19 de set. de 2025

345) FRANZ KAFKA EM CORDISBURGO


Cordisburgo dormia.

Era tarde, ou cedo demais. O tipo de hora em que só os bichos e os mortos escutam.

Guimarães Rosa, de chapéu de aba mole, camisa de linho e olhos longes, caminhava devagar por uma trilha de terra batida. Trazia no bolso um caderninho com palavras ainda não inventadas.

Foi então que o viu.

Um homem magro, de terno escuro e olhar espantado, como se estivesse perdido entre realidades. Sentado numa pedra, franzindo o cenho como quem tenta decifrar a existência de um formigueiro.

— Perdido?, perguntou Rosa, com aquela voz que parecia vir do chão.

O outro hesitou, respondeu em um português que tinha gosto de alemão sonhado:

— Não sei se estou aqui, ou se aqui está em mim. Talvez seja apenas um erro de linguagem.

Guimarães sorriu.

— Ah... então cê é do tipo que vê o mundo por dentro do verbo.

— O mundo é um tribunal. Só que esqueceram de anunciar o crime.

— No meu sertão, a gente é réu sem saber. Mas também é juiz sem toga, respondeu Rosa, se sentando ao lado dele.

— Franz Kafka, disse o homem, estendendo a mão com certa hesitação.

— João, muito prazer! Mas me chamam Rosa. Nome de flor pra quem nasceu no mato.

Silêncio. Os dois olharam o céu, onde estrelas tentavam fazer sentido em meio à poeira.

— Aqui tudo é seco, comentou Kafka, coçando a garganta.

— É. Mas é nesse seco que a alma sua, pra parir coisa viva.

Kafka suspirou.

— No meu mundo, os homens viram insetos.

— No meu, os homens viram bichos. Mas continuam homens. Pior que bicho.

— Você escreve para se salvar?

— Escrevo pra não morrer de mundo. E você?

— Escrevo pra tentar explicar o que não tem explicação.

— Então estamos no mesmo livro, disse Rosa.

— Mas em línguas diferentes, completou Kafka.

Lá adiante, um burro passou devagar, puxando uma carroça vazia. Os dois seguiram a pé, em silêncio, como dois profetas que esqueceram as pragas, mas ainda lembravam o deserto. Chegaram a uma encruzilhada. Guimarães parou.

— Aqui se bifurca.

— Sempre se bifurca. E nunca há placas.

Guimarães então tirou do bolso o caderninho e arrancou uma folha. Entregou a Kafka.

— Uma palavra. Nova.

— O que ela significa?

— Nada. Mas carrega tudo.

Kafka guardou o papel no paletó, como quem guarda uma bênção. Deu meia-volta e desapareceu por uma trilha que ninguém conhecia.

Guimarães Rosa ficou olhando, quieto, como quem escutava as pedras pensarem. Depois murmurou, só para si:

“O sertão é onde o pensamento da alma esbarra no impossível. E o impossível é onde mora o estrangeiro.”

 

Edson Pinto

Setembro, 2025

 

Nota do autor

Franz Kafka (1883–1924), nascido em Praga, (capital da atual República Tcheca) foi um dos mais influentes escritores do século XX. Com uma obra marcada por angústia existencial, labirintos burocráticos e a sensação constante de absurdo, é autor de A Metamorfose e O Processo.

João Guimarães Rosa (1908–1967), mineiro de Cordisburgo, reinventou a língua portuguesa na literatura. Sua obra, como Grande Sertão: Veredas, mescla filosofia, metafísica e oralidade sertaneja em busca dos limites da experiência humana.

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