25 de jul. de 2025

337) SHAKESPEARE EM OURO PRETO

 


Chegou numa madrugada fria, de névoa espessa. Carregava uma pena de ganso, um chapéu fora de moda e um olhar de quem já tinha visto muita tragédia.

Ninguém estranhou. Em Ouro Preto, fantasmas são comuns. E aquele inglês de fala floreada e gestos teatrais logo foi confundido com mais um professor recém-chegado à Escola de Minas. Mas era ele. William Shakespeare. O próprio.

Instalou-se numa pensão da Rua do Ouvidor, onde lia versos em voz alta para os passarinhos e escrevia sonetos à luz de lamparinas.

Certa tarde, ao visitar o Museu da Inconfidência, sentiu um arrepio. Diante da estátua de Tomás Antônio Gonzaga, murmurou:

— Ah, meu caro poeta, também tu foste Romeu sem final feliz...

Naquela noite, Gonzaga lhe apareceu em sonho - ou em delírio - convidando-o para um sarau secreto no alto do Morro de São João. Lá, entre as pedras e os ecos, estavam também Cláudio Manuel e Alvarenga Peixoto.

Falaram de amores perdidos, de liberdade, de penas e de exílios. Shakespeare ouviu, calado, encantado.

— Vós sois como Ofélia — disse a Gonzaga.

— E vós, como Tiradentes — respondeu o brasileiro.

A partir desse encontro, o inglês começou a escrever uma nova peça: “A Tempestade do Ouro”. Misturava Inconfidência com Hamlet, Marília com Julieta, Tiradentes com Rei Lear.

Dizia que não era mais inglês. Nem era do século XVI. Que havia encontrado em Minas um idioma mais antigo: o da alma lírica que sobrevive à pedra.

Passava os dias nos becos e ladeiras, ouvindo serenatas, lendo Gonzaga no original, bebendo cachaça com estudantes e anotando rimas em guardanapos.

Certa vez, perguntou a um poeta local:

— Em qual praça vossa pena é mais leve?

E o mineiro respondeu:

— Na praça Tiradentes, onde a cabeça pesa, mas o coração voa.

Dizem que Shakespeare nunca mais voltou à Inglaterra. Que morreu velho, anônimo, numa casa colonial de Ouro Preto, escrevendo peças para serem encenadas apenas pelo vento e pelos sinos.

Mas suas últimas palavras, escritas num papel dobrado dentro de um livro de Gonzaga, foram estas:

“Ouro Preto: cenário de tragédia, terra de poetas. Aqui, até a morte declama em versos.”

Edson Pinto

Julho, 2025


Nota do autor

William Shakespeare (1564–1616) foi um dramaturgo e poeta inglês, considerado o maior escritor da língua inglesa e um dos maiores da literatura mundial. Autor de tragédias como Hamlet e Macbeth, comédias como Sonho de uma Noite de Verão e peças históricas como Henrique V, explorou com profundidade as emoções humanas e os dilemas da existência. Sua obra transcende o tempo e continua sendo encenada, estudada e admirada em todo o mundo.

Na Inconfidência Mineira, poesia e rebeldia andaram juntas. Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga e Alvarenga Peixoto cantaram a liberdade com versos árcades e corações insurgentes. Ao lado deles, brilham também os nomes de Bárbara Heliodora, símbolo da causa; Basílio da Gama, com sua pena épica; e Silva Alvarenga, entre o lirismo e o ideal. Todos escreveram, de algum modo, o sonho de um Brasil mais livre.