A cidade ainda se chamava Palmira. Hoje, chama-se Santos Dumont em homenagem a seu filho ilustre.
O
céu, nesse dia, estava especialmente azul. Azul como se tivesse sido
recém-pintado por alguém que não aceitava limites entre arte e atmosfera.
Num
banco de madeira, de frente para uma oficina simples, um homem elegante, pequeno, de bigode bem aparado, camisa
engomada e sapatos impecáveis, ajustava um relógio de pulso como quem afinava
um instrumento de precisão.
Era
Alberto Santos Dumont.
Ainda
moço, ainda inteiro, ainda encantado com o fato de que o ar obedece à leveza.
Foi
quando ouviu um assobio vindo da sombra de uma árvore.
Olhou.
Um
velho de barbas brancas, olhar de criança e túnica gasta desenhava algo com
carvão numa pedra.
—
Bom dia, disse Santos, educadamente.
—
Buongiorno. Este céu é um convite. Quase ouço ele pedindo para ser cavalgado.
—
O senhor é italiano?
—
Sou o que sobrou de mim. Chame-me de Leonardo. E você, por acaso, voa?
Santos
Dumont sorriu.
—
Tento.
O
velho mostrou o desenho na pedra: um parafuso voador, asas de morcego, rodas
dentro de rodas.
—
Sonhei isso há séculos. O céu me rejeitou. E você?
—
O céu ainda resiste. Mas já me deixou entrar algumas vezes.
—
E você escreve seus voos?
—
Anoto. Mas prefiro mostrar. Quer ver?
Santos
o levou até o fundo da oficina. Mostrou uma miniatura do 14-bis. Falou com
entusiasmo de balões, motores, controle direcional, estabilidade no ar.
Leonardo
o ouvia como quem ouve música nova numa língua antiga.
—
Você realizou o que desenhei. Fez da ideia matéria.
—
E o senhor me deu permissão sem saber. Eu segui seu risco como quem segue uma
estrela.
Silêncio.
O
céu, acima, sussurrava promessas.
Leonardo
então tirou do bolso um pequeno pergaminho com desenhos de asas, dobraduras e
asas de libélulas. Entregou ao brasileiro:
—
Uma última tentativa. Faça disso algo que voe. Ou que dance no ar.
Santos
recebeu o papel como quem recebe um testamento do impossível.
Antes
de partir, Leonardo olhou o relógio de pulso do jovem inventor e sorriu:
—
No meu tempo, o tempo escorria. No seu, ele voa com você.
Desapareceu
entre o azul e o barulho do vento.
Dizem
que, anos depois, quando sobrevoava Paris num dirigível leve como pensamento,
Santos Dumont levava consigo um desenho dobrado no bolso de asas que pareciam
sonhar mais do que explicar.
Agosto,
2025
Nota do autor
Leonardo da Vinci (1452–1519), gênio do Renascimento
italiano, foi pintor, inventor, anatomista, engenheiro e sonhador. Criou obras
eternas como A Última Ceia e Mona Lisa, além de projetar máquinas voadoras
séculos antes da engenharia permitir que saíssem do papel.
Alberto Santos Dumont (1873–1932), nascido em Palmira (MG),
foi um dos pais da aviação. Criador do dirigível nº 6 e do 14-bis, realizou o
primeiro voo homologado de um avião com propulsão própria. Misturava ciência
com sensibilidade e acreditava que o voo era uma poesia possível.
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