15 de abr. de 2009

75) ACERTO DE CONTAS...


Doutor, eu nasci aqui neste sertão brabo onde é o sol quem manda. Só não manda chuva... Chamo-me assim porque meu pai era Nilson e minha mãe Josefa. Daí, juntaram, o “Jo” de Josefa com o “ilson” de Nilson e deu Joílson. Sou Joílson, sim senhor. Nunca tive vergonha de dizer meu nome, o lugar onde nasci e as encrencas por causa de mulheres que me levaram a devolver pro inferno um monte de cabras safados. E olha que, na época que aqui morava, não consegui mandar todos; ainda ficaram alguns por estas bandas.

Depois de minhas aventuras nesta terra, passei a vida no Sul, fugindo, menos da seca, que nunca me fez medo, mas, mais por prevenção às vinganças pelos dez capetas que tinha reenviado ao remetente. No Sul me respeitaram tanto que ao invés de ser tentado a acabar com mais cabras tinhosos botei oficialmente 12 filhos no mundo. Até por uma questão de aritmética fiquei com a consciência tranqüila devido ao saldo positivo de 2. Era coisa de alma, de religião. Fiz promessa pra Santo Antônio de manter esse saldo. Nem mais nem menos, doutor. Como a idade já não me permitia ter mais filhos, também não podia matar mais ninguém. O saldo de 2 tinha que ser mantido. Sentia-me assim perdoado e livre do inferno, não por medo do ardor de seu fogo, pois nada podia ser mais quente do que o meu sertão. Apenas, me arrepiava, confesso, só de pensar em rever aqueles que eu já tinha mandado pra lá.

E por que voltei pro sertão, pra esse canto de mundo, pro sol inclemente dessa terra seca? Não foi por ter perdido a noção de medo dos meus inimigos. Já faz tanto tempo que despachei aqueles cabras que ninguém já se importava mais com isso. Mesmo assim, me previno, pois capeta deixa cria. Acho até que chegaram à conclusão de que eu tava certo. Não me importunavam mais. Também, não voltei por ter enricado e vindo, agora, mostrar que venci em terra alheia sem nunca ter freqüentado escolas e aprendido a ler livros e a escrever cartas.

Enfrentei, sim, a escola da vida e com ela aprendi que ler livros e escrever cartas é coisa de granfino, das elites. Sei fazer contas como ninguém. Ah! Isso eu sei e disso muito me orgulho. Sou rigoroso com os números, aprendi sozinho. Nunca me faltou trabalho e nunca recusei de pegar no batente. Fui e sou pau pra toda obra. Minha única irresponsabilidade, se assim posso dizer, é essa fraqueza quando o assunto é mulher. Ta no sangue. Fazer o quê?

Falei pros meus filhos que eu não estudei porque a vida me foi dura, mas eles - querendo ou não - tinham que estudar. Nunca quis ser granfino, já falei! Só queria trabalhar e juntar um pouco de dinheiro para bem criá-los e também pra encher a minha Tereza de perfumes e essas coisas que mulher adora mais do que ao seu próprio homem.

Foi só felicidade, doutor. Cada filho que chegava a gente dava um jeito, comprava uma beliche nova, fazia um puxadinho na casa e reforçava a dispensa. Fome, nunca passamos. Escola, todos tiveram. Quando começaram a entrar as noras e os genros aí a minha casa começou a parecer mais com a quermesse da igreja do que um lugar de sossego. Não gostava muito não, mas segurei a barra, pois isso dava muita alegria a Tereza. Ela, junto com aquele povão todo era só felicidade. E felicidade ninguém tem o direito de roubar dos outros. É coisa que brota dentro de cada um. Tereza merecia. Eu, de meu lado, tinha lá meus pecadilhos, mas sempre fui bom pra trabalhar e pra fazer contas.

Voltei aqui pro sertão, seu delegado, porque não foi fácil suportar Ifigênia, a vizinha, entrando em minha casa com os três filhos dela para dizer que finalmente resolvera revelar a verdade: Euclides, seu marido, sem saber, nunca pudera ter filhos. Desse modo, aquele trio era de minha autoria. Ingrata! Passei anos pulando a cerca com a certeza de que Ifigênia se cuidava direitinho, feliz com o “chamego sem igual”, como ela dizia, só encontrado neste filho da dona Josefa e do sô Nilson. A casa caiu, seu delegado. Tereza, filhos, noras, genros e o inocente do Euclides desabaram sobre mim como um viaduto mal construído.

Não fui morar debaixo de um deles, não. Fui primeiro falar com Santo Antônio. Era questão de honra e de fé que a minha promessa continuasse valendo. Não sou cabra de quebrar promessa, muito menos de fugir da luta. Errei sim, admito. Aí, doutor, vi que ainda tinha jeito de continuar evitando o caminho do inferno. Só dependia de mim e de mais ninguém.

Foi quando então, doutor delegado, tomei essa decisão. Voltei pro meu sertão, sozinho, é claro. Aqui me reinstalei. Repassei tudo o que tinha me acontecido na vida e, como o senhor agora sabe, dei cabo de mais três daqueles velhos inimigos que ainda perambulavam neste fim de mundo. Pode não ser muito certo, se o senhor considera só um dos lados da questão. Mas, coloque-se no meu lugar e leve em conta a promessa que tenho com Santo Antônio de manter, nem mais nem menos, o saldo positivo de 2. Esses três novos filhos trazidos por Ifigênia me obrigaram a despachar mais três lá pro inferno e assim fazer o meu devido acerto de contas.

Não sei se Tereza me acatará de volta, nem mesmo se o senhor me deixará escapar dessa cadeia imunda. À parte o conforto de ter mantido, por ora, o compromisso espontaneamente assumido com Santo Antônio, confesso o desassossego que me provoca só de pensar na possibilidade real do surgimento de outras crias. Assim como Ifigênia que adorava meu chamego, uma dezena de outras também falavam o mesmo. E olha que sou bom de conta...

Edson Pinto
Abril’09

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