1 de ago. de 2025

338) FERNANDO PESSOA EM JUIZ DE FORA


Chegou como quem volta. Desceu do trem noturno com um chapéu discretamente desatualizado, uma valise gasta e um ar de quem nunca esteve ali, mas sabia exatamente onde ficava a Rua Halfeld.

Era, ao mesmo tempo, muitos.

No Café Muzambinho, pediu um chá com casca de limão, ajeitou os óculos e começou a escrever em guardanapos. Quando Murilo Mendes entrou, sentiu uma vertigem no tempo. Era como se tivesse reconhecido nele a própria febre de suas visões.

— Álvaro? — arriscou Murilo, com aquela timidez cheia de curiosidade.

O homem à mesa ergueu os olhos:

— Não. Sou Ricardo Reis. Médico. Discreto.

Murilo sorriu de lado.

— Ora, essa sobriedade toda te trai, Pessoa. Só um fingidor tão completo fingiria ser o mais contido dos seus heterônimos.

O poeta suspirou e mudou de persona.

— Álvaro de Campos. Engenheiro naval. A cidade me fere com suas fachadas cindidas.

— Agora exagera, como todo Campos. Só falta gritar que o bonde é um monstro moderno.

Pessoa riu.

— E se eu for apenas eu? Fernando. Nenhum dos outros. Um homem atravessado por fantasmas que escrevem melhor do que ele.

— Então somos irmãos — murmurou Murilo.

— Pois eu também sou um — e muitos.

Ficaram calados por um tempo. O café esfriava enquanto os dois inventavam novas versões de si mesmos.

— Me diga, Murilo: quem seria você entre meus heterônimos?

— Nenhum deles. Mas invejo o que há de inconfessável em Bernardo Soares. Aquela tristeza que não pede licença, nem desculpas.

— E você? — Pessoa perguntou a si mesmo. — Quem seria entre os heterônimos de Murilo Mendes?

— Talvez um que ainda não nasceu — respondeu Murilo. — Ou um que só existe em Juiz de Fora.

E ali, sob a chuva fina das montanhas, Fernando Pessoa aceitou ser, por um instante, apenas um mineiro de passagem.

 Edson Pinto

Agosto, 2025

  

Nota do autor:

Fernando Pessoa (1888–1935), poeta português, é um dos maiores nomes da literatura universal. Mestre da heteronímia, criou múltiplas identidades poéticas  como Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Alberto Caeiro para explorar, com profundidade filosófica e estilística, os muitos eus da alma humana.

Murilo Mendes (1901–1975), natural de Juiz de Fora, MG, foi um dos principais poetas do modernismo brasileiro. Com uma poesia marcada pelo surrealismo, pela religiosidade e pelo lirismo visionário, construiu uma obra multifacetada e espiritual, sempre aberta ao mistério e ao movimento interior do mundo.

2 comentários:

Anônimo disse...

Estou aqui sorrindo da vivacidade, inteligência e humildade de Fernando
Muito bom esse Texto . Abraço Cristina Duarte

Anônimo disse...

Excelente! Fico imaginando a cena...