Chegou numa
madrugada fria, de névoa espessa. Carregava uma pena de ganso, um chapéu fora
de moda e um olhar de quem já tinha visto muita tragédia.
Ninguém
estranhou. Em Ouro Preto, fantasmas são comuns. E aquele inglês de fala
floreada e gestos teatrais logo foi confundido com mais um professor
recém-chegado à Escola de Minas. Mas era ele. William Shakespeare. O próprio.
Instalou-se
numa pensão da Rua do Ouvidor, onde lia versos em voz alta para os passarinhos
e escrevia sonetos à luz de lamparinas.
Certa tarde,
ao visitar o Museu da Inconfidência, sentiu um arrepio. Diante da estátua de
Tomás Antônio Gonzaga, murmurou:
— Ah, meu
caro poeta, também tu foste Romeu sem final feliz...
Naquela
noite, Gonzaga lhe apareceu em sonho - ou em delírio - convidando-o para um
sarau secreto no alto do Morro de São João. Lá, entre as pedras e os ecos,
estavam também Cláudio Manuel e Alvarenga Peixoto.
Falaram de
amores perdidos, de liberdade, de penas e de exílios. Shakespeare ouviu,
calado, encantado.
— Vós sois
como Ofélia — disse a Gonzaga.
— E vós, como
Tiradentes — respondeu o brasileiro.
A partir
desse encontro, o inglês começou a escrever uma nova peça: “A Tempestade do
Ouro”. Misturava Inconfidência com Hamlet, Marília com Julieta, Tiradentes com
Rei Lear.
Dizia que não
era mais inglês. Nem era do século XVI. Que havia encontrado em Minas um idioma
mais antigo: o da alma lírica que sobrevive à pedra.
Passava os
dias nos becos e ladeiras, ouvindo serenatas, lendo Gonzaga no original,
bebendo cachaça com estudantes e anotando rimas em guardanapos.
Certa vez,
perguntou a um poeta local:
— Em qual
praça vossa pena é mais leve?
E o mineiro
respondeu:
— Na praça
Tiradentes, onde a cabeça pesa, mas o coração voa.
Dizem que
Shakespeare nunca mais voltou à Inglaterra. Que morreu velho, anônimo, numa
casa colonial de Ouro Preto, escrevendo peças para serem encenadas apenas pelo
vento e pelos sinos.
Mas suas
últimas palavras, escritas num papel dobrado dentro de um livro de Gonzaga,
foram estas:
“Ouro Preto:
cenário de tragédia, terra de poetas. Aqui, até a morte declama em versos.”
Edson
Pinto
Julho, 2025
Nota do autor
William
Shakespeare (1564–1616) foi um dramaturgo e poeta inglês, considerado o maior
escritor da língua inglesa e um dos maiores da literatura mundial. Autor de
tragédias como Hamlet e Macbeth, comédias como Sonho de uma Noite de Verão e
peças históricas como Henrique V, explorou com profundidade as emoções humanas
e os dilemas da existência. Sua obra transcende o tempo e continua sendo
encenada, estudada e admirada em todo o mundo.
Na
Inconfidência Mineira, poesia e rebeldia andaram juntas. Cláudio Manuel da
Costa, Tomás Antônio Gonzaga e Alvarenga Peixoto cantaram a liberdade com
versos árcades e corações insurgentes. Ao lado deles, brilham também os nomes
de Bárbara Heliodora, símbolo da causa; Basílio da Gama, com sua pena épica; e
Silva Alvarenga, entre o lirismo e o ideal. Todos escreveram, de algum modo, o
sonho de um Brasil mais livre.