29 de abr. de 2011

163) A COPA É NOSSA


Nas últimas semanas parece que virou moda colocar em dúvida a capacidade do Brasil de cumprir com o seu compromisso para a montagem da infraestrutura da Copa do Mundo que acontecerá por aqui em 2014. Mesmo sendo considerado um dos povos mais otimistas da Terra, não sei por que cargas d’água 191 milhões de nós mesmos, exceto a velhinha de Taubaté e este cronista crédulo, debandaram para o pessimismo ao admitirem o nosso provável vexame por não conseguirmos entregar o prometido até que a bola comece a rolar no maior de todos os eventos esportivos e que a humanidade inteira adora? Os olhos do mundo se voltarão para o Brasil quando a Copa estiver por começar, quando já estiver em andamento e finalmente no pós-evento, pois acredita que deste berço esplêndido, o florão da América surgirá como a nova superpotência a fulgurar no firmamento das nações. Não podemos, portanto, decepcionar. Chegou o nosso momento de entrar no grande baile...
Vejam abaixo os quatro pontos principais que formam a tal da infraestrutura de uma típica Copa do Mundo. Gosto de ser cartesianamente didático, por isso, primeiro apresento e comento as críticas dos pessimistas, depois, com o coração transbordando de otimismo verde-amarelo dou, em nome da velhinha de Taubaté e em meu próprio, as soluções que vislumbramos factíveis para que tudo termine muitíssimo bem. No final - porém não menos importante - falo do grande presente que o evento nos propiciará. É o que já se convencionou de chamar “O Legado da Copa”.
ESTÁDIOS:
A crítica injusta: Autoridades até recentemente tidas como muita sérias já andam dizendo que a maioria dos estádios não ficará pronta em tempo, ou mesmo, nunca. Tem um estádio que pressupostamente fará a abertura da Copa do Mundo aqui em São Paulo, o Itaquerão, do Corinthians, que até mesmo a maquete não está definitivamente finalizada. A todo o momento aparece uma nova. Ora o estádio é menor, ora é maior. É o que se chama estádio sanfona, dizem maliciosamente. O terreno tem pendências jurídicas. O clube não tem dinheiro nem aval para custear a obra. Os governos do Estado e Federal juram que não colocarão dinheiro público e coisas deste gênero. Pura maldade! Não só para o estádio de São Paulo, mas também para os estádios de Natal, Recife, Manaus e outros que não tiveram ainda um único tijolo levantado, têm solução, sim senhor! Vejam:
A solução inovadora: O mundo inteiro ficará boquiaberto ao tomar conhecimento da nossa genialidade tupiniquim. Sendo exigência da FIFA que 65 mil pessoas assistam no estádio ao jogo de abertura, o Brasil já sabe como fazê-lo. Trinta e cinco mil torcedores ficarão no estádio do Pacaembu e trinta mil na Arena Barueri. O primeiro tempo do jogo ocorrerá no Pacaembu. Os atletas tomarão, ainda no grande circulo do gramado, um helicóptero e farão o segundo tempo do jogo em Barueri a apenas 20 quilômetros de distância. A FIFA estabelece 65 mil pessoas, mas não diz que todas devem assistir aos dois tempos do mesmo jogo. Por que ninguém havia pensado nisto antes? A África do Sul, outro país pobre como o nosso, teria economizado uma fortuna se tivesse pensado nesta solução.
AEROPORTOS:
A crítica mordaz: Se nossos aeroportos já não dão conta da demanda atual, imaginem como estarão no período da Copa? Mais uma vez, puro exagero. É a velha intriga dos mesmos que nunca acreditavam quando Lula dizia do alto de sua sapiência e sinceridade “Nunca antes na história deste País”. Continuam sem entender a seriedade de Lula e daqueles que pleitearam o evento jurando que o Brasil faria a mais organizada de todas as Copas. Fizeram o mesmo com as Olimpíadas do Rio de Janeiro para 2016. Nesta, até choraram de emoção, mas isso não está agora em pauta, por isso falo só da Copa de 2014. Os aeroportos não serão problema, como verão mais adiante. Ninguém ficará sem pousar ou decolar. Isto eu garanto!
A solução de um povo criativo: As Marginais dos rios Tietê e Pinheiros serão preparadas para pousos e decolagens no período da Copa. Carros ficarão nas pistas locais enquanto as aeronaves correrão nas expressas. Passageiros se servirão de táxis que, de bandeira livre, e ônibus urbanos acompanharão lado a lado as aeronaves até que elas parem. As atividades “Duty Free Shop” serão assumidas pelos ambulantes que hoje já trabalham nos congestionamentos dessas duas importantes vias urbanas. Em outras cidades, avenidas importantes servirão para o mesmo propósito, mas poderão contar adicionalmente com estacionamento de grandes supermercados e trechos de rodovias próximos das cidades.
SISTEMA VIÁRIO:
A crítica iníqua: Nosso sistema viário urbano é deficiente. Outra bobagem sem tamanho. Todos nós sabemos que o povo não deixa de ir ao trabalho por que os ônibus são poucos, ou porque o metrô atende apenas a uma ínfima parte da população dos grandes centros ou ainda porque o trânsito é um inferno. Na verdade, nós brasileiros gostamos mesmo é de maus tratos. Ficamos horas e horas apertados em desconfortáveis ônibus e trens urbanos por mero prazer e nada mais. Faz parte do nosso modo de ser. Mas se enganam os que pensam que não teremos solução para a Copa do Mundo. Sei que teremos e lhes digo, agora, qual será:
O ovo de Colombo: Trinta dias de feriado nacional com liberação do pedágio nas estradas, gasolina de graça e caipirinha subsidiada nas praias. Poucos ficarão nas cidades sedes da Copa. Os turistas ficarão maravilhados com o sossego de nosso país. Isto por si só já conta vários pontos para o nosso eterno pleito de um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU.
REDE HOTELEIRA:
A crítica dos desmancha-prazeres: A rede hoteleira do País é precária. Outra asneira sem tamanho. Quem vem ao Brasil não vem para dormir. Vem, evidentemente, para outras coisas. Mas, ocorre que não queremos impor nossa própria maneira de ser aos nossos visitantes. Devemos tratá-los como hospedes ilustres, por isso, há também uma solução fantástica que somente o Brasil e nenhum outro país seria capaz de oferecer. Vocês ficarão admirados com o que o Brasil poderá preparar para europeus, asiáticos, norte americanos, nossos irmãos sul-americanos, africanos e até para marcianos se resolverem aparecer. Haverá lugar para todos.
Por esta ninguém imaginava: Por decreto, sujeito a fiscalização pela Polícia Federal, seria implantada a abstinência sexual durante o período da Copa nas cidades sedes. Os motéis, para não ficarem entregues às moscas, passariam a complementar a rede hoteleira com folgada margem, pois temos mais motéis do que hotéis. Bingo!
LEGADO DA COPA:
Sem estádios novos, com os aeroportos entupidos da mesma forma que antes, com os congestionamentos infernais e ônibus lotados de sempre e ainda com os muquifos de hotéis superlotados, nos restaria o legado de termos de pagar por muitos e muitos anos o custo de todas as obras que não foram feitas, pois o dinheiro efetivamente saiu das burras do erário. Para onde foi, nem o povo sabe e pelo que anda colocando no Congresso não tem o menor interesse em saber, pois, como disse um de seus mais ilustres representantes na Câmara dos Deputados: “Pior do que está não fica” Continue votando no Tiririca...
Edson Pinto
Abril’ 2011

21 de abr. de 2011

162) NOSSOS EX-SANS CULLOTE














Allons enfants de la Patrie. Le jour de gloire est arrivé! (Avante, filhos da Pátria. O dia de glória chegou. (La marseillaise)

A revista Veja desta semana nos trouxe, além do exemplar principal e de circulação nacional que todos conhecem, também - como sempre ocorre aqui na minha região - o exemplar da Veja São Paulo, a famosa Vejinha, que é outra publicação com abordagem de temas basicamente locais. Trouxe-nos, ainda, um terceiro exemplar de uma Edição Especial dessa mesma Vejinha portando o exuberante e único tema: “As Quatro Estações do Luxo”. São 186 páginas de papel da melhor qualidade e até nos traz uma folha outonal do Plátano em alto relevo estampada na capa. De fato, muito luxo...

Havia eu acabado de ler o recente artigo de Fernando Henrique Cardoso publicado no site do PSDB em que o nosso ex-presidente e sociólogo renomado alerta o seu partido de que era chegada à hora de se desistir da disputa com o PT pelos movimentos sociais, ou seja, pelo povão e sim, centralizar sua comunicação política na classe média. Esta, ao que nos sugere o artigo, é que terá massa e poder político daqui para frente. Tinha eu conseguido, ainda, dados que apontam o País como já tendo 94 milhões de pessoas, ou seja, 51% de sua população pertencendo a uma classe média que não para de crescer. Lembrei-me, então, de Joãozinho Trinta, famoso carnavalesco, filosofando ao dizer que quem gosta de miséria é intelectual, pobre gosta mesmo é de luxo. Logo, concluí, essa revista, até por ser a mais popular do País, era, com toda certeza, dirigida à nova classe média. Que felicidade!

Fato real, felizmente, é que uma vez classe média, tudo muda na cabeça das pessoas. E muda para melhor: Com o acesso mais fácil aos meios de comunicação, à leitura de jornais e revistas e aos estudos, passam a desenvolver o até então adormecido senso crítico; a fortalecer anseios por segurança, estabilidade social e econômica. Desta forma, os ex-classe D, agora na gloriosa classe média, legitimamente, passam a exigir melhores estradas, aeroportos que funcionam, mais linhas de metrô, ruas com menos buracos, saúde pública de melhor qualidade, vários bens sofisticados de consumo e certo luxo.

Com a alma lavada e enxaguada de tanto orgulho de pertencer à classe média brasileira, folheio a edição especial da Veja e encontro logo nas primeiras páginas a oferta imperdível de um Krug Clos d’Ambonnay, champagne, safra 1995, pela bagatela de R$15.000,00. Em seguida, ainda nas primeiras páginas, uma caixinha de caviar, dessas que se esgotam numa única torradinha, por módicos R$1.500,00. Mas encontrei também uma moto BMW K 1600 GTL, vejam só, vocês nem vão acreditar, por somente R$107.000,00 redondinhos. Confesso ter ficado completamente surpreendido com tantas ofertas imperdíveis. Tinha uma Mercedes-Benz ML 350 CDI, vejam bem, BASIC (de básico) por módicos R$265.500,00 (prestem bem atenção no detalhe dos R$500,00 ao final do preço. Deve ser charme).

E os relógios? Sei que vocês vão se sentir tentados a sair correndo para comprar um Ballon bleu extra flat, Cartier, que está na página 133 por meros R$76.750,00 (não vá cair na tentação ex-classe D de pedir os R$50,00 do final do preço como desconto. Não pega bem). Uma chapeleira de couro (que utilidade este acessório tem para um novo classe média!) pode ser encontrada por ínfimos R$7.000,00. Um vestido, vejam bem, “Emilio Pucci” (já ouviu falar nesta celebridade?) por R$26.990,00. Está na página 152. Na página 156 tem um presentinho fantástico para a sua amada, uma sandália, por incrível que possa parecer, de couro, por apenas R$6.350,00. É pegar ou largar...

Para não ficar cansativo com tantas ofertas, cito adicionalmente, para sua filha ou sobrinha ou neta uma jaquetinha de Píton (seja lá o que isto significa) por irrisórios R$11.400,00. Um bracelete de ouro - o Dia das Mães está chegando - por insignificantes R$93.000,00. Últimas ofertas, eu juro, agora é para terminar (alternativa ao presente para a esposa e mãe de seus filhos): Rolex rosa por R$77.200,00 e - esse para você que é amante de carros - um livro com fotos de automóveis Porsche. Não tenho como evitar que vocês saiam correndo para comprar no primeiro Shopping que encontrarem, pois custa só, eu disse, só, R$6.220,00. Todas as fotos estão de graça na Internet, mas o livro, o livro, ah, o livro, não...

Prometi parar, é verdade, mas não agüento. São tantas as ofertas imperdíveis que me obrigam a voltar à lista, pois estão na sugestiva e generosa seção “As Boas Compras” das páginas 179 e 180: Um costume (terno masculino) por insignificantes R$29.000,00 e uma calça feminina de couro com um lindo zíper por, por, por, juro, só R$18.780,00.

Quanta felicidade junta na mesma revista! Depois de o Lula pagar a dívida externa, perdoar a dívida de países irmãos para com o Brasil. Depois de provarmos de forma cabal que vamos entregar todos os estádios da Copa do Mundo de 2014 em tempo e que junto virão a ampliação e melhoria dos aeroportos, do sistema viário e da nova rede hoteleira, não faltará mais nada a nós privilegiados membros da nova poderosa classe média brasileira.

Aux armes, citoyens/ Formez vos bataillons/ Marchons, marchons!/ Ou’um sang impur/ Abreuve nos sillons! (Às armas, cidadãos/ Formais vossos batalhões/ Marchemos, marchemos!/Que um sangue impuro/ Irriga os nossos campos arados) - La marseillaise

Até o Planalto!

Edson Pinto

Abril’ 2011

15 de abr. de 2011

161) HÁ BENS QUE VÊM PARA O MAL




Todos já ouvimos falar do contrário: Há males que vêm para o bem! Quando assim nos expressamos, é por termos constatado que certos acontecimentos em nossas vidas, embora ruins, podem significar um sofrimento no instante presente, mas têm o potencial de nos propiciar ganhos compensadores mais à frente. Diz-se, por exemplo: Fulano teve que perder o emprego devido a sua arrogância e dificuldade de relacionamento com os seus pares para aprender que respeitar os semelhantes e saber interagir proativamente era importante para a sua carreira profissional. Hoje, ele é o presidente da uma grande empresa e é considerado uma pessoa dinâmica e respeitosa. Por isso, cabe aqui perfeitamente a expressão “há males que vem para o bem” O mal de ter sofrido a experiência da demissão o tornou uma pessoa melhor. Derivam, ou se aproximam dessa máxima, outras igualmente bem populares, como “Deus escreve certo por linhas tortas” e “Aos astros por caminhos ásperos”.

Na crônica de hoje, me atrevo a provocar os meus poucos, porém fiéis leitores a refletirem sobre o reverso dessa assertiva. Há bens que vem para o mal! É o que proponho para pensarem a respeito. Por que não? Vejam três simples exemplos com os quais nos deparamos ou temos potencial de deparar no dia a dia:

Telefone celular: Há vinte e poucos anos ninguém tinha um e, portanto, ninguém sentia a sua falta. Fizeram os primeiros trambolhões, teclas grandes bem visíveis, operação muito simples. Bastava digitar os números do telefone a ser chamado, aguardar o atendimento e começar a falar. Simples, assim, desde que Alexander Graham Bell na Exposição Industrial de Filadélfia, em 1876, contou com a ajuda do nosso Imperador D. Pedro II que, também como jurado, propôs aos demais membros da comissão julgadora que experimentasse aquele invento que não tinha ainda despertado o interesse da comunidade científica ali presente. Mas, veja o que a modernidade nos trouxe: reduziram o tamanho dos aparelhos; incluíram agenda, caixa postal, mensagens de texto; puseram a Internet no aparelhinho cada vez menor e para desgraça suprema inventaram o “touch screen”, essa tecnologia que nos permite simplesmente tocar na tela para a geringonça nos fazer tudo sem que precisemos apertar botões. Lindo, estado da arte. É o que há - pelo menos por ora - de mais moderno, avançado e tecnologicamente inovador. Veio pra o bem? Não, pelo menos para mim.

__ Alô Edson, vejo aqui que você ligou para mim três vezes estou aqui no interior. Fiquei preocupado! Algum problema?

__ Desculpe-me, amigo, não quis ligar para você. É o maldito deste meu celular que só de um toque casual e involuntário dispara ligações.

Hoje pego no meu celular como se estivesse pegando uma taça de cristal Bohemia. Morro de medo de disparar uma ligação indesejável. As conseqüências podem vir na forma de “bens que vem para o mal” Pena, penso, que já não se vendem mais aqueles primeiros modelos da Motorola que parrecia o tampo de um vaso sanitário, o Star TAC. Já era pequeno o suficiente para justificar-se na categoria de telefone móvel, mas só funcionava se apertássemos conscientemente as suas teclas. Fazia ligações seguras e isto era o que interessava.

Creme Dental: Pegava-se o tubo em uma mão e a escova de dentes na outra. Uma pressãzinho leve no tubo e a pasta passava na quantidade desejada para as cerdas da escova. Modernizaram o sistema. Agora tem um módulo interno na saída do tubo que libera na forma de desenhos geométricos coloridos substancias que pressupostamente claream, combatem as cáries, liberam flúor, evitam a gengivite e incrementam o nosso sex appeal. Além disso, trocaram as antigas carcaças de alumínio por carcaças de plástico retrátil. Juro, meus amigos, que tenho a maior dificuldade em tirar a pasta do tubo usando somente uma das mãos, porque ela não sai na exata medida e momento em que eu o aperto. Hoje, coloco a escova equilibrando-se na extremidade do lavatório e como as duas mãos aperto e esfrego da cauda para o topo o tubo torcendo para que lá dentro ainda tenha alguma coisa. Neste caso, também, o bem veio para o mal, disso não tenho dúvidas.

Equipamento de Som: Quantos botões! Que maravilha! Aperto todos e não consigo fazer o CD que coloquei na gaveta 23 ser lido pelo player. Cutuco todos os botões novamente para ver se a maravilhosa máquina de produzir sons cristalinos me trás a alegria de ouvir um remake em CD de Elis Regina. Saudades do meu toca-discos que bastava colocar o vinil no eixo central e depositar lentamente a agulha. Era simples, mas funcionava. De que adianta tantos botões e tanta tecnologia se na hora H não nos dão aquilo que queremos.

Eu poderia citar uma infinidade de outros exemplos de situações em que o bem vem para o mal, tal qual sugere o título desta minha crônica, mas, por escassez de tempo, prefiro parar a esta altura do discurso saudosista.

Além disso, esta minha versão Ultimate do Windows 7 trás tantas novidades em múltiplos novos botões que tenho a impressão de me encontrar dentro do estoque de aviamentos de uma grande confecção de camisas. Já estou sentido saudades do XP. Logo dele que todos os amantes da informática sabem não haver razões justificáveis para se ter saudades.

Edson Pinto

Abril’2011












8 de abr. de 2011

160) O AMOR


E alguém disse ao mestre: Fala-nos do amor! E ele respondeu:

“Quando o amor vos fizer sinal, segui-o;
Ainda que os seus caminhos sejam duros e difíceis.
E quando as suas asas vos envolverem, entregai-vos;
Ainda que a espada escondida na sua plumagem vos possa ferir. “(Gibran Khalil Gibran)

A solenidade do casamento corria encantadora. Gente bonita, música ao vivo, corações em festa. Norminha e seu marido há mais de 30 anos já tinham ido a muitas solenidades iguais àquela. Ora casava um parente, ora a filha de um amigo, ora o amigo de um filho e assim por diante. Tudo já se mostrava rigorosa e agradavelmente rotineiro, pois assim é a vida, uma sucessão de momentos muito previsíveis. Mas, naquela noite, Norminha se dá conta de que o homem elegante, cabelo ligeiramente grisalhos que estava sentado bem à sua frente era ele. Sim, só podia ser ele. Se girasse o rosto ligeiramente para a direita já seria o suficiente tanto para vê-la como para que ela confirmasse se aquele homem realmente era o Pedro. Era ele, sim, Pedro o amor que nunca esquecera. E para ele, era ela, sim, Norminha, a paixão de seu sonho inacabado. Confirmadas as redescobertas transportaram-se, ao mesmo tempo, trinta e tantos anos no passando e mergulharam em doces e penosas reminiscências:

Norminha atravessava lenta e displicentemente o portal de uma Igreja parecida com aquela em que agora se encontravam. Buscava o assento que por hábito gostava de tomar. Em sua cabecinha confusa, misturavam-se a inocência de seus 13 anos com a carga prematura da árdua vida familiar dos tempos bicudos de então e a educação rígida, puritana recebida em casa. Nem percebeu, naquela noite dos anos 70, que o seu caminhar de passos angelicais era acompanhado pelos olhos atentos de Pedro.

Sentada, mas ainda cabisbaixa, tivera o reflexo de esguelhar olhar moroso à esquerda e em seguida à direita como a conferir o ambiente em que acabara de se por. Seus olhos negros, titubeantes cruzaram com os de Pedro sentado logo ali ao seu lado. Nem seria necessário estetoscópio para se perceber que seus corações entraram em arritmia severa. Mas, como no milagre do amor, aos poucos foram se arrefecendo até entrarem em perfeita harmonia. Batiam rigorosamente na mesma freqüência, no mesmo compasso, em encantadora eufonia. Estava estabelecida a base sobre as quais se constrói o mais nobre de todos os sentimentos, o amor.

Quatro anos de paixão moderada, mas verdadeira. As condicionantes religiosas do relacionamento moldavam a pureza da relação e as cartas, dezenas delas, registraram para todo o sempre a transição do amor quase infantil, puro e ingênuo para o mais maduro, conseqüente e verdadeiro em que pontuavam planos de uma vida a dois em futuro breve. O tempo, no entanto, trouxe seus caprichos, seus desafios até que o romance balançou. Ciúmes, um pouco de ausência e pequenas escorregadelas juvenis levaram Norminha a romper uma, duas vezes com Pedro. Havia sempre a esperança da retomada, mas o destino quis que tudo fosse diferente.

Hermano apareceu na vida de Norminha com promessas de amor eterno. Daí ao casamento, aos filhos e a uma vida artificial foi um passo para se construir a história de uma vida incompleta. Pedro saíra de sua vida, mas não de seu pensamento. Em Pedro sucedera o mesmo: Também casado, família feita, mas igualmente preso às lembranças do amor antigo, viveria sua vida de forma igualmente incompleta. Foram, por anos e anos, dois seres errantes, como disse Neruda: “Dois objetos patéticos/ Cursos paralelos/ Frente a frente/ Sempre/ Pensar talvez/ Paralelos que se encontram no infinito/ No entanto sós, por enquanto/ Eternamente dois apenas”.

Agora estavam ali. Era tudo o que sonharam por anos, mas fazer o quê com essa redescoberta? Teriam o direito de reacenderem aquela chama que na verdade nunca havia se apagado? Esqueceriam tudo para não ferir com a espada mortal da insidia os seus circunstantes? Mas, como esquecer, se tudo o que fizeram até então tinha sido exatamente alimentar suas mais recônditas esperanças do reencontro? Haveria as tais eternas paralelas que finalmente se cruzariam?

Entrecortam-se, do modo mais discreto possível, olhares reveladores enquanto deixavam a Igreja do reencontro, testemunha do rumo de duas vidas a serem revistas.

E o mestre, concluiu:

“Não penseis que podeis guiar o curso do amor/ Porque o amor, se vos escolher/ Marcará ele o vosso curso/ O amor não tem outro desejo senão consumar-se...”

Edson Pinto
Abril’ 2011

1 de abr. de 2011

159) O MISANTROPO FOLIÃO

Pura incoerência... Como poderia alguém com absoluta aversão ao convívio social, solitário por prazer e índice zero de relacionamentos, daí um autêntico misantropo, pudesse ser ao mesmo tempo um folião? Inconcebível! Eu sei que é assim que você deve estar pensando. E faz todo o sentido. Uma pedra não pode ser dura e ao mesmo tempo mole. O sol não pode ser quente e frio. É só quente. Uma linda mulher não pode autenticamente ser ao mesmo tempo também feia. Seriam todos, verdadeiros paradoxos.

Mas, Setembrino, por incrível que pareça, era as duas coisas. Vivia o ano inteiro fugindo de gente, escondidinho que nem um tatu em seu buraco. Se uma visita chegava pela sala ele corria para o quarto. Ouvia vozes no corredor e pulava para o sótão. Tudo para não se relacionar. Mas, quando o Rei Momo abria oficialmente o carnaval da cidade, Setembrino se transformava. À meia noite da sexta-feira gorda ele já era outro. Mascarado, era o folião que agitava a cidade Bebia, cantava, dançava e animava a todos. Antes de o sol raiar já estava em casa para o recolhimento e a esquisitice de sempre.

Rigorosamente, à meia-noite, também do sábado, do domingo, e da segunda feira que antecedia ao apoteótico fechamento do carnaval na terça-feira, Setembrino se transfigurava e acontecia. Antes de o sol novamente se fazer presente lá estava ele no papel de misantropo empedernido. No inicio, todos imaginavam que ele estava mudado, que tivesse recuperado definitivamente a alegria de viver. Não, infelizmente. Terminado mais um carnaval e até que o próximo chegasse Setembrino tornava-se um ilustre desaparecido.

Os parentes mais próximos davam explicações vagas: Foi uma desilusão amorosa que o fizera assim, ou, Setembrino está muito ocupado com seus estudos e não tem tempo para mais nada. Vizinhos especulavam que talvez o rapaz tivesse alguma doença crônica que o impedisse de uma vida normal. Mas, e o carnaval? Por que, justo no período carnavalesco, ele está sempre bem? Não! Doença não seria. Só se for doença da cabeça, aí sim, seria bem provável.

Nem o padre, nem o Diretor da Escola, muito menos o prefeito conseguiram integrar aquela figura à sociedade. Quem, em raros momentos, conseguia alguma aproximação com Setembrino confirmava que o rapaz era normal. Falava com equilíbrio e coerência. Era simpático, bem educado e inteligente. Além disso, já era notório com as garotas da cidade que Setembrino era um tremendo “boa pinta”.

Suas sete irmãs mais velhas do que ele pareciam guardar um segredo de família. Vieram todos de Joanópolis, interior de São Paulo, quase divisa com Minas Gerais e ninguém sabia muito mais da família, além disso. Setembrino preocupava muito mais à própria família do que à comunidade. Se não queria ser sociável, paciência! Assim, passaram todos a considerar. Mas, a família dava sinais de inquietação e isso era preocupante...

Porém, quando tudo parecia perdido, ao final de mais uma noite de carnaval e enquanto Setembrino, mascarado como sempre e exausto de tanta folia, topa com Clarinha na encruzilhada ainda escura. Paixão, ninguém explica e foi o que aconteceu. Não tendo mais como controlar seus mais profundos instintos, Setembrino ergue as mãos aos céus e pronuncia:

"Sois danado lobishomem,/ Primo d’Isac nafú;/Sois por quem disse Jesus/Preza-me ter feito homem.”

E o fato consumou-se:

Revelado, então, que Setembrino era um lobisomem que não dera totalmente certo. Transformava-se, sim, em lobo mas ao contrário do que se esperava de um autêntico lobisomem não procurava sangue, nem frequentava cemitérios como convinha à estirpe. Gostava mesmo era de carnaval, de bebida e de mulher. Setembrino fracassara como lobisomem...

Naquela noite, São Cipriano o libertou para sempre. Agora não há mulher na cidade que não o reconheça em suas intimidades.


Edson Pinto

1º de abril de 2011