24 de ago. de 2008

42) A CUECA DO ABADIA (agosto'08)

Nada conseguia abalar a exuberância do seu ego. Se um amigo dissesse: “Veja esse Matisse que comprei por 2 milhões de reais”, ele logo retrucava: “Mas você não viu o Rembrandt que tenho na minha sala de jantar? Custou-me, no leilão, o dobro do seu, e em euros”, complementava para que não ficasse nenhuma dúvida sobre a sua condição superlativa. Recentemente, é bom que se diga, vinha mudando suas referências monetárias. O dólar americano perdia valor e seu ego, já de algum tempo atrelado a até então mais forte das moedas, não poderia ser arrastado ladeira abaixo. Agora só falava em euros...

Não nasceu rico, mas fez-se próspero fruto do auto-esforço. Seria de se esperar que a sua origem de homem simples se refletisse no comportamento do empresário bem sucedido de agora, boa família e vida abastada. Porém, por intrincadas artimanhas psicossociais, talvez em decorrência de tantos e velhos sofrimentos que considerava injustos; do passado de permanentes competições profissionais que reputava torpes e, ainda, de mil coisas de foro íntimo impossíveis de serem compreendidas, acabou por imaginar-se bem na máscara de todo-poderoso.

Assim agindo, tudo aquilo para o qual, no seu passado de humilhação, olhava e não conseguia alcançar, agora estava aos seus pés podendo, metaforicamente, chutar, pisar e até mesmo cuspir-lhe de soberba. A polpuda conta bancária e a habilidade de grande jogador respaldavam-lhe a empáfia. Se o destino lhe tivesse feito francês, certamente se autodenominaria o “Rei-Sol” e a expressão "L'État c'est moi" lhe cairia muitíssimo bem. Absolutista, mandava, além da conta, na mulher, nos filhos, nos empregados. E mais: no cachorro que late, no carro que sacode, no semáforo lento, na porta fechada, na demora do elevador, enfim, em tudo que ousasse a não lhe atender na forma, no momento e com a perfeição determinada pela sua frivolidade sem fim.

Aí a vida lhe impôs duro revés. Conta corrente zerada, sem mulher para servir-lhe, sem ninguém nem mais nada para mandar. Sem Rembrandt na parede, sem cachorro para chutar, sem reino, sem ombro amigo para o aconchego ou ouvidos complacentes que lhes suportassem as afrontas, resta-lhe, ainda, a vaidade mais comezinha:

__ E aí meu amigo não vai ao novo leilão de artes? Há de tudo, de Rembrandt a Brecheret.

__ Não, hoje não! Voltei do outro leilão onde arrematei, em euros, a cueca do Abadia...

Edson Pinto
22/08/08

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