24 de set. de 2011

181) A BANDA QUE NÃO PASSOU

Por mais simples que sejam, há passagens em nossas vidas que tendem a ficar indelevelmente guardadas no relicário de nossa existência. Qualquer um deve ter reminiscências de algo que vivenciou quando ainda muito jovem, mas que perdura forte como se tivesse acontecido em tempos bem recentes. Por mecanismos que só a neurociência pode bem explicar, vamos automaticamente eliminando as memórias de menor importância como se fosse para criar espaço para os novos fatos que continuamente não paramos de vivenciar. Alguns, contudo, mesmo banais, permanecem como que gravados em bronze imarcescível e resistem ao tempo, ainda que longo. Por que será?

Eu tinha lá meus 7, 8 anos de idade quando fui liberado para ir, pela primeira vez, sozinho, cortar o cabelo no salão do bairro. Tudo era tão perto e sem preocupações com segurança que os pais se sentiam motivados a liberar o quanto antes seus filhos para as coisas corriqueiras da vida. No meu caso, bastava dobrar a primeira esquina e lá estava o salão do barbeiro. Entre valente e acanhado, estava eu ali para um dos meus primeiros atos de independência. O corte minimalista era o chamado Príncipe Danilo preservando um topetinho meio no estilo Cascão. Nada da franja transversal ao estilo Justin Bieber atual nem mesmo das esvoaçantes madeixas posteriormente eternizadas pelos Beatles. Era para mim um ato da maior importância. Determinei o corte que correspondia à minha própria vontade e ainda tinha o dinheiro para pagar. Agora, era só curtir o sucesso da empreitada.

Coincidindo com o inicio do corte, o som de uma banda marcial, com sua encantadora composição em metais e percussão tomou conta do ambiente. Dobrados e marchas militares se revezavam para o encanto do pirralho que cortava sozinho o cabelo pela primeira vez. Estava eu, ali, sentadinho enquanto o som forte dos metais e dos bumbos ecoava deliciosamente. Pura magia.

Na cabeça do menino que se julgava astuto porque fora cortar sozinho o cabelo, tratava-se de uma banda real com músicos a caráter, perfilados ordeiramente em marcha prestes a passar em frente ao salão. Tinha, então, absoluta certeza de que era sim uma banda de verdade. Ai veio-me o segundo atrevimento daquela tarde de independência. Afinal, precisava ir rapidamente até a rua para saborear o maravilhoso espetáculo. Era, de fato, muita coisa boa para uma só tarde naqueles idos do final dos anos 50...

Eu não entendia bem o porquê de se chamar o profissional que cortava os meus cabelos de barbeiro, uma vez que nem barba eu tinha. Limitei-me apenas a dizer-lhe que apressasse o trabalho, dispensando-lhe o arremate do pé do cabelo normalmente feito com a navalha. Paguei e comecei a sair rapidamente da barbearia quando me dei conta de que, instalado no alto, em uma cantoneira arredondada logo na entrada do salão, um rádio capelinha despejava os dobrados e as marchas marciais que naquele breve momento de exercício de soberania eu havia escutado.

Meio que frustrado com a descoberta de que a banda real não existia e nem iria passar, voltei para casa mantendo o ar orgulhoso de quem conseguiu se incumbir de uma tarefa importante que foi o corte, sozinho, do cabelo. Meu pai deu uma examinada no corte e exclamou: “É, ainda não está na hora de cuidar disso por você mesmo! Nem o pé do cabelo foi acertado com navalha. Mês que vem volto com você!”

Edson Pinto
Setembro’2011

Um comentário:

Blog do Edson Pinto disse...

De: Edson Pinto
Para: Amigos

Caros amigos:

Nada melhor do que conquistar a liberdade, anseio inato e legitimo do ser humano. “Oh senhora liberdade, abra as asas sobre mim!” Penso que, por isso, tudo o que se refere a ela fica indelevelmente marcado em nossas memórias. Pode ser?

Na crônica de hoje, um episódio bem simples demonstra que não devemos permitir que fatos outros desviem a nossa atenção da liberdade duramente conquistada.

Bom final de semana a todos!

Edson Pinto