Bu agora estatelado no chão com a pasta e seus frascos de exames rompidos sobre si.
Dr. Ferraz nunca entendeu o encerramento inusitado daquela conversa. Dr. Sérgio nunca chegou a aceitar como sua mesa e sua cadeira giratória de couro legítimo já não eram mais as mesmas. A platéia se divertiu e alguns poucos graduados do escritório se lamentaram de terem o trabalho de nova coleta e preferiram levá-las pessoalmente ao laboratório. Bu, traumatizado, tanta na coluna como no espírito - dizem - passou a fugir de cadeiras giratórias como o diabo ainda foge da cruz.
Edson Pinto
Junho’ 2011

4 de jun. de 2011

168) AVENTURAS DE AURELIANO, O BURRINHO - I


Aureliano mal passava de um metro e cinquenta. Respondia com bom humor por apelidos que retratavam muito de sua personalidade e gostos pessoais. No escritório da Construtora onde trabalhava como Escriturário podia ser chamado de Baixinho, por razões óbvias, por Sentado, pois visto a certa distância no meio do escritório, mesmo de pé, dava a impressão de estar tranquilamente acomodado em uma cadeira, por Possuído ou por Água devido ao seu apego ao mais famoso néctar da cana-de-açúcar popularmente chamado de cachaça, ou mesmo por Burrinho, pois era um pau pra toda obra, verdadeiro burro de carga.

Para efeito desta história que será contada em alguns capítulos vamos tratá-lo doravante apenas de Burrinho. Aliás, embora nunca reclamando dos outros apelidos, era esse que parecia lhe dar mais alegria. A propósito, esta história é dos tempos em que a palavra “bullying” e o conceito de assédio moral, hoje tão em voga, não passava de estranhas teorias psicológicas ainda não assentadas na cultura vigente, mesmo porque - se fosse - não se aplicaria ao caso de Aureliano, pois ele não só compactuava com a zombaria como sentia verdadeiro prazer em estimulá-la. Por isso, Aureliano era uma figura diferente, especial.

Baixinho de chamar a atenção, fazia cara de sério, mas era alegre como se nunca tivesse problema na vida, amigo de todos, voluntarioso e verdadeiro "puxa-saco" dos patrões. Fazia pequenos trabalhos burocráticos no arquivo, no envio das correspondências, no copiador de faturas, operava como ninguém uma calculadora daquelas de fita para conferência dos saldos do Contas a Receber, do Contas a Pagar, dos impostos, tudo. Ao mesmo tempo, voluntariamente, se colocava como motoristas dos engenheiros quando tal se fizesse necessário. Ia aos Correios para expedir uma correspondência ou passar um telegrama de última hora. Corria aos bancos para quaisquer tarefas tantas vezes quantas fossem necessárias, sem nunca reclamar, alegre, espirituoso e ligeiro.

Faltou a faxineira? Burrinho se despia de sua pose de escriturário e cuidava da retirada do lixo, da limpeza dos banheiros e fazia o café que, alegremente, servia a cada um dos chefes do escritório. A máquina de escrever quebrou? Burrinho dava um jeito e tudo voltava a funcionar. Quem devia chegar cedo para abrir o escritório, ou ser o último a sair para apagar as luzes conferir se os equipamentos foram desligados das tomadas, as janelas bem fechadas e as torneiras bem ajustadas? Claro, era o Burrinho...

Ao mesmo tempo em que se prestava para tudo, incondicionalmente, era amado por todos. Nem seu hábito de traçar, com freqüência mais do que a normal, umas canjebrinas semanais não lhe tirava o santo halo de figura multiuso, verdadeiro super-homem do escritório. Além disso, alimentava umas ilusões típicas de classe média, embora estivesse disso bem distante. Era um trabalhador de recursos escassos como a casinha que construíra ao longo de anos e anos. Lá vivia feliz com Ubaldina e seus dois filhos. Queria apenas ser reconhecido pela sua eficiência e no fundo, embora nunca tenha dito, queria ser amado por todos. E isto, de fato, era.

Dada esta apresentação de Aureliano, o Burrinho, a história verdadeira desse cidadão comum, terá prosseguimento em capítulos futuros. Hei de lhes contar de como Burrinho se impôs com o visitante colocando-se na ponta dos pés para demonstrar-se mais alto. Contarei também como, na ausência do Engenheiro Chefe, ele resolveu sentar-se a sua mesa e atender a ligação de um importante cliente de São Paulo passando a impressão de que tinha um cargo elevado na empresa e o que disso resultou...

Contarei, ainda, como Aureliano, o Burrinho, vendeu a sua casa só para ter dinheiro na Poupança e com isto ser respeitado pelo gerente do banco que até então o desdenhava. Há, entre outras, o que também contar sobre sua interferência nas festas da empresa sempre preocupado em economizar ao máximo para o bem financeiro de seus patrões. Aureliano, o Burrinho, fazia tudo ao seu peculiar modo de ser, e isso merece ser contado...

Aguardem os próximos capítulos!

Edson Pinto
Junho’2011