30 de mar. de 2010

114) AS APARÊNCIAS NEM SEMPRE NOS ENGANAM...


Rafael estava entusiasmado com a nova oportunidade de trabalho recém assumida. Já tinha experimentado desafios burocráticos diversos, enfurnado em escritórios por horas, dias, semanas e meses a fio. Planilhas, e-mails aos borbotões, reuniões nas quais falsos gênios se sobressaiam com seus egos inflados, ideias mirabolantes, mas que ao final não levavam a nada, senão ao enfado desgastante.

Fizera a faculdade de relações públicas, emendou com cursos de técnicas de vendas e marketing. Queria vê-lo feliz? Era só convidá-lo para uma palestra desses gurus motivacionais que oferecem soluções fantásticas para quem quer ficar rico usando o poder de persuasão e a psicologia aplicada às vendas. Ele era um vendedor nato, disso estava convencido. Só lhe faltava uma oportunidade desafiadora. Além do mais, sabia todas as técnicas e aqueles milhares de segredo que garantem um fechamento de negócio inesquecível.

Agora, seu primeiro dia no estande de vendas do mais espetacular prédio de apartamentos da região. Substituía o corretor Afonso que lhe deixara como presente a carteira de clientes e todos os negócios em andamento. O produto era o melhor que se tinha por aquelas bandas. Já imagina quantas vendas faria até o final da primeira semana de trabalho. Só precisa aplicar os seus conhecimentos, todos teóricos, é claro, pois estava começando em vendas justo naquele dia. Se funcionavam para os vendedores-vencedores, por que não funcionariam também para ele? Era só ir em frente...

A provecta senhora que flertava os 80 entra no estande com olhar piedoso. Bolsa no antebraço esquerdo, óculos repousando sobre no limite frontal do nariz e uma bengala que garantia um pouco mais de firmeza aos seus lentos passos. Em frente a Rafael, e antes mesmo que ele a cumprimentasse, pergunta em voz bem comedida:

__ Oi moço, onde está o Afonso? Vim fechar um negócio com ele.

Foi num átimo que Rafael municiou-se de sua teoria de vendas mais brilhante. Seus mestres e seus livros advertiam para jamais subestimar uma pessoa pela sua aparência. Veio-lhe, portanto, à mente a história do homem de trajes e aspecto de simples agricultor e que fora desdenhado pelos “vendedores-estrelas”, mas, ao final, dera de presente a compra de 6 apartamentos de uma só vez àquele único vendedor que lhe atendera. Era, souberem mais tarde, um poderoso e rico fazendeiro. Agora, essa senhorinha, não seria também uma magnata prestes a fechar um negócio dos bons?

__ Senhoraaaa?

__ Zulmira, respondeu a Rafael em voz baixa e pausada.

__ O Afonso, Dona Zulmira, não está mais conosco, sente-se, por favor!

__ Que bom meu filho. Estava realmente muito cansada.

__ Vou buscar-lhe uma água. Quer também um café? __ Sim meu filho, muito grata!

E aí veio a água, o café, o biscoito e todos os salamaleques. Visita ao apartamento modelo 1. Depois aos de modelos 2, 3 e 4. __ Gostou do salão de festas? __ E do bosque com suas aléias de árvores nativas, Dona Zulmira?

__ Nunca imaginei um lugar tão bonito e agradável para poder morar e também para meus filhos e netos. Para mim o ideal será o menor, aquele do 2º andar, pois não gosto muito de altura. A vista que tem para o bosque é maravilhosa. Meus dois filhos ficarão com os apartamentos de 8º e do 9º andares. E o meu neto que vai se casar no final do ano. Ah! Esse ficará muito bem com o apartamento do 5º andar, o dos fundos, sabe? Penso que, casadinho de novo, se sentiria melhor olhando as estrelas em noites limpas. É mais romântico! Ah, ah, ah... Que maravilha ter todos ao meu redor e neste lugar tão agradável.

Mais de três horas do mais puro exercício das melhores técnicas de vendas já se passaram e Rafael parecia flutuar sobre nuvens. E mais café, mais biscoitos, mais água e mais gentilezas com Dona Zulmira.

Senhora simples, divagou em silêncio Rafael, mas, ao que parece, cheia da grana disposta a fechar com chave de ouro sua passagem por essa cruel jornada terrena, verdadeiramente, para ela, pensou, mas, por óbvio, não falou, prestes a se encerrar.

Para que guardar tanto dinheiro se para o lado de lá nada pode ser levado, a não ser a consciência tranqüila por se ter feito o melhor a si mesmo e aos seus entes queridos? Rafael, agora, estava convencido de que além de excelente vendedor começava a sentir-se também um tanto filósofo. Os apartamentos pareciam indicar para Dona Zulmira a sua entrada gloriosa ao paraíso. Venda na certa, pensou o jovem e entusiasta “novo-melhor-vendedor-do-mundo”.

__ Então Dona Zulmira, posso mandar preparar os papéis?

__ Como assim meu filho? Gostei muito, mas isso não é coisa para o meu bico...

__ Mas, a senhora não veio fechar negócio com o Afonso? É a mesma coisa comigo?

__ Desculpe meu filho, mas o negócio a que eu vim fechar com o Afonso era a doação que ele ficou de fazer para o lar das velhinhas desamparadas. Já que ele não está mais, você não quer fazer a doação?

Edson Pinto
Março 2010

21 de mar. de 2010

113) MINOTAUROS DA VIDA


O rei Minos de Creta castigado por não ter atendido a um pedido de Poseidon, deus olímpico e senhor dos mares, vê sua esposa Pasifae conceber o minotauro, metade homem, metade touro e garras de leão.

Sob o palácio de Cnossos, Dédalo constrói por ordem de Minos, um labirinto onde o minotauro é aprisionado. De lá ninguém conseguia escapar. Nem da voracidade do monstro, muito menos do intrincado e indecifrável labirinto criado pelo notável arquiteto mitológico.

E como desgraça pouca é bobagem, o rei Minos tem ainda o seu filho, Androceu, assassinado por atenienses invejosos por suas vitórias no festival panatinaico. Como castigo, sete varões e sete donzelas atenienses eram jogados anualmente no labirinto do minotauro, claro, de onde jamais poderiam escapar.

Mas chega o dia em que Teseu, filho do rei de Atenas, apresenta-se como voluntário a enfrentar o minotauro. Pela sua coragem, logo de cara ganha o amor de Ariadne, filha do rei Minos, e esta, em segredo, entrega-lhe uma espada mágica e um novelo de linha. Teseu adentra o labirinto desenrolando o novelo, encontra o minotauro e o elimina com a espada mágica e de lá consegue escapar seguindo a linha que havia desenrolado.

Bela história, não só de valentia, de paixão e amor incondicional, mas acima de tudo de engenhosidade. Mais do que a espada mágica que ajudou Teseu eliminar o monstro, foi o prosaico novelo de linha que lhe criou condições de escapar do labirinto.

Esta lição lendária e milenar nem sempre é aplicada nos nossos desafios atuais. Entramos, não raro, em labirintos, desarmados e desprovidos de um simples novelinho de linha que pudesse nos dar condições de voltar sãos e salvos. Não voltamos como voltou Teseu, ficamos por lá espetados nos chifres dos minotauros da vida. Pior, na maioria das vezes nem ousamos entrar e ficamos do lado de fora esperando que o sacrifício de outros nos redima do pecado da omissão.

A vida é, por analogia, um suceder de desafios labirínticos. Mal saímos de um, se é que saímos, e logo encontramos outro. Podemos vencer um minotauro e em seguida nos perder nos labirintos da volta. É como não conseguir escapar das vielas da Alfama ou dos becos da Mouraria, pois esses, tal qual a vida e a obra prima de Dédalo, são igualmente labirínticas.

Acontece que a vida só bonifica a quem enfrenta seus minotauros e logra escapar de seus labirintos. De fora, passivos, omissos e concordes até podemos nos manter livres dos arranhões ardidos de suas garras. O problema é que, sem adentrar os labirintos não há como superar o desafio e nos colocarmos prontos para os próximos e assim seguir de cabeça erguida a senda estreita e árdua que nos leva ao lado de lá.

Portanto, se lhe falta coragem para enfrentar uma causa labiríntica lembre-se de que além de uma espada mágica que uma Ariadne inspiradora pode lhe emprestar, haverá sempre a possibilidade de se ter um novelinho de linha à mão. Com este, você certamente não perderá o caminho de volta.


Edson Pinto
Março’2010