18 de mar. de 2011

157) BATENDO OS SAPATOS

Eu era bem menino quando meu pai me alertou para a necessidade de um cuidado, embora singelo, mas muito importante, pelo menos naquela época: Antes de calçar o sapato deveria bater a sua parte posterior, o contraforte, no chão pelos menos umas 3 vezes. O objetivo era expulsar eventuais insetos ou mesmo o temível escorpião que por acaso tivesse sorrateiramente ali se alojado. Já lá se vão por volta de 55 anos que rigorosamente pratico esse ato. Considerando no mínimo uma vez por dia que calço sapato e multiplicado pelo número de dias em 55 anos foram 120.000 batidinhas, pois, não se esqueçam que o ritual deve ser aplicado aos 2 pés do mesmo par.

Hoje pela manhã quando mais uma vez seguia automaticamente o procedimento, comecei a me questionar sobre quantas vezes essa providência me foi útil para evitar que meus dedos esmagassem uma barata ou coisa igualmente horrenda. Nenhuma! Exclamei com espantosa segurança. Nunca encontrei nada dentro de meus sapatos e, no entanto, nunca havia questionado a utilidade de tamanha diligência. Será que não existem mais bichinhos que gostam de entrar em sapatos? Será que nas cidades tal risco é ínfimo ao contrário do que pode ocorrer em lugares mais próximos da natureza? Ou será que os sapatos adquirem ao longo de seus usos uma espécie de autoproteção, o repelente natural que chamamos, tapando o nariz, carinhosamente de chulé? Na dúvida sobre o que prevalece, acabo ficando com as 3 hipóteses.

Mas, para quem já viu tanta coisa neste mundo de Deus, até mesmo esse simples cuidado pedestre está cheio de significados, não necessariamente cheio de utilidades. A repetição constante de um ato qualquer da vida nos condiciona e nos cria um hábito, um costume. Claro que existem variados tipos de atos repetitivos. Uns bons, outros maus, outros úteis, inúteis, injustificáveis, até mesmo atos obsedantes que nos tornam seus escravos. A arte de bem viver é exatamente, neste particular, a arte de sabermos distinguir os costumes que merecem ser conservados e abandonar aqueles que em nada contribuem para uma vida prazerosa. Não é minha intenção discorrer sobre problemas patológicos que levam aos chamados transtornos obsessivos compulsivos e que é matéria da psicoterapia. Só quero, filosoficamente, divagar sobre o tema:

A leitura e o estudo freqüentes, por exemplo, criam bons hábitos. Que mal há em gostarmos de ler de forma constante. Terminamos um livro e sentimos a compulsão, desde que não doentia, de lermos outro. Tomamos conhecimento de um novo assunto e somos compelidos a pesquisar com mais profundidade o tema de tal modo a ampliar o conhecimento. Passamos a compreender melhor o mundo em que vivemos, as pessoas com as quais nos relacionamos, descobrimos a maravilha que é o dom da vida e entendemos melhor porque amar uns aos outros, como nos ensinou o homem da Galileia, é mais importante do que armarmos uns ao outros como parece tem sido a compreensão do mundo violento da atualidade.

Metemo-nos num mundo particular de esquisitices inúteis como odiar acima de todas as outras atitudes humanas possíveis; entregamo-nos aos vícios que deterioram a saúde como a bebida excessiva, a droga ou ao cigarro e aí criamos hábitos ruins. De tanto pensar em maldades e de praticar o ato repetitivo do pessimismo há pessoas que criam o costume de odiar a própria vida e fazer pouco juízo da vida dos outros. Fogem dos livros e dos estudos como se nada de bom pudessem descobrir que lhes fosse de utilidade. Desconhecem o prazer que é desvendar um mistério, entender uma causa complexa, iluminar um terreno que lhes seja obscuro.

Se a cada dia ao calçarmos os sapatos para irmos à luta perguntarmos que tipo de atitude queremos seguir, termos a chance de optar pela que faz mais sentido e nos traz mais benefícios. Podemos continuar cultivando o hábito de ser gauche na vida, como nos sugeriu Drummond em seu famoso poema, ou podemos optar por cultivar os bons costumes que garantem prazer e alegria de viver. Temos o livre arbítrio e isso, será sempre uma decisão pessoal, intransferível...

Eu continuarei batendo meu sapato no chão. Não foi ainda muito útil para me livrar de bichinhos repulsivos, mas pelo menos funciona como um gatilho para reflexões. Tem o poder de uma oração.

Edson Pinto
Março de 2011

Um comentário:

Blog do Edson Pinto disse...

De: Edson Pinto
Para: Amigos:

Caros amigos:

Meio acamado devido a uma virose ficou-me mais fácil refletir sobre coisas bem singelas que podem acontecer na vida de cada um de nós. Às vezes, simples gestos do cotidiano podem trazer profundas lições. Escrevi esta semana o texto BATENDO OS SAPATOS. Espero que gostem.

Bom fim de semana a todos!

Edson Pinto