Luís Vaz de Camões apareceu em São João del Rei como quem retorna a um lugar onde nunca esteve. Desceu de uma nuvem que misturava mares antigos e poeira de estrada colonial. Trazia um soneto no bolso, mas não era dele:
“Fulgente estrela, que o meu bem governa,
Astro brilhante, que me guia o passo…
Por que me obriga a suportar no laço
De
amor tão forte pena tão eterna”
Leu
e releu várias vezes, na varanda do casarão branco. Estava encantado com a
melodia daquele poeta das Gerais, um tal Alvarenga Peixoto, que ousava rimar
estrelas como se falasse com Vênus em pessoa.
—
Há sangue lírico neste sertão, e eu preciso conhecê-lo.
Foi
fácil encontrá-lo: bastou seguir os ecos de uma paixão por Bárbara Heliodora e
os boatos sobre um inconfidente que escrevia melhor que confessava.
Alvarenga
o recebeu com hospitalidade de alma antiga. Conversaram longamente sobre o amor
e suas algemas douradas, sobre a liberdade das palavras e a prisão das ideias.
Camões sentiu-se, pela primeira vez em séculos, compreendido.
—
Camarada, disse-lhe Alvarenga, num brinde de cachaça suave, se em Lisboa havia
reis e mares, aqui há montanhas que rimam com os homens. Proponho nos
reencontrar em Ouro Preto, onde vivem os poetas em forma de igreja, pedra e
abismo.
Camões
apertou-lhe a mão com o vigor de quem sela um destino.
—
Em Ouro Preto, pois. Lá escreveremos o que nem a morte ousa apagar.
Dizem
que tempos depois Camões chegou a Ouro Preto como quem cumpre promessa feita
sob a lua. Subiu e desceu ladeiras em forma de alexandrino. Viu casas
inclinadas como interjeições, igrejas como metáforas sacras e sinos que falavam
em redondilhas maiores.
No
largo, reencontrou Alvarenga Peixoto, agora com os olhos mais escuros, como se
tivesse conversado com fantasmas.
—
Chegastes, irmão de penas! , disse o mineiro. A cidade vos esperava. Só não
fostes o primeiro.
—
Como assim?, perguntou Camões, arqueando a sobrancelha boa.
—
Antes de vós, chegou aqui um tal Shakespeare. Inglesinho agitado, barba cheia,
olhos esbugalhados de espanto. Disse que queria ver o palco das tragédias
brasileiras. Anotava tudo: escravos, promessas, igrejas. Escreveu versos em
guardanapos e depois refugiou-se num casarão de janelas azuis lá pelos caminhos
de Mariana, onde vive sozinho..
Camões
pigarreou.
—
O mundo anda pequeno para os poetas, parece.
—
Ou os poetas é que andam grandes demais para o mundo, respondeu Alvarenga, com
um meio-sorriso barroco.
Naquela
noite, beberam vinho de jabuticaba e escreveram à luz de lamparina. Não falaram
mais do inglês. Mas Camões, no fundo, desconfiava que os ecos de suas metáforas
estavam sendo traduzidos com sotaque de Stratford.
Antes
de partir, escreveu na parede de uma senzala abandonada:
“Nesta terra, o verbo resiste. E o
poeta, mesmo exilado, persiste.”
Ele
partiu, deixando montanhas, ladeiras e um amigo que falava tanto português
quanto inglês.
Edson Pinto
Setembro,
2025
Nota do autor:
Luís Vaz de Camões (c. 1524–1580), poeta maior da língua
portuguesa, é autor de Os Lusíadas e de uma obra lírica marcada pela tensão
entre razão e paixão, destino e liberdade. Viajante, guerreiro e exilado, fez
da palavra seu território de permanência e de resistência.
Inácio
José de Alvarenga Peixoto (1744–1792), nascido no Rio de Janeiro, mas radicado
em Minas Gerais, foi poeta do Arcadismo e figura central da Inconfidência
Mineira. Sua poesia combina refinamento formal e emoção contida, como no
célebre soneto “Ao coração que a Bárbara me deu”. Viveu entre o amor, a beleza
e a luta por liberdade.
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