Era
uma manhã de verão em Ubá, Zona da Mata, MG, e o sol já brincava de escorregar pelos
telhados. Ary Barroso apareceu na varanda de sua casa, de chinelo e paletó, com
um copo de café na mão e uma melodia na cabeça.
—
Hoje vai sair samba novo, disse para ninguém, espantando uma borboleta que
dançava no ar como nota fora da pauta.
Sentou-se
ao piano. Tocou um acorde largo, depois outro. Assoviou como quem risca o céu
com som. Lá pelas tantas, ouviu um violino. Não um violino qualquer. Um som
doce e arisco, como chuva fina em tarde quente. Um trinado que parecia conjurar
flores, passarinhos e brisas.
Virou-se,
desconfiado.
Bem
ali, na esquina da sua rua, um homem de cabelos brancos, casaco longo e sapatos
que afundavam um pouco na poeira mineira, tocava um violino com os olhos
fechados e o espírito em festa.
—
Meu senhor... o que é isso? — perguntou Ary, encantado.
—
La Primavera, respondeu o outro, abrindo um sorriso vermelho como o céu do
entardecer.
—
Primavera? Isso aí tá é mais pra manhã de junho em Minas, com cheiro de laranja
e roupa no varal.
—
Então é primavera com café.
Riram
os dois. O violino repousou. O piano chamou.
—
Meu nome é Ary, Ary Barroso. E o senhor?
—
Antônio Vivaldi. Vim ver onde nascem as cores do som.
Ary
o convidou para subir. Sentaram-se os dois: o brasileiro ao piano, o italiano
com seu violino. Um começou a dedilhar o começo de Aquarela do Brasil, e o
outro respondeu com o motivo de La Primavera.
E
assim ficaram por horas: um trocando acordes tropicais, outro respondendo com
contrapontos barrocos. A vizinhança parou. Os passarinhos silenciaram. Até o
vento ouvia.
—
Esse seu “Brasil” parece uma orquestra, disse Vivaldi, encantado.
—
E essa sua primavera parece uma escola de samba que leu poesia.
No
fim da tarde, escreveram juntos uma peça que nunca foi ouvida:
“Concerto
para Dois Sóis e Um Pandeiro”.
A
partitura, dizem, se perdeu numa tempestade de pétalas ou foi levada por um
sanhaço azul.
Antes
de partir, Vivaldi tirou o chapéu, fez uma reverência e disse:
—
O mundo gira em dó maior. Mas aqui ele dança.
Ary
respondeu, sorrindo:
—
E aqui, maestro, até o silêncio tem ritmo.
Edson Pinto
Stembro,
2025
Nota do autor
Antônio Vivaldi (1678–1741), compositor e violinista barroco italiano, é
autor das célebres Quatro Estações, obras que transformaram os ciclos da
natureza em música.
Ary Barroso (1903–1964), mineiro de Ubá, foi compositor, pianista e
locutor, criador de “Aquarela do Brasil” e outros sambas imortais. Sua música
exalta o Brasil com ritmo, cor e alma.