6 de mai. de 2011

164) AGONIZOU NO PASSEIO PÚBLICO




__ Fernando, quanto você vai me cobrar para pintar este corredor externo daqui de casa?

__ Olha sô Edson - pensando e coçando a cabeça ao mesmo tempo - vou fazer isso pro senhor por R$5.000,00. Tá bom?

__ Você tá louco Fernando? Este pequeno trabalho não vale mais do que R$300,00.

__ Tá bom sô Edson, o senhor é quem manda, quer que eu comece agora?

Assim era o Fernando. Não tinha a menor noção de preço. Não conhecia as letras nem conta fazia direito, mas tinha uma disposição para o trabalho como nenhum outro dos muitos prestadores de serviços que conhecemos quando vimos morar neste novo bairro. Por seis anos, foi o Fernando que pintou a casa, reparou o telhado, desentupiu os encanamentos, podou árvores e montou paredes com desenhos lógicos. Nunca deixou de nos atender quando chamado. “Subia na construção como se fosse máquina...”

__ Olha sô Edson, estou muito feliz. Na semana passada peguei um bom trabalho e com o dinheiro que ganhei comprei dois carros de uma só vez. Mandei um para a minha ex-mulher lá no interior da Bahia e o outro está na minha casa aqui em Jandira esperando que eu aprenda a dirigir. Fernando era também megalomaníaco, hiperbólico. Dava-se muito bem com o exagero. As terras dele na Bahia, em sua versão, eram imensas. Filosofava com a pureza de sua alma dizendo não ter ainda tudo o que amava, mas que amava tudo o que já tinha. Com regular freqüência citava este pensamento e com ele embrulhava os seus sonhos de grandeza. Na verdade eram somente sonhos. Os carros não passavam de alucinações e as famílias, tanto a de lá como a de cá, viviam numa pobreza de dar dó. Como romântico trabalhador, “seus olhos se embotavam de cimento e lágrima...”

Fernando circulava as ruas oferecendo seus préstimos. No bairro, todos o conheciam e trabalho não lhe faltava. O que lhe faltava era uma boa cabeça para aplicar corretamente o dinheiro que não era muito, mas era regular. Fazia dos botecos o seu Banco de investimentos. Trabalhava em uma casa, almoçava em outra e terminava o dia já acertando algum bico para o dia seguinte. Era feliz. “Dançava e gargalhava como se ouvisse música...”

__ Fernando - disse-lhe minha mulher num final de uma tarde de sexta-feira quando ele passou feliz a caminho de casa ou do boteco - uma telha deve ter quebrado aqui no nosso telhado. Você poderia ver isso para mim?

__ É prá já dona Jane! Com ele não havia tempo ou condições desfavoráveis que o impedissem de começar um trabalho novo. E lá estava o Fernando empoleirado no telhado para o rápido e competente conserto. Ao descer, minha mulher percebe que ele já não estava firme nem tão alegre como antes de subir. “Tropeçou no céu como se fosse um bêbado...”

__ Algum problema, Fernando?

__ Tudo bem dona Jane. Não é nada. É que me veio uma dorzinha bem aqui no peito e no braço que já está me perseguindo há dias. Também, a senhora sabe, sou muito desastrado. Não tomo cuidado com o que faço nem com a minha saúde. Isso passa! Aí, “sentou e descansou com se fosse sábado...”

__ Aqui está Fernando o seu pagamento. E, além disso, vou te dar esta calça jeans novinha, que meu filho nem chegou a usar. Sabe também aquele televisor que trocamos e que você gostaria de ganhá-lo? Se quiser, amanhã quando o Edson estiver disponível podemos levá-lo à sua casa. Você insiste tanto para irmos tomar um café com vocês que podemos fazer isto amanhã. Assim, levamos a televisão e tomamos o seu café.

__ Dona Jane, quanta felicidade! Esta calça nova, a televisão colorida e a visita de vocês à minha casa são todas as coisas que eu mais queria. Já estou amando tudo isso, hiperbolizou como de costume. Era assim que ela gostava de falar. Aguardo vocês lá amanhã. Eu mesmo vou fazer o café. Ninguém lá em casa faz um café tão bom quanto o meu. Até amanhã! E “flutuou no ar como se fosse um pássaro...”

Dez horas do dia seguinte. Depois de um pedido de informação aqui outro acolá conseguimos chegar ao endereço que o Fernando já havia nos fornecido. A casa muito simples estava fechada e isso já nos pareceu estranho. Fernando teria feito festa maior do que a que ele sempre fazia quando estava lá em casa, trabalhando. Depois de umas batidas na porta uma senhora bem simples, cabisbaixa nos atende com uma feição de absoluta tristeza.

__ É aqui que mora o Fernando – pergunto um tanto preocupado?

__ Morava meu senhor. Ontem ele chegou muito alegre, colocou uma calça nova que trouxe. Preparou este cantinho aqui para por uma televisão que ele disse ia ainda chegar. Conferiu na cozinha se tínhamos café e biscoito. Saiu cantarolando dizendo que voltava logo. Antes de sair “me beijou como se fosse a única...”

__ Hoje cedo, como não havia chegado, corremos os botecos da vila até descobrir que, na noite anterior, ele tinha sentido fortes dores no braço e que se espalhava pelo peito. Os amigos o levaram para o SUS e o deixaram lá. Não teve, contudo, paciência para esperar o demorado atendimento. Saiu sozinho pela rua e “acabou no chão como um pacote flácido...”

Fernando tinha apenas 38 anos. Poderia ter vivido mais. Poderia ter tido mais conquistas materiais como sempre sonhou, mas certamente não poderia amar mais a vida do que, de fato, amou. Era uma figura simples, divertida, prestativa, trabalhadora que, como milhões de patrícios, formavam a massa ignara desta curiosa nação. Era apenas um. “Morreu na contramão atrapalhando o tráfego...”

Edson Pinto

Maio de 2011

PS.:

Em azul, trechos da letra da música “Construção” de Chico Buarque de Holanda para dar um pouco de poesia a essa história tão cruel quanto verdadeira. A vida se sustenta por um frágil fio. Pode-se perdê-la num átimo, como Fernando a perdeu.

3 comentários:

Blog do Edson Pinto disse...

De: Edson Pinto
Para: Amigos:


Caros amigos:

Quantas pessoas encontramos ao longo da vida? Impossível enumerá-las, é óbvio! Mas, algumas, por mais simples que tenham sido ou ainda são, não raro nos deixam lembranças. Tristes ou alegres, no entanto, são lembranças, e como tais, acrescentam conteúdo à nossa própria existência.

Saindo dos temas políticos, esta semana lembrei-me de Fernando (simplesmente Fernando, pois nunca, aqui em casa, soubemos o seu sobrenome). Era um simples prestador de serviços diversos que em algum momento do passado cruzou as nossas vidas. Leiam a minha crônica desta semana “AGONIZOU NO PASSEIO PÚBLICO” e saiba como existem pessoas marcantes.

Bom final de semana a todos e especialmente, parabéns a todas as mães!

Edson Pinto

Blog do Edson Pinto disse...

De: Neun Song
Para: Edson Pinto


Caro Edson:

MARAVILHOSO!

Excelente a sua cronica desta semana, ao combinar os versos da canção do Chico Buarque com o texto.

Eu já conhecia a letra da música.

Fui lendo o texto para descobrir como o Edson Pinto vai inserir a poesia na sua crônica. No fim da leitura, respirei fundo e pensei: Simplesmente fantástico!
Parabéns!

Um abraço,

Blog do Edson Pinto disse...

De: Roberto Couto
Para: Edson Pinto


Caro Edson, linda a sua crônica desta semana. A vida é asim mesmo, um instante estamos aqui e no minuto seguinte já partimos para outra dimensão. Me emocionei muito principalmente pelo nome e jeito do Fernando.
Abraços carinhosos