Nem adianta insistir! Não consigo explicar, nem faz sentido tentar entender a real motivação de tudo ter acontecido da forma que, com o maior prazer, mais adiante, relatarei aos meus diletos amigos. Neste momento, confesso, com a pureza de minha alma, o sincero desejo de tão somente narrar, da forma mais fiel possível, o desfecho desse fato marcante:
Pois bem! Saibam, para começo de nosso entendimento, que das páginas envelhecidas de um livro do acervo da biblioteca do Congresso Nacional, em Brasília, descolam-se do capítulo dedicado à peça teatral “Auto da Lusitânia”, do famoso escritor português Gil Vicente, dois personagens enigmáticas de nomes “Todo-o-Mundo” e “Ninguém”.
Ao se verem, de súbito, em um ambiente que não mantinha um mínimo de relação com aquele prevalecente na virada dos séculos XV para o XVI, quando foram criados, mesmo assim decidem adentrar àquela nova vida e, desprendidos, caminham pelos repletos corredores da casa em direção ao plenário. Lá chegam ao exato momento em que o seu presidente, José Ribamar Ferreira de Araújo Costa, mais conhecido como José Sarney, ex-presidente do país, abre a sessão livre para o debate entre nobres tribunos.
Conforme padrões da excelsa casa legislativa, tudo é rigorosamente registrado, tal qual num depoimento policial, imagino, com o propósito de que temas importantes tenham suas implementações asseguradas, ou, simplesmente, para serem perpetuados nos anais da Instituição. Todo-o-Mundo, já devidamente adaptado ao novo ambiente do século XXI toma a palavra e dá início ao debate:
__ Pensem o que quiserem, mas o que mais auguro é ver o Congresso Nacional, este Senado em particular, trabalhando com desvelo e de forma austera pelo progresso do Brasil. Em imediato aparte, Ninguém, declara que concorda com a posição de Sua Excelência, proclamando querer trabalhar de modo rigoroso e honesto.
__ Escrevam aí, dita o presidente Sarney para os estenógrafos da mesa: Todo-o-Mundo quer o Congresso trabalhando com desvelo e de forma austera pelo progresso do Brasil e Ninguém quer trabalhar de modo rigoroso e honesto.
__ De novo Excelências, retoma Todo-o-Mundo, quero um aparato estatal enxuto e eficiente para fazer com que as coisas funcionem bem e ao menor custo. Novo e entusiasta aparte de Ninguém para dizer que, em linha com os pensamentos do eminente colega Senador, o que mais quer é, espontaneamente, abrir mão de seus privilégios.
__ Estenógrafos, por favor, ordena o presidente Sarney, registrem que Todo-o-Mundo quer um Estado mais enxuto e eficiente e Ninguém quer, espontaneamente, abrir mão dos seus privilégios.
__ O que mais gostaria de ver neste país, exclama efusivo Todo-o-Mundo, é a punição dos corruptos e o fim do assalto ao erário. Ninguém, com a afinidade de mais de cinco séculos com seu companheiro de palco, aparteia-o com entusiasmo para publicamente dizer - até mesmo como prova de sua pureza moral - que abre mão de seu sigilo bancário.
Já ligeiramente incomodado, Sarney ordena aos estenógrafos anotarem que Todo-o-Mundo quer a punição dos corruptos e o fim do assalto ao erário e Ninguém quer abrir mão de seu sigilo bancário.
__ Senhores, retoma Todo-o-Mundo já em arrebatado êxtase oratório, esta casa precisa se moralizar aumentando a produtividade de sua ação legislativa, reduzindo os indecentes privilégios de funcionários e parlamentares, como a farra das cotas de passagens aéreas, tudo contribuindo para que o Congresso brasileiro seja o mais caro do mundo. Ninguém, sobrepondo-lhe os argumentos, mesmo sem o protocolar pedido de aparte, diz que é chegada a hora de se tomar a iniciativa para tal.
Com os fios do bigode já eriçados de incômodo, o presidente José Ribamar Ferreira de Araújo Costa solta seu derradeiro “marimbondo de fogo”: __ Finalizem aí, senhores estenógrafos! “Todo-o-Mundo quer moralizar e ao mesmo tempo tornar o Senado mais eficiente e Ninguém quer tomar a iniciativa para tal.”
Deveras agastado, o presidente Sarney dá conta ao tribuno do esgotamento de seu tempo no debate.
__ Desculpe-me Senhor presidente, arrefece Todo-o-Mundo já retomado de seu estilo renascentista de tom um tanto galego-português para dizer como últimas palavras que tal ocorrera por estar perdido no tempo. E Ninguém, solidário ao velho colega, pede ao presidente que, assim como ele, nem se importe com isso.
A presidência, em solene prosódia, agradece ao tribuno pelo desenrolar do debate e, ato contínuo, dirige-se aos estenógrafos com a magna ordem para que finalizem as anotações com o seguinte registro:
“Todo-o-Mundo perdeu o seu tempo e Ninguém nem se importa com isso”...
Edson Pinto
Abril’09