19 de out. de 2008

52) O SUPER-ZEZÉ


Passei bons anos da minha vida tão ocupado com o trabalho e com a luta diuturna, que – confesso – sobrou-me pouco tempo para apreciar com mais profundidade coisas deste mundo que não estivessem ligadas a números, projetos, desafios profissionais, decisões de negócios e competitividade.

Não carrego sentimento de culpa por isso, porque sei que a vida é assim mesmo. Mais para uns, menos para outros, lutar é, inexoravelmente, o nome do jogo. Penso, até, que a sabedoria inescrutável do Criador impõe-nos regras de precedência para as preocupações de nossa terrenidade: primeiros as básicas, materiais e fisiológicas e só depois as mais filosóficas e anímicas. Neste último grupo situa-se a recém-desperta em mim vontade de mergulhar no coração das pessoas do meu dia-a-dia e com isso desbravar - como um Marco Pólo de almas - mundos novos e deles desenterrar tesouros de sabedoria e simplicidade.

A objetividade que a vida nos impõe, simplifica enormemente a avaliação que fazemos das pessoas. Somos, normalmente, levados a analisá-las apenas pelas suas características mais visíveis, sem nos questionarmos se por detrás daquele ícone não encontraríamos preciosidades surpreendentes. Cada pessoa é um universo tão complexo e amplo de particularidades que por mais que o sondemos, jamais conseguiremos compreendê-lo na sua plenitude, especialmente a da real infinitude de seu amor.

Zezé é o apelido de um amigo de infância, um contraparente especial, recentemente redescoberto, não no que diz respeito à sua existência física, mas naquilo que mais nos faz chamar a atenção, ou seja, a pureza de sua alma. Assim, ele se nos revela, agora, como verdadeiro detentor desse oculto tesouro a que me refiro. Não pelo que conquistou materialmente na vida, pois foi muito pouco, mas pelo que tem guardado em sua alma de homem simples:

Tranqüilo como um lago em seu recesso plácido; 60 e poucos anos. Disse pra Nicinha - pelo que consta, a mulher mais influente e única de sua vida - que casamento só quando perdesse o juízo. Como nunca o perdera, restou-se aposentado, com a cabeça sem um único fio de cabelo branco, lendo jornais, todos; assistindo os noticiários da TV, também todos e torcendo de paixão para o Cruzeiro que é o seu time da infância, mas também para qualquer outro time. Neste caso, só e quando um sobrinho com outra preferência clubista se apresenta a ele. São Paulino roxo porque dois de meus filhos o são, mas também Santista porque o meu terceiro filho nutre desbragada paixão pelo time da Vila Belmiro. Faz do altruísmo inconsciente o seu modo de ser. Só fica feliz se o outro estiver feliz. Coloca-se, verdadeiramente, à disposição de qualquer pessoa para ajudar naquilo que lhe é possível e até mesmo impossível. A palavra “Não” parece excluída de seu vocabulário já de há muito.

De tão puro e especial, as poucas pessoas de sua casa: sua mãe octogenária e uma irmã solteira super-zelosa, esperam de Zezé um comportamento irretocável. Por isso, cobrem-lhe de cuidados mais apropriados para um garotinho travesso do que para um sessentão aposentado. __ Zezé, não demore, veja lá aonde você vai, viu? E lá vai o Zezé, sem reclamar, para alguma tarefa muito bem especificada que tanto pode ser uma pequena compra, uma visita ao Banco ou uma obrigação corriqueira de menor importância. Porém, o que nunca é revelado nessas saídas é o seu propósito, não manifesto, de tomar um sagrado chopinho – nunca passa de dois – no primeiro balcão que encontrar, principalmente, se tiver alguém disposto a jogar, como ele, um pouco de conversa fora.

Uma única vez por mês, Zezé se dá a uma extravagância que nem o seu comportamento altruísta de priorizar a felicidade dos outros, no caso a das duas mulheres que lhe controlam a vida, a mãe e a irmã solteira, é respeitado. Recebe o dinheiro da aposentadoria, separa alguns trocados e se manda para o mercado municipal da cidade. Para quem não sabe, Belo Horizonte tem um mercado que depois de uma reforma muito feliz tornou-se um agradável point cult freqüentado por descolados e turistas de todas as tendências. Claro que Zezé não vai comprar queijo, nem cebolas, muito menos o melhor bacalhau que só se encontra por lá. Zezé é figurinha manjada no boteco do “Manuel Doido”. É lá que ele chega, sempre no primeiro sábado depois de ter recebido a aposentadoria, para exercer em total plenitude a liberdade que nem Nicinha conseguiu lhe tirar.

Das 10 da manhã até as 6 da tarde, chopes se combinam maravilhosamente com torresmos, mandioca frita, linguicinha de pura carne de porco e muita conversa mole. Nos primeiros chopes, Zezé é ainda contido tal qual o é no seu dia-a-dia. Depois, à medida que os chopes passam e a conversa rola solta, lá está o super-Zezé: histórias de conquistador de mil mulheres, proezas do jogador de mil vitórias e arroubos fantasiosos de rico fazendeiro que não sabe onde gastar toda a sua fortuna. Ri e encanta como ninguém. Para as garotas que se aproximam, promete jóias valiosas, vestidos de arrasar, viagens inesquecíveis e casamento de princesa.

E lá vai Zezé de volta para o conforto e segurança de seu ninho real: __ Zezé, você tomou umas e outras? __ Que nada, responde ele. Entra no seu quarto, pega o jornal do dia, ainda não lido, sintoniza a TV no primeiro Noticiário que encontra e dorme tranqüilo. Amanhã tudo será igual. E o super-Zezé? Só no mês que vem quando receber de novo a aposentadoria.
Edson Pinto
postado em 19/10/08

5 de out. de 2008

51) PROJETO MEU PRIMEIRO EMPREGO



A minha caixa de correios – e aposto que a sua também – esteve nesses últimos dias entupida de panfletos coloridos, tamanhos diversos, textos mal escritos, criatividade gráfica duvidosa, que, além de números em dimensões garrafais estampavam, ora posudas, ora bizarras, fotos de astutos candidatos a uma vaga na Assembléia Legislativa ou mesmo para a cadeira de alcaide do nosso município.

Quanto cinismo travestido de falsa sinceridade cívica: “Construirei o trem-bala”. Seria uma versão mais robusta e criativa das tormentosas balas perdidas que com grande freqüência encontram os inocentes que passam de trem? “Lutarei por viagens grátis nos ônibus da cidade”. Quem paga a conta? “Sou corintiano, por isso votem em mim”. E daí, o que esse fato melhora a vida da cidade? Uns se apropriam de imagens, trejeitos e idéias de outros, sempre imaginando que no mar de desavisados caiam alguns votos na sua rede de esperteza.

Por anos tem sido uma diversão analisar as listas dos candidatos aos pleitos de sempre. Alguns já não se dão nem mais ao trabalho de atualizar as promessas, os refrões e as musiquetas surradas. Tudo, tudo, com o beneplácito de partidos políticos que os acolhem e os usam. Uns apelam para parentes assumindo um paroxismo de pieguice fajuta. Outros vêem no bizarro a forma de angariar incautos.

Entra pleito, sai pleito e lá estão os postulantes do momento com os seus projetos pessoais a lhes garantir um lugar na história, mesmo que seja pelo reconhecimento público do ridículo de seus sonhos. Despreparados para coisas tão simples como escrever o próprio nome ou ler com proveito intelectual um texto por mais simples que seja, ainda, se julgam bons o suficiente para subirem a uma tribuna e de lá defenderem em nome de todos nós seus projetos devotados ao bem da sociedade.

Há o grupo de velhas raposas que nem precisaria de mais cargos para o enriquecimento ilícito já conseguido no passado, mas com toda a certeza, vêem no cargo público um refúgio seguro à justiça ainda a lhes atormentar o sossego.

Agora uma nova categoria de postulantes: Os que buscam no cargo público o seu primeiro emprego: Socialites que nunca dirigiram nada, malandros que nunca pegaram no batente, playboys que vivem nas costas de famosos, garotos que mal terminaram o segundo grau escolar e outros, querem, porque querem ser vereadores, prefeitos ou qualquer que seja o cargo em disputa.

Como toda onda comportamental tem sua gênese, somos forçados a pensar que antecedentes bem-sucedidos e conhecidos de todos – Lula e Obama, por exemplo - dão respaldo aos sonhos dos membros dessa nova categoria.

Em sã consciência: Você lhes daria esse primeiro emprego?

Edson Pinto
05/10/08

2 de out. de 2008

50) A VOZ (out'08)


Levantou-se de súbito quando aquela voz novamente chegara ao seu ouvido. Não fazia o menor sentido tratar-se de um pesadelo seguido de outro e de forma tão insistente. Que razão teria alguém - já não mais deste mundo, como se lhe parecia - querer passar-lhe recados sobrenaturais. Não era a voz das já falecidas mãe Irene e vovó Matilde. Muito menos de Madre Tereza de Calcutá que só conhecera pela TV.

A voz era real, isto sim. Dava para sentir-lhe os graves e os agudos ressoando pelas paredes do quarto, dentro do seu automóvel ou mesmo debaixo do chuveiro. Seria um zumbido desses que atormentam milhões de estressados cidadãos habitantes das cidades grandes cheias de ruídos do trânsito, dos bate-estacas de construções mil, ou ainda, dos feirantes que em alegre desordem enchiam as manhãs das quartas-feiras de seu bairro? Não, não era! Soava algo que ele reconhecia como voz, mas na verdade não podia compreender completamente.

Começou consultando o Centro Espírita onde freqüentou, sem êxito, seções de contatos com a turma do Além. Foi a Umbanda para um descarrego. Subiu a Penha de joelhos para penitenciar-se e finalmente submeteu-se à hipnose, tudo na vã esperança de desvendar a razão daquela voz misteriosa. A única descoberta feita depois de tão exaustivo périplo era de que a voz surgia sempre que ele pensava no casamento com Laura.

Só agora se dera conta de que tudo havia começado naquela noite em que Laura, sua noiva há mais de 20 anos, não tendo conseguido novamente tirar-lhe um compromisso para o sempre adiado casamento, metera-lhe, sem dó nem piedade, um tapalhão em seu ouvido, enquanto ele - para uma vez mais escapar daquela responsabilidade - fingia falar ao celular. Coincidentemente, desde então, seu danificado e agora mal remendado telefone celular nunca mais gravara mensagens de seus amigos. Claro, Laura o quebrara em vários pedaços naquela fatídica noite e o conserto só reparara partes de suas funções.

Quando o incomodo e o desespero já se mostravam insuportáveis, ei-lo no Pronto Socorro do bairro implorando para que lhe fizessem alguma intervenção no ouvido, naquele momento completamente inundado pela voz misteriosa de sempre.

O chefe da junta médica sai da sala de cirurgia e dirige-se para Laura que pesarosa padecia em um canto da sala de espera: __ Veja minha senhora, não sabemos como, mas por alguma razão misteriosa este chip de gravação de mensagens de um telefone celular qualquer se alojou no duto auditivo de seu noivo. Por alguma razão, igualmente misteriosa, repito, um pensamento tenebroso que lhe é recorrente, produz uma corrente elétrica em seu ouvido forte o suficiente para acionar as mensagens gravadas no chip.

Laura agradece emocionada ao mesmo tempo em que se dá plena e total conta de seu não-casamento...

Edson Pinto
postado em 02/10/08