3 de out. de 2025

347) LOUIS PASTEUR EM OLIVEIRA

Em Minas, costuma-se dizer que tudo se resume à arte: o barro de Congonhas, a poesia de Drummond, as curvas de Niemeyer, o bordado das rezas nas procissões. Mas há que se corrigir o equívoco: mineiro não vive só de música, pintura ou escultura. Há também a ciência, essa arte sem moldura, invisível e muitas vezes ingrata.

E se a França ostenta um Pasteur, Minas guarda um Chagas, que não compôs sonata nem pintou paisagem, mas arrancou do escuro dos sertões um mal que dormia nas frestas das casas de pau-a-pique.

Foi numa tarde imaginária, como convém às boas histórias, que um estrangeiro de barbas célebres apareceu na praça de Oliveira. O sino da matriz repicava, os meninos corriam atrás de pião, e Carlos, ainda moço, observava um barbeiro dentro de uma caixinha de vidro, como quem vigia um segredo prestes a escapar.

— Meu rapaz, disse o francês, ajeitando a gravata que parecia deslocada na poeira mineira

— Também procura nos seres minúsculos as tragédias dos homens?

Chagas ergueu os olhos, com aquele ar meio sério, meio desconfiado que é próprio da montanha:

— Procuro, sim.

__ Dentro desse inseto feio, que o povo nem sempre nota, mora um inimigo invisível, prosseguiu Chagas. Descobri que ele carrega um protozoário, o Trypanosoma cruzi, capaz de transformar a infância em cansaço e o coração em peso. Observei os bichos de laboratório, vi as febres, comparei com as crianças das vilas. O ciclo está todo aqui: o inseto, o parasita, o homem e a doença.

Pasteur arqueou as sobrancelhas, como quem vê a si mesmo num espelho distante:

— Admirável! Eu precisei de anos e muitos ajudantes. O senhor, jovem e sozinho, fez uma sinfonia completa, regendo micróbios, insetos e sintomas como quem rege uma orquestra invisível.

Chagas baixou os olhos para o caderno:

— Mas a música que procuro não é de glória, é de utilidade. Quero que o menino que dorme em casa de barro acorde vivo e corra atrás de pião.

O sino repicou de novo, como para confirmar o contrato.

E o francês, já quase se desmanchando no ar, deixou-lhe um conselho que parecia mais uma bênção:

— A ciência, meu caro, não é propriedade, é herança. Não se guarda em cofre, distribui-se como pão. E o que descobriu aqui, neste canto de Minas, ecoará nos quatro cantos do mundo.

Dito isso, desapareceu. Ficou Carlos com seu caderno, a caixinha de vidro e a convicção de que também se escreve ciência em Minas. E que, às vezes, uma praça barroca pode ser tão universal quanto um laboratório de Paris.

 Edson Pinto

Outubro, 2025


Nota do Autor

Louis Pasteur (1822–1895) foi um cientista francês que revolucionou a medicina e a microbiologia. Descobriu os microrganismos responsáveis pela fermentação, desenvolveu vacinas contra a raiva e o antraz e inaugurou a era da higiene científica. Sua obra fez do invisível uma questão de saúde pública.

Carlos Chagas (1879–1934), médico e cientista mineiro, foi o único na história da medicina a descrever integralmente uma nova doença: identificou o parasita (Trypanosoma cruzi), o inseto transmissor (barbeiro), os sintomas clínicos e sua relação com a realidade social. Seu trabalho, feito quase solitariamente, uniu ciência e compaixão, inscrevendo Minas não apenas no mapa da arte, mas também no da ciência mundial.


26 de set. de 2025

346) EÇA DE QUEIROZ EM MONTES CLAROS


Diz-se que o trem noturno que cruzou o sertão mineiro naquela quinta-feira parou por engano em Montes Claros (ou seria Teumira?).

Mas quem o viu descer juraria que não havia engano algum: o cavalheiro de bigodes impecáveis, bengala aristocrática e olhar entre o cético e o lírico parecia saber exatamente onde estava. Era Eça de Queiroz.

Sim, o próprio, com sua elegância do século XIX e sua alma do futuro. Vinha de um longo e metafísico passeio por serras portuguesas, e agora, movido por um boato de montanha, buscava as Serras de Minas. Mais precisamente, queria encontrar Cyro dos Anjos.

— Ouvi dizer que ele vive em meio a arquivos, cafés e melancolias, confidenciou Eça à dona da pensão onde se hospedou. Dizem que escreve com a alma de quem arquiva sonhos.

Foi fácil encontrar o endereço: cartório, segundo andar, porta com rangido filosófico. Cyro o recebeu como quem recebe um irmão de outras páginas.

— Senhor Queiroz! Aqui? Em Montes Claros?

— Vim atrás do senhor. Dizem que só os mineiros sabem o que fazer com o silêncio.

Conversaram por horas. Eça queria saber de Minas: do tédio burocrático, dos cafés vespertinos, das mulheres que prometem pouco mas deixam muito. Cyro, por sua vez, queria entender Portugal: como se escreve com tanta ironia sem perder a doçura?

Num dado momento, os dois mudaram de tom.

Eça falou de Jacinto, o homem civilizado que reencontrou a alma entre as serras portuguesas. Cyro respondeu com Belmiro, o homem desacreditado que sonhava à beira da rotina mineira. E assim, sem que percebessem, Eça foi virando Jacinto, e Cyro, Belmiro. As palavras passaram a vir carregadas de personagens.

— Então o senhor acredita que a civilização nos roubou a simplicidade?, perguntou Cyro.

— Creio que a civilização nos ensinou a saudade do que nunca deveríamos ter perdido, respondeu Eça.

Subiram juntos até o Alto do Cruzeiro. Olharam a cidade embaçada pelo crepúsculo. O sino da matriz dobrou sem urgência.

— Minas é um espelho opaco de Tormes, disse Eça, com um sorriso discreto. Aqui, também se pode voltar a ser humano.

No dia seguinte, Eça partiu. Deixou com Cyro um exemplar amarelado de A Cidade e as Serras, com uma dedicatória que dizia: Ao cronista das serras brasileiras, com admiração fraterna de quem também se perdeu para se encontrar.

Cyro, por sua vez, anotou no seu diário:

“Recebi hoje a visita de um português desiludido e encantado. Conversamos como se fôssemos personagens um do outro. E, por algumas horas, Minas foi Lisboa, e Elmira, Tormes.”

Edson Pinto

Setembro, 2025

 

Nota do autor:

Eça de Queiroz (1845–1900), escritor português, é um dos maiores nomes do realismo em língua portuguesa. Autor de obras como Os Maias, O Primo Basílio e A Cidade e as Serras, combinou crítica social, ironia refinada e lirismo na construção de uma literatura elegante e penetrante.

Cyro dos Anjos (1906–1994), natural de Montes Claros, MG, destacou-se como romancista, cronista e memorialista. Seu livro O Amanuense Belmiro é considerado um marco da literatura mineira, com sua prosa introspectiva, filosófica e profundamente humana.

19 de set. de 2025

345) FRANZ KAFKA EM CORDISBURGO


Cordisburgo dormia.

Era tarde, ou cedo demais. O tipo de hora em que só os bichos e os mortos escutam.

Guimarães Rosa, de chapéu de aba mole, camisa de linho e olhos longes, caminhava devagar por uma trilha de terra batida. Trazia no bolso um caderninho com palavras ainda não inventadas.

Foi então que o viu.

Um homem magro, de terno escuro e olhar espantado, como se estivesse perdido entre realidades. Sentado numa pedra, franzindo o cenho como quem tenta decifrar a existência de um formigueiro.

— Perdido?, perguntou Rosa, com aquela voz que parecia vir do chão.

O outro hesitou, respondeu em um português que tinha gosto de alemão sonhado:

— Não sei se estou aqui, ou se aqui está em mim. Talvez seja apenas um erro de linguagem.

Guimarães sorriu.

— Ah... então cê é do tipo que vê o mundo por dentro do verbo.

— O mundo é um tribunal. Só que esqueceram de anunciar o crime.

— No meu sertão, a gente é réu sem saber. Mas também é juiz sem toga, respondeu Rosa, se sentando ao lado dele.

— Franz Kafka, disse o homem, estendendo a mão com certa hesitação.

— João, muito prazer! Mas me chamam Rosa. Nome de flor pra quem nasceu no mato.

Silêncio. Os dois olharam o céu, onde estrelas tentavam fazer sentido em meio à poeira.

— Aqui tudo é seco, comentou Kafka, coçando a garganta.

— É. Mas é nesse seco que a alma sua, pra parir coisa viva.

Kafka suspirou.

— No meu mundo, os homens viram insetos.

— No meu, os homens viram bichos. Mas continuam homens. Pior que bicho.

— Você escreve para se salvar?

— Escrevo pra não morrer de mundo. E você?

— Escrevo pra tentar explicar o que não tem explicação.

— Então estamos no mesmo livro, disse Rosa.

— Mas em línguas diferentes, completou Kafka.

Lá adiante, um burro passou devagar, puxando uma carroça vazia. Os dois seguiram a pé, em silêncio, como dois profetas que esqueceram as pragas, mas ainda lembravam o deserto. Chegaram a uma encruzilhada. Guimarães parou.

— Aqui se bifurca.

— Sempre se bifurca. E nunca há placas.

Guimarães então tirou do bolso o caderninho e arrancou uma folha. Entregou a Kafka.

— Uma palavra. Nova.

— O que ela significa?

— Nada. Mas carrega tudo.

Kafka guardou o papel no paletó, como quem guarda uma bênção. Deu meia-volta e desapareceu por uma trilha que ninguém conhecia.

Guimarães Rosa ficou olhando, quieto, como quem escutava as pedras pensarem. Depois murmurou, só para si:

“O sertão é onde o pensamento da alma esbarra no impossível. E o impossível é onde mora o estrangeiro.”

 

Edson Pinto

Setembro, 2025

 

Nota do autor

Franz Kafka (1883–1924), nascido em Praga, (capital da atual República Tcheca) foi um dos mais influentes escritores do século XX. Com uma obra marcada por angústia existencial, labirintos burocráticos e a sensação constante de absurdo, é autor de A Metamorfose e O Processo.

João Guimarães Rosa (1908–1967), mineiro de Cordisburgo, reinventou a língua portuguesa na literatura. Sua obra, como Grande Sertão: Veredas, mescla filosofia, metafísica e oralidade sertaneja em busca dos limites da experiência humana.

12 de set. de 2025

344) VIVALDI EM UBÁ


Era uma manhã de verão em Ubá, Zona da Mata, MG,  e o sol já brincava de escorregar pelos telhados. Ary Barroso apareceu na varanda de sua casa, de chinelo e paletó, com um copo de café na mão e uma melodia na cabeça.

— Hoje vai sair samba novo, disse para ninguém, espantando uma borboleta que dançava no ar como nota fora da pauta.

Sentou-se ao piano. Tocou um acorde largo, depois outro. Assoviou como quem risca o céu com som. Lá pelas tantas, ouviu um violino. Não um violino qualquer. Um som doce e arisco, como chuva fina em tarde quente. Um trinado que parecia conjurar flores, passarinhos e brisas.

Virou-se, desconfiado.

Bem ali, na esquina da sua rua, um homem de cabelos brancos, casaco longo e sapatos que afundavam um pouco na poeira mineira, tocava um violino com os olhos fechados e o espírito em festa.

— Meu senhor... o que é isso? — perguntou Ary, encantado.

— La Primavera, respondeu o outro, abrindo um sorriso vermelho como o céu do entardecer.

— Primavera? Isso aí tá é mais pra manhã de junho em Minas, com cheiro de laranja e roupa no varal.

— Então é primavera com café.

Riram os dois. O violino repousou. O piano chamou.

— Meu nome é Ary, Ary Barroso. E o senhor?

— Antônio Vivaldi. Vim ver onde nascem as cores do som.

Ary o convidou para subir. Sentaram-se os dois: o brasileiro ao piano, o italiano com seu violino. Um começou a dedilhar o começo de Aquarela do Brasil, e o outro respondeu com o motivo de La Primavera.

E assim ficaram por horas: um trocando acordes tropicais, outro respondendo com contrapontos barrocos. A vizinhança parou. Os passarinhos silenciaram. Até o vento ouvia.

— Esse seu “Brasil” parece uma orquestra, disse Vivaldi, encantado.

— E essa sua primavera parece uma escola de samba que leu poesia.

No fim da tarde, escreveram juntos uma peça que nunca foi ouvida:

“Concerto para Dois Sóis e Um Pandeiro”.

A partitura, dizem, se perdeu numa tempestade de pétalas ou foi levada por um sanhaço azul.

Antes de partir, Vivaldi tirou o chapéu, fez uma reverência e disse:

— O mundo gira em dó maior. Mas aqui ele dança.

Ary respondeu, sorrindo:

— E aqui, maestro, até o silêncio tem ritmo.

 

Edson Pinto

Stembro, 2025

 

Nota do autor

Antônio Vivaldi (1678–1741), compositor e violinista barroco italiano, é autor das célebres Quatro Estações, obras que transformaram os ciclos da natureza em música.

Ary Barroso (1903–1964), mineiro de Ubá, foi compositor, pianista e locutor, criador de “Aquarela do Brasil” e outros sambas imortais. Sua música exalta o Brasil com ritmo, cor e alma.

4 de set. de 2025

343) CAMÕES EM SÃO JOÃO DEL REI

 


Luís Vaz de Camões apareceu em São João del Rei como quem retorna a um lugar onde nunca esteve. Desceu de uma nuvem que misturava mares antigos e poeira de estrada colonial. Trazia um soneto no bolso, mas não era dele:

 “Fulgente estrela, que o meu bem governa,

Astro brilhante, que me guia o passo…

Por que me obriga a suportar no laço

De amor tão forte pena tão eterna”

Leu e releu várias vezes, na varanda do casarão branco. Estava encantado com a melodia daquele poeta das Gerais, um tal Alvarenga Peixoto, que ousava rimar estrelas como se falasse com Vênus em pessoa.

— Há sangue lírico neste sertão, e eu preciso conhecê-lo.

Foi fácil encontrá-lo: bastou seguir os ecos de uma paixão por Bárbara Heliodora e os boatos sobre um inconfidente que escrevia melhor que confessava.

Alvarenga o recebeu com hospitalidade de alma antiga. Conversaram longamente sobre o amor e suas algemas douradas, sobre a liberdade das palavras e a prisão das ideias. Camões sentiu-se, pela primeira vez em séculos, compreendido.

— Camarada, disse-lhe Alvarenga, num brinde de cachaça suave, se em Lisboa havia reis e mares, aqui há montanhas que rimam com os homens. Proponho nos reencontrar em Ouro Preto, onde vivem os poetas em forma de igreja, pedra e abismo.

Camões apertou-lhe a mão com o vigor de quem sela um destino.

— Em Ouro Preto, pois. Lá escreveremos o que nem a morte ousa apagar.

Dizem que tempos depois Camões chegou a Ouro Preto como quem cumpre promessa feita sob a lua. Subiu e desceu ladeiras em forma de alexandrino. Viu casas inclinadas como interjeições, igrejas como metáforas sacras e sinos que falavam em redondilhas maiores.

No largo, reencontrou Alvarenga Peixoto, agora com os olhos mais escuros, como se tivesse conversado com fantasmas.

— Chegastes, irmão de penas! , disse o mineiro. A cidade vos esperava. Só não fostes o primeiro.

— Como assim?, perguntou Camões, arqueando a sobrancelha boa.

— Antes de vós, chegou aqui um tal Shakespeare. Inglesinho agitado, barba cheia, olhos esbugalhados de espanto. Disse que queria ver o palco das tragédias brasileiras. Anotava tudo: escravos, promessas, igrejas. Escreveu versos em guardanapos e depois refugiou-se num casarão de janelas azuis lá pelos caminhos de Mariana, onde vive sozinho..

Camões pigarreou.

— O mundo anda pequeno para os poetas, parece.

— Ou os poetas é que andam grandes demais para o mundo, respondeu Alvarenga, com um meio-sorriso barroco.

Naquela noite, beberam vinho de jabuticaba e escreveram à luz de lamparina. Não falaram mais do inglês. Mas Camões, no fundo, desconfiava que os ecos de suas metáforas estavam sendo traduzidos com sotaque de Stratford.

Antes de partir, escreveu na parede de uma senzala abandonada:

“Nesta terra, o verbo resiste. E o poeta, mesmo exilado, persiste.”

Ele partiu, deixando montanhas, ladeiras e um amigo que falava tanto português quanto inglês.

 

Edson Pinto

Setembro, 2025

 

 

Nota do autor:

Luís Vaz  de Camões (c. 1524–1580), poeta maior da língua portuguesa, é autor de Os Lusíadas e de uma obra lírica marcada pela tensão entre razão e paixão, destino e liberdade. Viajante, guerreiro e exilado, fez da palavra seu território de permanência e de resistência.

Inácio José de Alvarenga Peixoto (1744–1792), nascido no Rio de Janeiro, mas radicado em Minas Gerais, foi poeta do Arcadismo e figura central da Inconfidência Mineira. Sua poesia combina refinamento formal e emoção contida, como no célebre soneto “Ao coração que a Bárbara me deu”. Viveu entre o amor, a beleza e a luta por liberdade.


29 de ago. de 2025

342) LEONARDO DA VINCI EM PALMIRA

 

A cidade ainda se chamava Palmira. Hoje, chama-se Santos Dumont em homenagem a seu filho ilustre.

O céu, nesse dia, estava especialmente azul. Azul como se tivesse sido recém-pintado por alguém que não aceitava limites entre arte e atmosfera.

Num banco de madeira, de frente para uma oficina simples, um homem elegante,  pequeno, de bigode bem aparado, camisa engomada e sapatos impecáveis, ajustava um relógio de pulso como quem afinava um instrumento de precisão.

Era Alberto Santos Dumont.

Ainda moço, ainda inteiro, ainda encantado com o fato de que o ar obedece à leveza.

Foi quando ouviu um assobio vindo da sombra de uma árvore.

Olhou.

Um velho de barbas brancas, olhar de criança e túnica gasta desenhava algo com carvão numa pedra.

— Bom dia, disse Santos, educadamente.

— Buongiorno. Este céu é um convite. Quase ouço ele pedindo para ser cavalgado.

— O senhor é italiano?

— Sou o que sobrou de mim. Chame-me de Leonardo. E você, por acaso, voa?

Santos Dumont sorriu.

— Tento.

O velho mostrou o desenho na pedra: um parafuso voador, asas de morcego, rodas dentro de rodas.

— Sonhei isso há séculos. O céu me rejeitou. E você?

— O céu ainda resiste. Mas já me deixou entrar algumas vezes.

— E você escreve seus voos?

— Anoto. Mas prefiro mostrar. Quer ver?

Santos o levou até o fundo da oficina. Mostrou uma miniatura do 14-bis. Falou com entusiasmo de balões, motores, controle direcional, estabilidade no ar.

Leonardo o ouvia como quem ouve música nova numa língua antiga.

— Você realizou o que desenhei. Fez da ideia matéria.

— E o senhor me deu permissão sem saber. Eu segui seu risco como quem segue uma estrela.

Silêncio.

O céu, acima, sussurrava promessas.

Leonardo então tirou do bolso um pequeno pergaminho com desenhos de asas, dobraduras e asas de libélulas. Entregou ao brasileiro:

— Uma última tentativa. Faça disso algo que voe. Ou que dance no ar.

Santos recebeu o papel como quem recebe um testamento do impossível.

Antes de partir, Leonardo olhou o relógio de pulso do jovem inventor e sorriu:

— No meu tempo, o tempo escorria. No seu, ele voa com você.

Desapareceu entre o azul e o barulho do vento.

Dizem que, anos depois, quando sobrevoava Paris num dirigível leve como pensamento, Santos Dumont levava consigo um desenho dobrado no bolso de asas que pareciam sonhar mais do que explicar.

 Edson Pinto

Agosto, 2025


Nota do autor

Leonardo da Vinci (1452–1519), gênio do Renascimento italiano, foi pintor, inventor, anatomista, engenheiro e sonhador. Criou obras eternas como A Última Ceia e Mona Lisa, além de projetar máquinas voadoras séculos antes da engenharia permitir que saíssem do papel.

Alberto Santos Dumont (1873–1932), nascido em Palmira (MG), foi um dos pais da aviação. Criador do dirigível nº 6 e do 14-bis, realizou o primeiro voo homologado de um avião com propulsão própria. Misturava ciência com sensibilidade e acreditava que o voo era uma poesia possível.


22 de ago. de 2025

341) DALÍ EM TRÊS CORAÇÕES



Dizem que ele veio fugido do tempo.

Salvador Dalí, com seu bigode apontando para outros planetas e uma bengala dourada batendo ritmadamente no chão, desembarcou em Três Corações com a certeza de que ali havia algo que nem o surrealismo ousava imaginar.

Era 1948, de fato, mas para Dalí podia ser também 1936 ou 1954, quem sabe? O tempo, para Dalí, sempre foi uma gelatina.

A realidade é que, ao pisar na simpática cidade do sul de Minas, onde, por coincidência, atualmente gozo do meu refúgio alternativo, sentiu, Dalí,  algo vibrando.

E não era trem. Era destino...

Caminhava pela praça central como quem flutua, olhando para o céu com os olhos arregalados e exclamando:

— ¡Esto no es Brasil, esto es un sueño tropical de Gaia!

Foi quando viu um menino sentado na calçada controlando com pés hábeis uma bola surrada. Ria sozinho. Joelhos ralados e os olhos acesos.

— ¿Cómo te llamas, niño?, perguntou Dalí com voz de quem interroga o cosmos.

— Edson, mas me chamam de Dico.

Dalí se agachou.

Olhou nos olhos do menino e viu ali um universo em gestação: pernas de bailarina, instinto de raio, olhar de rei.

— Tú no eres niño. Eres movimiento puro. Eres el delirio de un relógio em forma de esfera.

O menino riu, sem entender. Mas gostou do sujeito.

Dalí então pegou do bolso um pequeno caderno de anotações. Rasgou uma folha. Nela desenhou um relógio derretendo sobre uma trave. E escreveu:

“O tempo vai tentar te deter. Mas você não joga com o tempo. Você joga com a eternidade.”

Dobrou o papel, entregou ao garoto e disse:

— Guarde isso. Um dia você entenderá. Quando o mundo inteiro te chamar de rei.

O menino apenas respondeu com um sorriso tímido, como quem ainda não sabe que vai ser imortal.

Dalí, então se despediu da cidade subindo numa carroça puxada por um burro de um olho só.  Disse que precisava ir antes que a realidade o alcançasse.

E desapareceu...

Anos depois, um certo Pelé, ao marcar seu milésimo gol, disse num sussurro que poucos ouviram:

— Isso aqui... parece sonho.

E talvez fosse.

 Edson Pinto

Agosto, 2025

 

Nota do autor

Salvador Dalí (1904–1989) foi um pintor, escultor e pensador catalão, um dos maiores expoentes do surrealismo. Com obras oníricas, provocativas e repletas de símbolos, como os relógios derretidos de A Persistência da Memória, explorou o inconsciente, a identidade e o tempo com irreverência e genialidade.

Pelé, Edson Arantes do Nascimento, (1940–2022), nascido em Três Corações, é considerado o maior jogador de futebol de todos os tempos. Combinando arte, técnica e intuição, encantou o mundo com seus gols e sua simplicidade. Recebeu o título de Rei do Futebol e permanece símbolo universal de beleza no esporte.


15 de ago. de 2025

340) MICHELANGELO EM CONGONHAS DO CAMPO

 

Chegou num dia nublado, como quem vem do céu, mas carregando o peso de ter moldado homens demais em pedra.

Michelangelo Buonarroti , o criador do Davi, o pintor da Capela Sistina, o escultor de dores e músculos, pisou o chão vermelho de Congonhas do Campo como quem reencontra algo que nunca soube que perdeu.

Ali, entre igrejas e colinas, sentiu que as montanhas falavam. E que uma mão desconhecida lhe respondia em pedra sabão.

Quis conhecer o autor daquilo. E o encontrou: um homem curvado, das mãos doentes, mas do espírito altivo, Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho.

Ficaram horas sem dizer nada, só olhando as figuras de pedra esparramadas pelo adro da igreja.

Depois, começaram a conversar com gestos.

Com cinzéis.

Michelangelo mostrou-lhe um desenho do Moisés, que carregava nos bolsos como quem leva um filho.

Aleijadinho mostrou-lhe um croqui torto de um apóstolo com expressão assustada. 

— Esse é Judas, disse.

— E como o senhor esculpa com mãos tão feridas?, perguntou Michelangelo, com olhar de admiração sincera.

— Cada dor me revela o contorno. A carne sabe o que o mármore não sabe, respondeu o mineiro, sem vaidade.

Michelangelo sorriu. Entendeu.

O que ele buscara em Roma, encontrou ali: fé e pedra em concílio.

Antes de partir, tirou um pedaço de pergaminho e escreveu alguns traços.

Entregou ao Aleijadinho com um gesto simples, como quem passa um bastão invisível.

— Aqui estão os doze. Os apóstolos. O mundo precisa vê-los não como santos, mas como homens.

Você os fará com sua alma. Dê a eles o barroco que lhes cabe. O meu mármore é frio demais para tanto sentimento.

Aleijadinho apenas assentiu.

Michelangelo partiu, como quem conclui um ciclo.

E o mineiro, de mãos falhas e alma inteira, deu forma aos Doze Profetas que hoje vigiam o adro de Congonhas com olhos de eternidade e rugas de humanidade.

Dizem que, em noites de lua cheia, se ouve, entre as pedras da igreja, um diálogo antigo: um sotaque italiano e outro mineiro, discutindo sombras, fé e equilíbrio de formas.

 

Edson Pinto

Agosto, 2025


Nota do autor

Michelangelo Buonarroti (1475–1564) foi um dos maiores artistas do Renascimento italiano, escultor, pintor, arquiteto e poeta. Criador de obras-primas como o Moisés, o Davi e a Capela Sistina, deixou um legado monumental de beleza e profundidade espiritual.

Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho (1738–1814), é considerado o maior artista do barroco brasileiro. Escultor e arquiteto mineiro, mesmo acometido por uma grave doença degenerativa, criou obras impressionantes em madeira e pedra-sabão, entre elas os Doze Profetas de Congonhas, símbolo da força da fé e da arte no Brasil colonial.


8 de ago. de 2025

339) MOZART EM DIAMANTINA

 

Dizem que chegou numa tarde chuvosa, vestindo casaca bordada e carregando um cravo portátil embrulhado em panos e mistério.

Era Mozart. Sim, ele mesmo.

Se não morreu na Europa, deve ter se escondido nas montanhas de Minas,  porque foi ali, em Diamantina, que seu ouvido encontrou o que Salzburgo lhe negara: saudade em tom menor e esperança em compasso mineiro.

Hospedou-se numa casa azul de janelas brancas, perto da Igreja do Carmo, onde os sinos pareciam tocar só para ele.

Passava os dias compondo: uma valsa com passos de moças nas pedras, uma ária com vozes de serenata e um minueto com silêncios de ouro.

À noite, ouvia seresteiros da Rua Direita e chorava baixinho.

No dia seguinte, compunha para flauta, viola e tamborim: música para almas que não aprenderam a se calar.

Foi então que o viram conversar com um rapaz magro, de olhos vivos e fala sonhadora. Chamava-se Juscelino. Era dali mesmo. Estudante. Cheio de futuro nos bolsos.

Conversavam sobre sons, ideias e sonhos.

— E o senhor? Já compôs algo para cidades? — perguntou o jovem, admirado.

Mozart sorriu e respondeu:

— Não. Mas talvez você devesse. Se eu componho com notas, você pode compor com avenidas. Faça como eu: pense em movimentos, ritmo, silêncio e espanto. Se não pode escrever uma sinfonia, construa uma.

O rapaz ficou em silêncio. Mas o olhar se acendeu como clarinete em afinação.

Alguns dias depois, Mozart partiu sem avisar. Deixou uma partitura incompleta sobre a escrivaninha e um bilhete:

“Ao menino de olhos de maestro: uma cidade pode ser um concerto, se for feita com alma.”

Anos depois, aquele menino se tornou presidente. E construiu Brasília, não como um amontoado de concreto, mas como um compasso arquitetônico no coração do país. Uma sinfonia feita de traço, horizonte e ousadia.

E quem sabe, num ponto silencioso da nova capital, não ecoa ainda, entre colunas modernistas, uma nota suave que nasceu lá em Diamantina, ao pé do cravo de um gênio barroco perdido em Minas.

 Edson Pinto

Agosto, 2025


 Nota do autor

Wolfgang Amadeus Mozart (1756–1791) foi um compositor austríaco, gênio precoce da música clássica. Produziu mais de 600 obras em sua breve vida, entre sinfonias, concertos, óperas e peças sacras. Sua música equilibra emoção, técnica e beleza.

Juscelino Kubitschek (1902–1976), natural de Diamantina, foi presidente do Brasil entre 1956 e 1961. É lembrado por seu lema “cinquenta anos em cinco” e por idealizar e construir Brasília, transformando uma utopia urbanística em realidade. Neste conto, a cidade nasce como uma sugestão musical de um mestre renascentista a um jovem brasileiro.


1 de ago. de 2025

338) FERNANDO PESSOA EM JUIZ DE FORA


Chegou como quem volta. Desceu do trem noturno com um chapéu discretamente desatualizado, uma valise gasta e um ar de quem nunca esteve ali, mas sabia exatamente onde ficava a Rua Halfeld.

Era, ao mesmo tempo, muitos.

No Café Muzambinho, pediu um chá com casca de limão, ajeitou os óculos e começou a escrever em guardanapos. Quando Murilo Mendes entrou, sentiu uma vertigem no tempo. Era como se tivesse reconhecido nele a própria febre de suas visões.

— Álvaro? — arriscou Murilo, com aquela timidez cheia de curiosidade.

O homem à mesa ergueu os olhos:

— Não. Sou Ricardo Reis. Médico. Discreto.

Murilo sorriu de lado.

— Ora, essa sobriedade toda te trai, Pessoa. Só um fingidor tão completo fingiria ser o mais contido dos seus heterônimos.

O poeta suspirou e mudou de persona.

— Álvaro de Campos. Engenheiro naval. A cidade me fere com suas fachadas cindidas.

— Agora exagera, como todo Campos. Só falta gritar que o bonde é um monstro moderno.

Pessoa riu.

— E se eu for apenas eu? Fernando. Nenhum dos outros. Um homem atravessado por fantasmas que escrevem melhor do que ele.

— Então somos irmãos — murmurou Murilo.

— Pois eu também sou um — e muitos.

Ficaram calados por um tempo. O café esfriava enquanto os dois inventavam novas versões de si mesmos.

— Me diga, Murilo: quem seria você entre meus heterônimos?

— Nenhum deles. Mas invejo o que há de inconfessável em Bernardo Soares. Aquela tristeza que não pede licença, nem desculpas.

— E você? — Pessoa perguntou a si mesmo. — Quem seria entre os heterônimos de Murilo Mendes?

— Talvez um que ainda não nasceu — respondeu Murilo. — Ou um que só existe em Juiz de Fora.

E ali, sob a chuva fina das montanhas, Fernando Pessoa aceitou ser, por um instante, apenas um mineiro de passagem.

 Edson Pinto

Agosto, 2025

  

Nota do autor:

Fernando Pessoa (1888–1935), poeta português, é um dos maiores nomes da literatura universal. Mestre da heteronímia, criou múltiplas identidades poéticas  como Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Alberto Caeiro para explorar, com profundidade filosófica e estilística, os muitos eus da alma humana.

Murilo Mendes (1901–1975), natural de Juiz de Fora, MG, foi um dos principais poetas do modernismo brasileiro. Com uma poesia marcada pelo surrealismo, pela religiosidade e pelo lirismo visionário, construiu uma obra multifacetada e espiritual, sempre aberta ao mistério e ao movimento interior do mundo.

25 de jul. de 2025

337) SHAKESPEARE EM OURO PRETO

 


Chegou numa madrugada fria, de névoa espessa. Carregava uma pena de ganso, um chapéu fora de moda e um olhar de quem já tinha visto muita tragédia.

Ninguém estranhou. Em Ouro Preto, fantasmas são comuns. E aquele inglês de fala floreada e gestos teatrais logo foi confundido com mais um professor recém-chegado à Escola de Minas. Mas era ele. William Shakespeare. O próprio.

Instalou-se numa pensão da Rua do Ouvidor, onde lia versos em voz alta para os passarinhos e escrevia sonetos à luz de lamparinas.

Certa tarde, ao visitar o Museu da Inconfidência, sentiu um arrepio. Diante da estátua de Tomás Antônio Gonzaga, murmurou:

— Ah, meu caro poeta, também tu foste Romeu sem final feliz...

Naquela noite, Gonzaga lhe apareceu em sonho - ou em delírio - convidando-o para um sarau secreto no alto do Morro de São João. Lá, entre as pedras e os ecos, estavam também Cláudio Manuel e Alvarenga Peixoto.

Falaram de amores perdidos, de liberdade, de penas e de exílios. Shakespeare ouviu, calado, encantado.

— Vós sois como Ofélia — disse a Gonzaga.

— E vós, como Tiradentes — respondeu o brasileiro.

A partir desse encontro, o inglês começou a escrever uma nova peça: “A Tempestade do Ouro”. Misturava Inconfidência com Hamlet, Marília com Julieta, Tiradentes com Rei Lear.

Dizia que não era mais inglês. Nem era do século XVI. Que havia encontrado em Minas um idioma mais antigo: o da alma lírica que sobrevive à pedra.

Passava os dias nos becos e ladeiras, ouvindo serenatas, lendo Gonzaga no original, bebendo cachaça com estudantes e anotando rimas em guardanapos.

Certa vez, perguntou a um poeta local:

— Em qual praça vossa pena é mais leve?

E o mineiro respondeu:

— Na praça Tiradentes, onde a cabeça pesa, mas o coração voa.

Dizem que Shakespeare nunca mais voltou à Inglaterra. Que morreu velho, anônimo, numa casa colonial de Ouro Preto, escrevendo peças para serem encenadas apenas pelo vento e pelos sinos.

Mas suas últimas palavras, escritas num papel dobrado dentro de um livro de Gonzaga, foram estas:

“Ouro Preto: cenário de tragédia, terra de poetas. Aqui, até a morte declama em versos.”

Edson Pinto

Julho, 2025


Nota do autor

William Shakespeare (1564–1616) foi um dramaturgo e poeta inglês, considerado o maior escritor da língua inglesa e um dos maiores da literatura mundial. Autor de tragédias como Hamlet e Macbeth, comédias como Sonho de uma Noite de Verão e peças históricas como Henrique V, explorou com profundidade as emoções humanas e os dilemas da existência. Sua obra transcende o tempo e continua sendo encenada, estudada e admirada em todo o mundo.

Na Inconfidência Mineira, poesia e rebeldia andaram juntas. Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga e Alvarenga Peixoto cantaram a liberdade com versos árcades e corações insurgentes. Ao lado deles, brilham também os nomes de Bárbara Heliodora, símbolo da causa; Basílio da Gama, com sua pena épica; e Silva Alvarenga, entre o lirismo e o ideal. Todos escreveram, de algum modo, o sonho de um Brasil mais livre.

18 de jul. de 2025

336) ARTISTAS PERDIDOS EM MINAS

Existem histórias que não estão nos livros de arte, nem nos arquivos dos museus. São histórias sussurradas pelos cafezais, registradas no barro vermelho de ferro das estradas e na bruma das montanhas mineiras.

São relatos de grandes artistas que, cansados do barulho do mundo, desapareceram por um tempo no interior de Minas Gerais.  Não para fugir de seus locais de origem, mas para reencontrar o que haviam perdido por lá: a cor, o compasso, o silêncio.

Tendo isso em mente, pensei então em produzir uma série de relatos  intitulada “Artistas Perdidos em Minas” que se inicia hoje e deve se estender para um total de uns dez capítulos, ou, como queiram, minicontos.

Convido, portanto, o leitor amigo a imaginar o que teria acontecido se figuras como Van Gogh, Leonardo da Vinci ou até mesmo Shakespeare, entre outros,  tivessem cruzado a linha do impossível e encontrado abrigo pelas bandas de Minas Gerais.

É ficção das audaciosas, claro,  mas, como diria Guimarães Rosa:  “A gente vive é para se desiludir das ilusões”.

Comecemos com o mais solar dos angustiados: Vincent van Gogh.

Edson Pinto

Julho, 2025


Van Gogh no Sul de Minas

Dizem que ele não morreu. Que aquela bala no peito foi só um disfarce para escapar da dor, das suas angústias e da Europa.

Dizem que pegou o primeiro navio para o Brasil e que um senhor de chapéu de palha, lá para os lados das montanhas de Minas, o acolheu entre os pés de café.

Vincent - que agora se fazia chamar apenas “Goguinho” - trocou os girassóis pelas floradas brancas do café, pelo pão de queijo, pela prosa despretensiosas  e pelo céu sempre estrelado das Alterosas.

— Essas aqui também seguem o sol — disse-lhe o matuto filósofo, enquanto lhe entregava uma caneca de alumínio com café passado na hora, cheiroso como reza de vó.

Naquele lugar esquecido dos mapas, Goguinho encontrou o que Paris não lhe dera: silêncio. E o silêncio, quando respeitado, vira pincel.

Passava os dias sentado num toco de madeira, pintando os cafezais com os olhos. Às vezes desenhava, noutras apenas respirava.

As montanhas de Minas, essas senhoras antigas e serenas, pareciam sussurrar segredos que nem Freud entenderia. E ele escutava, com a alma.

Ninguém ali sabia quem ele fora. Era só o estrangeiro calado que pintava céu, lavava as mãos no córrego e falava com os bois como quem conversava com Deus.

Mas curou-se...

Não de vez, que artista nenhum se cura por completo, mas o bastante para não desejar a própria morte todo dia.

Meses depois, quando a saudade de Theo, seu irmão, apertou, despediu-se da terra vermelha do minério, do cheiro de café seco no terreiro, e partiu.

Abandonou um quadro inacabado, um chapéu de palha e um bilhete:  “Aqui, pela primeira vez, o azul me abraçou sem doer.”

Voltando à França, onde morava, pintou a Noite Estrelada. Mas só quem o viu em Minas sabe de onde vieram aquelas estrelas girando: vieram do céu de julho das Alterosas, quando a geada deitou sobre os cafezais como véu de noiva, e que fez Goguinho sorrir pela primeira vez em muito tempo.

Edson Pinto

Julho, 2025


Nota do autor

Vincent van Gogh (1853–1890) foi um pintor holandês cuja obra, marcada por cores vibrantes e traços intensos, se tornou símbolo da arte moderna. Produziu mais de 800 quadros em pouco mais de uma década, enfrentando ao mesmo tempo severos distúrbios mentais, crises de depressão e isolamento social. Em vida, vendeu apenas um quadro. Após sua morte precoce, tornou-se um dos artistas mais influentes da história, expressão pura de sensibilidade e sofrimento transformados em cor.