29 de ago. de 2025

342) LEONARDO DA VINCI EM PALMIRA

 

A cidade ainda se chamava Palmira. Hoje, chama-se Santos Dumont em homenagem a seu filho ilustre.

O céu, nesse dia, estava especialmente azul. Azul como se tivesse sido recém-pintado por alguém que não aceitava limites entre arte e atmosfera.

Num banco de madeira, de frente para uma oficina simples, um homem elegante,  pequeno, de bigode bem aparado, camisa engomada e sapatos impecáveis, ajustava um relógio de pulso como quem afinava um instrumento de precisão.

Era Alberto Santos Dumont.

Ainda moço, ainda inteiro, ainda encantado com o fato de que o ar obedece à leveza.

Foi quando ouviu um assobio vindo da sombra de uma árvore.

Olhou.

Um velho de barbas brancas, olhar de criança e túnica gasta desenhava algo com carvão numa pedra.

— Bom dia, disse Santos, educadamente.

— Buongiorno. Este céu é um convite. Quase ouço ele pedindo para ser cavalgado.

— O senhor é italiano?

— Sou o que sobrou de mim. Chame-me de Leonardo. E você, por acaso, voa?

Santos Dumont sorriu.

— Tento.

O velho mostrou o desenho na pedra: um parafuso voador, asas de morcego, rodas dentro de rodas.

— Sonhei isso há séculos. O céu me rejeitou. E você?

— O céu ainda resiste. Mas já me deixou entrar algumas vezes.

— E você escreve seus voos?

— Anoto. Mas prefiro mostrar. Quer ver?

Santos o levou até o fundo da oficina. Mostrou uma miniatura do 14-bis. Falou com entusiasmo de balões, motores, controle direcional, estabilidade no ar.

Leonardo o ouvia como quem ouve música nova numa língua antiga.

— Você realizou o que desenhei. Fez da ideia matéria.

— E o senhor me deu permissão sem saber. Eu segui seu risco como quem segue uma estrela.

Silêncio.

O céu, acima, sussurrava promessas.

Leonardo então tirou do bolso um pequeno pergaminho com desenhos de asas, dobraduras e asas de libélulas. Entregou ao brasileiro:

— Uma última tentativa. Faça disso algo que voe. Ou que dance no ar.

Santos recebeu o papel como quem recebe um testamento do impossível.

Antes de partir, Leonardo olhou o relógio de pulso do jovem inventor e sorriu:

— No meu tempo, o tempo escorria. No seu, ele voa com você.

Desapareceu entre o azul e o barulho do vento.

Dizem que, anos depois, quando sobrevoava Paris num dirigível leve como pensamento, Santos Dumont levava consigo um desenho dobrado no bolso de asas que pareciam sonhar mais do que explicar.

 Edson Pinto

Agosto, 2025


Nota do autor

Leonardo da Vinci (1452–1519), gênio do Renascimento italiano, foi pintor, inventor, anatomista, engenheiro e sonhador. Criou obras eternas como A Última Ceia e Mona Lisa, além de projetar máquinas voadoras séculos antes da engenharia permitir que saíssem do papel.

Alberto Santos Dumont (1873–1932), nascido em Palmira (MG), foi um dos pais da aviação. Criador do dirigível nº 6 e do 14-bis, realizou o primeiro voo homologado de um avião com propulsão própria. Misturava ciência com sensibilidade e acreditava que o voo era uma poesia possível.


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