Era, ao mesmo
tempo, muitos.
No Café
Muzambinho, pediu um chá com casca de limão, ajeitou os óculos e começou a
escrever em guardanapos. Quando Murilo Mendes entrou, sentiu uma vertigem no
tempo. Era como se tivesse reconhecido nele a própria febre de suas visões.
— Álvaro? —
arriscou Murilo, com aquela timidez cheia de curiosidade.
O homem à
mesa ergueu os olhos:
— Não. Sou
Ricardo Reis. Médico. Discreto.
Murilo sorriu
de lado.
— Ora, essa
sobriedade toda te trai, Pessoa. Só um fingidor tão completo fingiria ser o
mais contido dos seus heterônimos.
O poeta
suspirou e mudou de persona.
— Álvaro de
Campos. Engenheiro naval. A cidade me fere com suas fachadas cindidas.
— Agora
exagera, como todo Campos. Só falta gritar que o bonde é um monstro moderno.
Pessoa riu.
— E se eu for
apenas eu? Fernando. Nenhum dos outros. Um homem atravessado por fantasmas que
escrevem melhor do que ele.
— Então somos
irmãos — murmurou Murilo.
— Pois eu
também sou um — e muitos.
Ficaram
calados por um tempo. O café esfriava enquanto os dois inventavam novas versões
de si mesmos.
— Me diga,
Murilo: quem seria você entre meus heterônimos?
— Nenhum
deles. Mas invejo o que há de inconfessável em Bernardo Soares. Aquela tristeza
que não pede licença, nem desculpas.
— E você? —
Pessoa perguntou a si mesmo. — Quem seria entre os heterônimos de Murilo
Mendes?
— Talvez um
que ainda não nasceu — respondeu Murilo. — Ou um que só existe em Juiz de Fora.
E ali, sob a
chuva fina das montanhas, Fernando Pessoa aceitou ser, por um instante, apenas
um mineiro de passagem.
Edson Pinto
Agosto, 2025
Nota
do autor:
Fernando
Pessoa
(1888–1935), poeta português, é um dos maiores nomes da literatura universal.
Mestre da heteronímia, criou múltiplas identidades poéticas como Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Alberto
Caeiro para explorar, com profundidade filosófica e estilística, os muitos eus
da alma humana.