Cordisburgo
dormia.
Era tarde, ou
cedo demais. O tipo de hora em que só os bichos e os mortos escutam.
Guimarães
Rosa, de chapéu de aba mole, camisa de linho e olhos longes, caminhava devagar
por uma trilha de terra batida. Trazia no bolso um caderninho com palavras
ainda não inventadas.
Foi então que
o viu.
Um homem
magro, de terno escuro e olhar espantado, como se estivesse perdido entre
realidades. Sentado numa pedra, franzindo o cenho como quem tenta decifrar a
existência de um formigueiro.
— Perdido?, perguntou Rosa, com aquela voz que parecia vir do chão.
O outro
hesitou, respondeu em um português que tinha gosto de alemão sonhado:
— Não sei se
estou aqui, ou se aqui está em mim. Talvez seja apenas um erro de linguagem.
Guimarães
sorriu.
— Ah... então
cê é do tipo que vê o mundo por dentro do verbo.
— O mundo é
um tribunal. Só que esqueceram de anunciar o crime.
— No meu
sertão, a gente é réu sem saber. Mas também é juiz sem toga, respondeu Rosa, se
sentando ao lado dele.
— Franz Kafka,
disse o homem, estendendo a mão com certa hesitação.
— João, muito
prazer! Mas me chamam Rosa. Nome de flor pra quem nasceu no mato.
Silêncio. Os
dois olharam o céu, onde estrelas tentavam fazer sentido em meio à poeira.
— Aqui tudo é
seco, comentou Kafka, coçando a garganta.
— É. Mas é
nesse seco que a alma sua, pra parir coisa viva.
Kafka
suspirou.
— No meu
mundo, os homens viram insetos.
— No meu, os
homens viram bichos. Mas continuam homens. Pior que bicho.
— Você
escreve para se salvar?
— Escrevo pra
não morrer de mundo. E você?
— Escrevo pra
tentar explicar o que não tem explicação.
— Então
estamos no mesmo livro, disse Rosa.
— Mas em
línguas diferentes, completou Kafka.
Lá adiante,
um burro passou devagar, puxando uma carroça vazia. Os dois seguiram a pé, em
silêncio, como dois profetas que esqueceram as pragas, mas ainda lembravam o
deserto. Chegaram a uma encruzilhada. Guimarães parou.
— Aqui se
bifurca.
— Sempre se
bifurca. E nunca há placas.
Guimarães
então tirou do bolso o caderninho e arrancou uma folha. Entregou a Kafka.
— Uma
palavra. Nova.
— O que ela
significa?
— Nada. Mas
carrega tudo.
Kafka guardou
o papel no paletó, como quem guarda uma bênção. Deu meia-volta e desapareceu
por uma trilha que ninguém conhecia.
Guimarães
Rosa ficou olhando, quieto, como quem escutava as pedras pensarem. Depois
murmurou, só para si:
“O sertão é
onde o pensamento da alma esbarra no impossível. E o impossível é onde mora o
estrangeiro.”
Edson
Pinto
Setembro,
2025
Nota
do autor
Franz
Kafka
(1883–1924), nascido em Praga, (capital da atual República Tcheca) foi um dos mais influentes escritores do século
XX. Com uma obra marcada por angústia existencial, labirintos burocráticos e a
sensação constante de absurdo, é autor de A Metamorfose e O Processo.
João
Guimarães Rosa
(1908–1967), mineiro de Cordisburgo, reinventou a língua portuguesa na
literatura. Sua obra, como Grande Sertão: Veredas, mescla filosofia, metafísica
e oralidade sertaneja em busca dos limites da experiência humana.

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