12 de set. de 2025

344) VIVALDI EM UBÁ


Era uma manhã de verão em Ubá, Zona da Mata, MG,  e o sol já brincava de escorregar pelos telhados. Ary Barroso apareceu na varanda de sua casa, de chinelo e paletó, com um copo de café na mão e uma melodia na cabeça.

— Hoje vai sair samba novo, disse para ninguém, espantando uma borboleta que dançava no ar como nota fora da pauta.

Sentou-se ao piano. Tocou um acorde largo, depois outro. Assoviou como quem risca o céu com som. Lá pelas tantas, ouviu um violino. Não um violino qualquer. Um som doce e arisco, como chuva fina em tarde quente. Um trinado que parecia conjurar flores, passarinhos e brisas.

Virou-se, desconfiado.

Bem ali, na esquina da sua rua, um homem de cabelos brancos, casaco longo e sapatos que afundavam um pouco na poeira mineira, tocava um violino com os olhos fechados e o espírito em festa.

— Meu senhor... o que é isso? — perguntou Ary, encantado.

— La Primavera, respondeu o outro, abrindo um sorriso vermelho como o céu do entardecer.

— Primavera? Isso aí tá é mais pra manhã de junho em Minas, com cheiro de laranja e roupa no varal.

— Então é primavera com café.

Riram os dois. O violino repousou. O piano chamou.

— Meu nome é Ary, Ary Barroso. E o senhor?

— Antônio Vivaldi. Vim ver onde nascem as cores do som.

Ary o convidou para subir. Sentaram-se os dois: o brasileiro ao piano, o italiano com seu violino. Um começou a dedilhar o começo de Aquarela do Brasil, e o outro respondeu com o motivo de La Primavera.

E assim ficaram por horas: um trocando acordes tropicais, outro respondendo com contrapontos barrocos. A vizinhança parou. Os passarinhos silenciaram. Até o vento ouvia.

— Esse seu “Brasil” parece uma orquestra, disse Vivaldi, encantado.

— E essa sua primavera parece uma escola de samba que leu poesia.

No fim da tarde, escreveram juntos uma peça que nunca foi ouvida:

“Concerto para Dois Sóis e Um Pandeiro”.

A partitura, dizem, se perdeu numa tempestade de pétalas ou foi levada por um sanhaço azul.

Antes de partir, Vivaldi tirou o chapéu, fez uma reverência e disse:

— O mundo gira em dó maior. Mas aqui ele dança.

Ary respondeu, sorrindo:

— E aqui, maestro, até o silêncio tem ritmo.

 

Edson Pinto

Stembro, 2025

 

Nota do autor

Antônio Vivaldi (1678–1741), compositor e violinista barroco italiano, é autor das célebres Quatro Estações, obras que transformaram os ciclos da natureza em música.

Ary Barroso (1903–1964), mineiro de Ubá, foi compositor, pianista e locutor, criador de “Aquarela do Brasil” e outros sambas imortais. Sua música exalta o Brasil com ritmo, cor e alma.

4 de set. de 2025

343) CAMÕES EM SÃO JOÃO DEL REI

 


Luís Vaz de Camões apareceu em São João del Rei como quem retorna a um lugar onde nunca esteve. Desceu de uma nuvem que misturava mares antigos e poeira de estrada colonial. Trazia um soneto no bolso, mas não era dele:

 “Fulgente estrela, que o meu bem governa,

Astro brilhante, que me guia o passo…

Por que me obriga a suportar no laço

De amor tão forte pena tão eterna”

Leu e releu várias vezes, na varanda do casarão branco. Estava encantado com a melodia daquele poeta das Gerais, um tal Alvarenga Peixoto, que ousava rimar estrelas como se falasse com Vênus em pessoa.

— Há sangue lírico neste sertão, e eu preciso conhecê-lo.

Foi fácil encontrá-lo: bastou seguir os ecos de uma paixão por Bárbara Heliodora e os boatos sobre um inconfidente que escrevia melhor que confessava.

Alvarenga o recebeu com hospitalidade de alma antiga. Conversaram longamente sobre o amor e suas algemas douradas, sobre a liberdade das palavras e a prisão das ideias. Camões sentiu-se, pela primeira vez em séculos, compreendido.

— Camarada, disse-lhe Alvarenga, num brinde de cachaça suave, se em Lisboa havia reis e mares, aqui há montanhas que rimam com os homens. Proponho nos reencontrar em Ouro Preto, onde vivem os poetas em forma de igreja, pedra e abismo.

Camões apertou-lhe a mão com o vigor de quem sela um destino.

— Em Ouro Preto, pois. Lá escreveremos o que nem a morte ousa apagar.

Dizem que tempos depois Camões chegou a Ouro Preto como quem cumpre promessa feita sob a lua. Subiu e desceu ladeiras em forma de alexandrino. Viu casas inclinadas como interjeições, igrejas como metáforas sacras e sinos que falavam em redondilhas maiores.

No largo, reencontrou Alvarenga Peixoto, agora com os olhos mais escuros, como se tivesse conversado com fantasmas.

— Chegastes, irmão de penas! , disse o mineiro. A cidade vos esperava. Só não fostes o primeiro.

— Como assim?, perguntou Camões, arqueando a sobrancelha boa.

— Antes de vós, chegou aqui um tal Shakespeare. Inglesinho agitado, barba cheia, olhos esbugalhados de espanto. Disse que queria ver o palco das tragédias brasileiras. Anotava tudo: escravos, promessas, igrejas. Escreveu versos em guardanapos e depois refugiou-se num casarão de janelas azuis lá pelos caminhos de Mariana, onde vive sozinho..

Camões pigarreou.

— O mundo anda pequeno para os poetas, parece.

— Ou os poetas é que andam grandes demais para o mundo, respondeu Alvarenga, com um meio-sorriso barroco.

Naquela noite, beberam vinho de jabuticaba e escreveram à luz de lamparina. Não falaram mais do inglês. Mas Camões, no fundo, desconfiava que os ecos de suas metáforas estavam sendo traduzidos com sotaque de Stratford.

Antes de partir, escreveu na parede de uma senzala abandonada:

“Nesta terra, o verbo resiste. E o poeta, mesmo exilado, persiste.”

Ele partiu, deixando montanhas, ladeiras e um amigo que falava tanto português quanto inglês.

 

Edson Pinto

Setembro, 2025

 

 

Nota do autor:

Luís Vaz  de Camões (c. 1524–1580), poeta maior da língua portuguesa, é autor de Os Lusíadas e de uma obra lírica marcada pela tensão entre razão e paixão, destino e liberdade. Viajante, guerreiro e exilado, fez da palavra seu território de permanência e de resistência.

Inácio José de Alvarenga Peixoto (1744–1792), nascido no Rio de Janeiro, mas radicado em Minas Gerais, foi poeta do Arcadismo e figura central da Inconfidência Mineira. Sua poesia combina refinamento formal e emoção contida, como no célebre soneto “Ao coração que a Bárbara me deu”. Viveu entre o amor, a beleza e a luta por liberdade.


29 de ago. de 2025

342) LEONARDO DA VINCI EM PALMIRA

 

A cidade ainda se chamava Palmira. Hoje, chama-se Santos Dumont em homenagem a seu filho ilustre.

O céu, nesse dia, estava especialmente azul. Azul como se tivesse sido recém-pintado por alguém que não aceitava limites entre arte e atmosfera.

Num banco de madeira, de frente para uma oficina simples, um homem elegante,  pequeno, de bigode bem aparado, camisa engomada e sapatos impecáveis, ajustava um relógio de pulso como quem afinava um instrumento de precisão.

Era Alberto Santos Dumont.

Ainda moço, ainda inteiro, ainda encantado com o fato de que o ar obedece à leveza.

Foi quando ouviu um assobio vindo da sombra de uma árvore.

Olhou.

Um velho de barbas brancas, olhar de criança e túnica gasta desenhava algo com carvão numa pedra.

— Bom dia, disse Santos, educadamente.

— Buongiorno. Este céu é um convite. Quase ouço ele pedindo para ser cavalgado.

— O senhor é italiano?

— Sou o que sobrou de mim. Chame-me de Leonardo. E você, por acaso, voa?

Santos Dumont sorriu.

— Tento.

O velho mostrou o desenho na pedra: um parafuso voador, asas de morcego, rodas dentro de rodas.

— Sonhei isso há séculos. O céu me rejeitou. E você?

— O céu ainda resiste. Mas já me deixou entrar algumas vezes.

— E você escreve seus voos?

— Anoto. Mas prefiro mostrar. Quer ver?

Santos o levou até o fundo da oficina. Mostrou uma miniatura do 14-bis. Falou com entusiasmo de balões, motores, controle direcional, estabilidade no ar.

Leonardo o ouvia como quem ouve música nova numa língua antiga.

— Você realizou o que desenhei. Fez da ideia matéria.

— E o senhor me deu permissão sem saber. Eu segui seu risco como quem segue uma estrela.

Silêncio.

O céu, acima, sussurrava promessas.

Leonardo então tirou do bolso um pequeno pergaminho com desenhos de asas, dobraduras e asas de libélulas. Entregou ao brasileiro:

— Uma última tentativa. Faça disso algo que voe. Ou que dance no ar.

Santos recebeu o papel como quem recebe um testamento do impossível.

Antes de partir, Leonardo olhou o relógio de pulso do jovem inventor e sorriu:

— No meu tempo, o tempo escorria. No seu, ele voa com você.

Desapareceu entre o azul e o barulho do vento.

Dizem que, anos depois, quando sobrevoava Paris num dirigível leve como pensamento, Santos Dumont levava consigo um desenho dobrado no bolso de asas que pareciam sonhar mais do que explicar.

 Edson Pinto

Agosto, 2025


Nota do autor

Leonardo da Vinci (1452–1519), gênio do Renascimento italiano, foi pintor, inventor, anatomista, engenheiro e sonhador. Criou obras eternas como A Última Ceia e Mona Lisa, além de projetar máquinas voadoras séculos antes da engenharia permitir que saíssem do papel.

Alberto Santos Dumont (1873–1932), nascido em Palmira (MG), foi um dos pais da aviação. Criador do dirigível nº 6 e do 14-bis, realizou o primeiro voo homologado de um avião com propulsão própria. Misturava ciência com sensibilidade e acreditava que o voo era uma poesia possível.


22 de ago. de 2025

341) DALÍ EM TRÊS CORAÇÕES



Dizem que ele veio fugido do tempo.

Salvador Dalí, com seu bigode apontando para outros planetas e uma bengala dourada batendo ritmadamente no chão, desembarcou em Três Corações com a certeza de que ali havia algo que nem o surrealismo ousava imaginar.

Era 1948, de fato, mas para Dalí podia ser também 1936 ou 1954, quem sabe? O tempo, para Dalí, sempre foi uma gelatina.

A realidade é que, ao pisar na simpática cidade do sul de Minas, onde, por coincidência, atualmente gozo do meu refúgio alternativo, sentiu, Dalí,  algo vibrando.

E não era trem. Era destino...

Caminhava pela praça central como quem flutua, olhando para o céu com os olhos arregalados e exclamando:

— ¡Esto no es Brasil, esto es un sueño tropical de Gaia!

Foi quando viu um menino sentado na calçada controlando com pés hábeis uma bola surrada. Ria sozinho. Joelhos ralados e os olhos acesos.

— ¿Cómo te llamas, niño?, perguntou Dalí com voz de quem interroga o cosmos.

— Edson, mas me chamam de Dico.

Dalí se agachou.

Olhou nos olhos do menino e viu ali um universo em gestação: pernas de bailarina, instinto de raio, olhar de rei.

— Tú no eres niño. Eres movimiento puro. Eres el delirio de un relógio em forma de esfera.

O menino riu, sem entender. Mas gostou do sujeito.

Dalí então pegou do bolso um pequeno caderno de anotações. Rasgou uma folha. Nela desenhou um relógio derretendo sobre uma trave. E escreveu:

“O tempo vai tentar te deter. Mas você não joga com o tempo. Você joga com a eternidade.”

Dobrou o papel, entregou ao garoto e disse:

— Guarde isso. Um dia você entenderá. Quando o mundo inteiro te chamar de rei.

O menino apenas respondeu com um sorriso tímido, como quem ainda não sabe que vai ser imortal.

Dalí, então se despediu da cidade subindo numa carroça puxada por um burro de um olho só.  Disse que precisava ir antes que a realidade o alcançasse.

E desapareceu...

Anos depois, um certo Pelé, ao marcar seu milésimo gol, disse num sussurro que poucos ouviram:

— Isso aqui... parece sonho.

E talvez fosse.

 Edson Pinto

Agosto, 2025

 

Nota do autor

Salvador Dalí (1904–1989) foi um pintor, escultor e pensador catalão, um dos maiores expoentes do surrealismo. Com obras oníricas, provocativas e repletas de símbolos, como os relógios derretidos de A Persistência da Memória, explorou o inconsciente, a identidade e o tempo com irreverência e genialidade.

Pelé, Edson Arantes do Nascimento, (1940–2022), nascido em Três Corações, é considerado o maior jogador de futebol de todos os tempos. Combinando arte, técnica e intuição, encantou o mundo com seus gols e sua simplicidade. Recebeu o título de Rei do Futebol e permanece símbolo universal de beleza no esporte.