4 de set. de 2025

343) CAMÕES EM SÃO JOÃO DEL REI

 


Luís Vaz de Camões apareceu em São João del Rei como quem retorna a um lugar onde nunca esteve. Desceu de uma nuvem que misturava mares antigos e poeira de estrada colonial. Trazia um soneto no bolso, mas não era dele:

 “Fulgente estrela, que o meu bem governa,

Astro brilhante, que me guia o passo…

Por que me obriga a suportar no laço

De amor tão forte pena tão eterna”

Leu e releu várias vezes, na varanda do casarão branco. Estava encantado com a melodia daquele poeta das Gerais, um tal Alvarenga Peixoto, que ousava rimar estrelas como se falasse com Vênus em pessoa.

— Há sangue lírico neste sertão, e eu preciso conhecê-lo.

Foi fácil encontrá-lo: bastou seguir os ecos de uma paixão por Bárbara Heliodora e os boatos sobre um inconfidente que escrevia melhor que confessava.

Alvarenga o recebeu com hospitalidade de alma antiga. Conversaram longamente sobre o amor e suas algemas douradas, sobre a liberdade das palavras e a prisão das ideias. Camões sentiu-se, pela primeira vez em séculos, compreendido.

— Camarada, disse-lhe Alvarenga, num brinde de cachaça suave, se em Lisboa havia reis e mares, aqui há montanhas que rimam com os homens. Proponho nos reencontrar em Ouro Preto, onde vivem os poetas em forma de igreja, pedra e abismo.

Camões apertou-lhe a mão com o vigor de quem sela um destino.

— Em Ouro Preto, pois. Lá escreveremos o que nem a morte ousa apagar.

Dizem que tempos depois Camões chegou a Ouro Preto como quem cumpre promessa feita sob a lua. Subiu e desceu ladeiras em forma de alexandrino. Viu casas inclinadas como interjeições, igrejas como metáforas sacras e sinos que falavam em redondilhas maiores.

No largo, reencontrou Alvarenga Peixoto, agora com os olhos mais escuros, como se tivesse conversado com fantasmas.

— Chegastes, irmão de penas! , disse o mineiro. A cidade vos esperava. Só não fostes o primeiro.

— Como assim?, perguntou Camões, arqueando a sobrancelha boa.

— Antes de vós, chegou aqui um tal Shakespeare. Inglesinho agitado, barba cheia, olhos esbugalhados de espanto. Disse que queria ver o palco das tragédias brasileiras. Anotava tudo: escravos, promessas, igrejas. Escreveu versos em guardanapos e depois refugiou-se num casarão de janelas azuis lá pelos caminhos de Mariana, onde vive sozinho..

Camões pigarreou.

— O mundo anda pequeno para os poetas, parece.

— Ou os poetas é que andam grandes demais para o mundo, respondeu Alvarenga, com um meio-sorriso barroco.

Naquela noite, beberam vinho de jabuticaba e escreveram à luz de lamparina. Não falaram mais do inglês. Mas Camões, no fundo, desconfiava que os ecos de suas metáforas estavam sendo traduzidos com sotaque de Stratford.

Antes de partir, escreveu na parede de uma senzala abandonada:

“Nesta terra, o verbo resiste. E o poeta, mesmo exilado, persiste.”

Ele partiu, deixando montanhas, ladeiras e um amigo que falava tanto português quanto inglês.

 

Edson Pinto

Setembro, 2025

 

 

Nota do autor:

Luís Vaz  de Camões (c. 1524–1580), poeta maior da língua portuguesa, é autor de Os Lusíadas e de uma obra lírica marcada pela tensão entre razão e paixão, destino e liberdade. Viajante, guerreiro e exilado, fez da palavra seu território de permanência e de resistência.

Inácio José de Alvarenga Peixoto (1744–1792), nascido no Rio de Janeiro, mas radicado em Minas Gerais, foi poeta do Arcadismo e figura central da Inconfidência Mineira. Sua poesia combina refinamento formal e emoção contida, como no célebre soneto “Ao coração que a Bárbara me deu”. Viveu entre o amor, a beleza e a luta por liberdade.


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