22 de ago. de 2025

341) DALÍ EM TRÊS CORAÇÕES



Dizem que ele veio fugido do tempo.

Salvador Dalí, com seu bigode apontando para outros planetas e uma bengala dourada batendo ritmadamente no chão, desembarcou em Três Corações com a certeza de que ali havia algo que nem o surrealismo ousava imaginar.

Era 1948, de fato, mas para Dalí podia ser também 1936 ou 1954, quem sabe? O tempo, para Dalí, sempre foi uma gelatina.

A realidade é que, ao pisar na simpática cidade do sul de Minas, onde, por coincidência, atualmente gozo do meu refúgio alternativo, sentiu, Dalí,  algo vibrando.

E não era trem. Era destino...

Caminhava pela praça central como quem flutua, olhando para o céu com os olhos arregalados e exclamando:

— ¡Esto no es Brasil, esto es un sueño tropical de Gaia!

Foi quando viu um menino sentado na calçada controlando com pés hábeis uma bola surrada. Ria sozinho. Joelhos ralados e os olhos acesos.

— ¿Cómo te llamas, niño?, perguntou Dalí com voz de quem interroga o cosmos.

— Edson, mas me chamam de Dico.

Dalí se agachou.

Olhou nos olhos do menino e viu ali um universo em gestação: pernas de bailarina, instinto de raio, olhar de rei.

— Tú no eres niño. Eres movimiento puro. Eres el delirio de un relógio em forma de esfera.

O menino riu, sem entender. Mas gostou do sujeito.

Dalí então pegou do bolso um pequeno caderno de anotações. Rasgou uma folha. Nela desenhou um relógio derretendo sobre uma trave. E escreveu:

“O tempo vai tentar te deter. Mas você não joga com o tempo. Você joga com a eternidade.”

Dobrou o papel, entregou ao garoto e disse:

— Guarde isso. Um dia você entenderá. Quando o mundo inteiro te chamar de rei.

O menino apenas respondeu com um sorriso tímido, como quem ainda não sabe que vai ser imortal.

Dalí, então se despediu da cidade subindo numa carroça puxada por um burro de um olho só.  Disse que precisava ir antes que a realidade o alcançasse.

E desapareceu...

Anos depois, um certo Pelé, ao marcar seu milésimo gol, disse num sussurro que poucos ouviram:

— Isso aqui... parece sonho.

E talvez fosse.

 Edson Pinto

Agosto, 2025

 

Nota do autor

Salvador Dalí (1904–1989) foi um pintor, escultor e pensador catalão, um dos maiores expoentes do surrealismo. Com obras oníricas, provocativas e repletas de símbolos, como os relógios derretidos de A Persistência da Memória, explorou o inconsciente, a identidade e o tempo com irreverência e genialidade.

Pelé, Edson Arantes do Nascimento, (1940–2022), nascido em Três Corações, é considerado o maior jogador de futebol de todos os tempos. Combinando arte, técnica e intuição, encantou o mundo com seus gols e sua simplicidade. Recebeu o título de Rei do Futebol e permanece símbolo universal de beleza no esporte.


15 de ago. de 2025

340) MICHELANGELO EM CONGONHAS DO CAMPO

 

Chegou num dia nublado, como quem vem do céu, mas carregando o peso de ter moldado homens demais em pedra.

Michelangelo Buonarroti , o criador do Davi, o pintor da Capela Sistina, o escultor de dores e músculos, pisou o chão vermelho de Congonhas do Campo como quem reencontra algo que nunca soube que perdeu.

Ali, entre igrejas e colinas, sentiu que as montanhas falavam. E que uma mão desconhecida lhe respondia em pedra sabão.

Quis conhecer o autor daquilo. E o encontrou: um homem curvado, das mãos doentes, mas do espírito altivo, Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho.

Ficaram horas sem dizer nada, só olhando as figuras de pedra esparramadas pelo adro da igreja.

Depois, começaram a conversar com gestos.

Com cinzéis.

Michelangelo mostrou-lhe um desenho do Moisés, que carregava nos bolsos como quem leva um filho.

Aleijadinho mostrou-lhe um croqui torto de um apóstolo com expressão assustada. 

— Esse é Judas, disse.

— E como o senhor esculpa com mãos tão feridas?, perguntou Michelangelo, com olhar de admiração sincera.

— Cada dor me revela o contorno. A carne sabe o que o mármore não sabe, respondeu o mineiro, sem vaidade.

Michelangelo sorriu. Entendeu.

O que ele buscara em Roma, encontrou ali: fé e pedra em concílio.

Antes de partir, tirou um pedaço de pergaminho e escreveu alguns traços.

Entregou ao Aleijadinho com um gesto simples, como quem passa um bastão invisível.

— Aqui estão os doze. Os apóstolos. O mundo precisa vê-los não como santos, mas como homens.

Você os fará com sua alma. Dê a eles o barroco que lhes cabe. O meu mármore é frio demais para tanto sentimento.

Aleijadinho apenas assentiu.

Michelangelo partiu, como quem conclui um ciclo.

E o mineiro, de mãos falhas e alma inteira, deu forma aos Doze Profetas que hoje vigiam o adro de Congonhas com olhos de eternidade e rugas de humanidade.

Dizem que, em noites de lua cheia, se ouve, entre as pedras da igreja, um diálogo antigo: um sotaque italiano e outro mineiro, discutindo sombras, fé e equilíbrio de formas.

 

Edson Pinto

Agosto, 2025


Nota do autor

Michelangelo Buonarroti (1475–1564) foi um dos maiores artistas do Renascimento italiano, escultor, pintor, arquiteto e poeta. Criador de obras-primas como o Moisés, o Davi e a Capela Sistina, deixou um legado monumental de beleza e profundidade espiritual.

Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho (1738–1814), é considerado o maior artista do barroco brasileiro. Escultor e arquiteto mineiro, mesmo acometido por uma grave doença degenerativa, criou obras impressionantes em madeira e pedra-sabão, entre elas os Doze Profetas de Congonhas, símbolo da força da fé e da arte no Brasil colonial.


8 de ago. de 2025

339) MOZART EM DIAMANTINA

 

Dizem que chegou numa tarde chuvosa, vestindo casaca bordada e carregando um cravo portátil embrulhado em panos e mistério.

Era Mozart. Sim, ele mesmo.

Se não morreu na Europa, deve ter se escondido nas montanhas de Minas,  porque foi ali, em Diamantina, que seu ouvido encontrou o que Salzburgo lhe negara: saudade em tom menor e esperança em compasso mineiro.

Hospedou-se numa casa azul de janelas brancas, perto da Igreja do Carmo, onde os sinos pareciam tocar só para ele.

Passava os dias compondo: uma valsa com passos de moças nas pedras, uma ária com vozes de serenata e um minueto com silêncios de ouro.

À noite, ouvia seresteiros da Rua Direita e chorava baixinho.

No dia seguinte, compunha para flauta, viola e tamborim: música para almas que não aprenderam a se calar.

Foi então que o viram conversar com um rapaz magro, de olhos vivos e fala sonhadora. Chamava-se Juscelino. Era dali mesmo. Estudante. Cheio de futuro nos bolsos.

Conversavam sobre sons, ideias e sonhos.

— E o senhor? Já compôs algo para cidades? — perguntou o jovem, admirado.

Mozart sorriu e respondeu:

— Não. Mas talvez você devesse. Se eu componho com notas, você pode compor com avenidas. Faça como eu: pense em movimentos, ritmo, silêncio e espanto. Se não pode escrever uma sinfonia, construa uma.

O rapaz ficou em silêncio. Mas o olhar se acendeu como clarinete em afinação.

Alguns dias depois, Mozart partiu sem avisar. Deixou uma partitura incompleta sobre a escrivaninha e um bilhete:

“Ao menino de olhos de maestro: uma cidade pode ser um concerto, se for feita com alma.”

Anos depois, aquele menino se tornou presidente. E construiu Brasília, não como um amontoado de concreto, mas como um compasso arquitetônico no coração do país. Uma sinfonia feita de traço, horizonte e ousadia.

E quem sabe, num ponto silencioso da nova capital, não ecoa ainda, entre colunas modernistas, uma nota suave que nasceu lá em Diamantina, ao pé do cravo de um gênio barroco perdido em Minas.

 Edson Pinto

Agosto, 2025


 Nota do autor

Wolfgang Amadeus Mozart (1756–1791) foi um compositor austríaco, gênio precoce da música clássica. Produziu mais de 600 obras em sua breve vida, entre sinfonias, concertos, óperas e peças sacras. Sua música equilibra emoção, técnica e beleza.

Juscelino Kubitschek (1902–1976), natural de Diamantina, foi presidente do Brasil entre 1956 e 1961. É lembrado por seu lema “cinquenta anos em cinco” e por idealizar e construir Brasília, transformando uma utopia urbanística em realidade. Neste conto, a cidade nasce como uma sugestão musical de um mestre renascentista a um jovem brasileiro.


1 de ago. de 2025

338) FERNANDO PESSOA EM JUIZ DE FORA


Chegou como quem volta. Desceu do trem noturno com um chapéu discretamente desatualizado, uma valise gasta e um ar de quem nunca esteve ali, mas sabia exatamente onde ficava a Rua Halfeld.

Era, ao mesmo tempo, muitos.

No Café Muzambinho, pediu um chá com casca de limão, ajeitou os óculos e começou a escrever em guardanapos. Quando Murilo Mendes entrou, sentiu uma vertigem no tempo. Era como se tivesse reconhecido nele a própria febre de suas visões.

— Álvaro? — arriscou Murilo, com aquela timidez cheia de curiosidade.

O homem à mesa ergueu os olhos:

— Não. Sou Ricardo Reis. Médico. Discreto.

Murilo sorriu de lado.

— Ora, essa sobriedade toda te trai, Pessoa. Só um fingidor tão completo fingiria ser o mais contido dos seus heterônimos.

O poeta suspirou e mudou de persona.

— Álvaro de Campos. Engenheiro naval. A cidade me fere com suas fachadas cindidas.

— Agora exagera, como todo Campos. Só falta gritar que o bonde é um monstro moderno.

Pessoa riu.

— E se eu for apenas eu? Fernando. Nenhum dos outros. Um homem atravessado por fantasmas que escrevem melhor do que ele.

— Então somos irmãos — murmurou Murilo.

— Pois eu também sou um — e muitos.

Ficaram calados por um tempo. O café esfriava enquanto os dois inventavam novas versões de si mesmos.

— Me diga, Murilo: quem seria você entre meus heterônimos?

— Nenhum deles. Mas invejo o que há de inconfessável em Bernardo Soares. Aquela tristeza que não pede licença, nem desculpas.

— E você? — Pessoa perguntou a si mesmo. — Quem seria entre os heterônimos de Murilo Mendes?

— Talvez um que ainda não nasceu — respondeu Murilo. — Ou um que só existe em Juiz de Fora.

E ali, sob a chuva fina das montanhas, Fernando Pessoa aceitou ser, por um instante, apenas um mineiro de passagem.

 Edson Pinto

Agosto, 2025

  

Nota do autor:

Fernando Pessoa (1888–1935), poeta português, é um dos maiores nomes da literatura universal. Mestre da heteronímia, criou múltiplas identidades poéticas  como Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Alberto Caeiro para explorar, com profundidade filosófica e estilística, os muitos eus da alma humana.

Murilo Mendes (1901–1975), natural de Juiz de Fora, MG, foi um dos principais poetas do modernismo brasileiro. Com uma poesia marcada pelo surrealismo, pela religiosidade e pelo lirismo visionário, construiu uma obra multifacetada e espiritual, sempre aberta ao mistério e ao movimento interior do mundo.

25 de jul. de 2025

337) SHAKESPEARE EM OURO PRETO

 


Chegou numa madrugada fria, de névoa espessa. Carregava uma pena de ganso, um chapéu fora de moda e um olhar de quem já tinha visto muita tragédia.

Ninguém estranhou. Em Ouro Preto, fantasmas são comuns. E aquele inglês de fala floreada e gestos teatrais logo foi confundido com mais um professor recém-chegado à Escola de Minas. Mas era ele. William Shakespeare. O próprio.

Instalou-se numa pensão da Rua do Ouvidor, onde lia versos em voz alta para os passarinhos e escrevia sonetos à luz de lamparinas.

Certa tarde, ao visitar o Museu da Inconfidência, sentiu um arrepio. Diante da estátua de Tomás Antônio Gonzaga, murmurou:

— Ah, meu caro poeta, também tu foste Romeu sem final feliz...

Naquela noite, Gonzaga lhe apareceu em sonho - ou em delírio - convidando-o para um sarau secreto no alto do Morro de São João. Lá, entre as pedras e os ecos, estavam também Cláudio Manuel e Alvarenga Peixoto.

Falaram de amores perdidos, de liberdade, de penas e de exílios. Shakespeare ouviu, calado, encantado.

— Vós sois como Ofélia — disse a Gonzaga.

— E vós, como Tiradentes — respondeu o brasileiro.

A partir desse encontro, o inglês começou a escrever uma nova peça: “A Tempestade do Ouro”. Misturava Inconfidência com Hamlet, Marília com Julieta, Tiradentes com Rei Lear.

Dizia que não era mais inglês. Nem era do século XVI. Que havia encontrado em Minas um idioma mais antigo: o da alma lírica que sobrevive à pedra.

Passava os dias nos becos e ladeiras, ouvindo serenatas, lendo Gonzaga no original, bebendo cachaça com estudantes e anotando rimas em guardanapos.

Certa vez, perguntou a um poeta local:

— Em qual praça vossa pena é mais leve?

E o mineiro respondeu:

— Na praça Tiradentes, onde a cabeça pesa, mas o coração voa.

Dizem que Shakespeare nunca mais voltou à Inglaterra. Que morreu velho, anônimo, numa casa colonial de Ouro Preto, escrevendo peças para serem encenadas apenas pelo vento e pelos sinos.

Mas suas últimas palavras, escritas num papel dobrado dentro de um livro de Gonzaga, foram estas:

“Ouro Preto: cenário de tragédia, terra de poetas. Aqui, até a morte declama em versos.”

Edson Pinto

Julho, 2025


Nota do autor

William Shakespeare (1564–1616) foi um dramaturgo e poeta inglês, considerado o maior escritor da língua inglesa e um dos maiores da literatura mundial. Autor de tragédias como Hamlet e Macbeth, comédias como Sonho de uma Noite de Verão e peças históricas como Henrique V, explorou com profundidade as emoções humanas e os dilemas da existência. Sua obra transcende o tempo e continua sendo encenada, estudada e admirada em todo o mundo.

Na Inconfidência Mineira, poesia e rebeldia andaram juntas. Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga e Alvarenga Peixoto cantaram a liberdade com versos árcades e corações insurgentes. Ao lado deles, brilham também os nomes de Bárbara Heliodora, símbolo da causa; Basílio da Gama, com sua pena épica; e Silva Alvarenga, entre o lirismo e o ideal. Todos escreveram, de algum modo, o sonho de um Brasil mais livre.

18 de jul. de 2025

336) ARTISTAS PERDIDOS EM MINAS

Existem histórias que não estão nos livros de arte, nem nos arquivos dos museus. São histórias sussurradas pelos cafezais, registradas no barro vermelho de ferro das estradas e na bruma das montanhas mineiras.

São relatos de grandes artistas que, cansados do barulho do mundo, desapareceram por um tempo no interior de Minas Gerais.  Não para fugir de seus locais de origem, mas para reencontrar o que haviam perdido por lá: a cor, o compasso, o silêncio.

Tendo isso em mente, pensei então em produzir uma série de relatos  intitulada “Artistas Perdidos em Minas” que se inicia hoje e deve se estender para um total de uns dez capítulos, ou, como queiram, minicontos.

Convido, portanto, o leitor amigo a imaginar o que teria acontecido se figuras como Van Gogh, Leonardo da Vinci ou até mesmo Shakespeare, entre outros,  tivessem cruzado a linha do impossível e encontrado abrigo pelas bandas de Minas Gerais.

É ficção das audaciosas, claro,  mas, como diria Guimarães Rosa:  “A gente vive é para se desiludir das ilusões”.

Comecemos com o mais solar dos angustiados: Vincent van Gogh.

Edson Pinto

Julho, 2025


Van Gogh no Sul de Minas

Dizem que ele não morreu. Que aquela bala no peito foi só um disfarce para escapar da dor, das suas angústias e da Europa.

Dizem que pegou o primeiro navio para o Brasil e que um senhor de chapéu de palha, lá para os lados das montanhas de Minas, o acolheu entre os pés de café.

Vincent - que agora se fazia chamar apenas “Goguinho” - trocou os girassóis pelas floradas brancas do café, pelo pão de queijo, pela prosa despretensiosas  e pelo céu sempre estrelado das Alterosas.

— Essas aqui também seguem o sol — disse-lhe o matuto filósofo, enquanto lhe entregava uma caneca de alumínio com café passado na hora, cheiroso como reza de vó.

Naquele lugar esquecido dos mapas, Goguinho encontrou o que Paris não lhe dera: silêncio. E o silêncio, quando respeitado, vira pincel.

Passava os dias sentado num toco de madeira, pintando os cafezais com os olhos. Às vezes desenhava, noutras apenas respirava.

As montanhas de Minas, essas senhoras antigas e serenas, pareciam sussurrar segredos que nem Freud entenderia. E ele escutava, com a alma.

Ninguém ali sabia quem ele fora. Era só o estrangeiro calado que pintava céu, lavava as mãos no córrego e falava com os bois como quem conversava com Deus.

Mas curou-se...

Não de vez, que artista nenhum se cura por completo, mas o bastante para não desejar a própria morte todo dia.

Meses depois, quando a saudade de Theo, seu irmão, apertou, despediu-se da terra vermelha do minério, do cheiro de café seco no terreiro, e partiu.

Abandonou um quadro inacabado, um chapéu de palha e um bilhete:  “Aqui, pela primeira vez, o azul me abraçou sem doer.”

Voltando à França, onde morava, pintou a Noite Estrelada. Mas só quem o viu em Minas sabe de onde vieram aquelas estrelas girando: vieram do céu de julho das Alterosas, quando a geada deitou sobre os cafezais como véu de noiva, e que fez Goguinho sorrir pela primeira vez em muito tempo.

Edson Pinto

Julho, 2025


Nota do autor

Vincent van Gogh (1853–1890) foi um pintor holandês cuja obra, marcada por cores vibrantes e traços intensos, se tornou símbolo da arte moderna. Produziu mais de 800 quadros em pouco mais de uma década, enfrentando ao mesmo tempo severos distúrbios mentais, crises de depressão e isolamento social. Em vida, vendeu apenas um quadro. Após sua morte precoce, tornou-se um dos artistas mais influentes da história, expressão pura de sensibilidade e sofrimento transformados em cor.

11 de jul. de 2025

335) VENDEDOR DE SOMBRA EM DIA NUBLADO

 

Muito se diz, e pouco se entende, sobre pessoas que nasceram com o dom de vender. Não falo aqui daquele vendedor do boteco da esquina que nos entrega a conta junto com o cafezinho. Falo do verdadeiro artista da venda, o trapezista do argumento, o encantador de resistências.

Falo de um amigo meu, ou mesmo de um amigo seu, que veio ao mundo não com o dom da palavra, mas com a palavra já vendida, embalada, com nota fiscal e garantia estendida.

Desde pequeno, o dito cujo já fazia escambo no recreio, trocando figurinhas repetidas por bombons valiosos. Convencia os colegas de que o carrinho com três rodas tinha mais aerodinâmica. Cresceu e continuou no mesmo ofício, não por profissão, mas por vocação misteriosa. Se tivesse vivido nos tempos bíblicos, teria vendido a arca de Noé para os próprios animais. E ainda por cima em dez vezes no carnê.

É o tipo de sujeito capaz de vender sombra em dia nublado, areia para moradores do deserto, e ainda fazer parecer que o comprador saiu ganhando. Dizem que venderia  um par de sapatos para o Saci-Pererê . E o Saci sairia da loja pulando de alegria com o segundo pé de reserva.

Esse meu amigo não oferece produtos, oferece destino. Não vende coisas, vende sonhos embrulhados em argumentos impecáveis. É um ilusionista da utilidade, um plantador de vontades em solo de desinteresse, um costureiro de desejos sob medida.

Agora, peço licença ao leitor para um breve desvio. Porque há por aí outro tipo de vendedor que também anda com gravata, sorriso treinado e promessas na ponta da língua: os políticos.

Esses são especialistas em vender ideias com prazo vencido, ideologias genéricas em promoção relâmpago, e soluções que evaporam na primeira chuva de realidade. Vendem esperança parcelada e entregam decepção à vista. Têm o mesmo dom da fala, mas a usam como quem vende terreno em Marte ou passagem só de ida para a utopia.

A diferença? O meu amigo entrega. O político promete. Um vende, o outro se vende. Porque se esse meu amigo vendesse promessas como os senhores de Brasília, ao menos teria a decência de avisar que o produto era simbólico. Mas não. Ele, o meu amigo, te vende um tapete persa, e você recebe, estende na sala, limpa os pés e ainda elogia o bordado.

Já comprei coisas dele de que não precisava, que não cabiam em casa e que só fizeram sentido porque ele me fez acreditar que faziam. E fiz isso feliz. Rindo. Convencido.

Não o invejo. Eu o admiro como se admira um mágico: sabendo que há truque, mas preferindo acreditar no mistério. Num mundo cheio de vendedores, poucos são os que vendem sem parecer que estão vendendo. Ele é um desses.

Talvez, no fundo, o mundo fosse um lugar mais respirável se os políticos aprendessem com meu amigo, não a vender, pois nisso já são doutores, mas a entregar o que prometem com a mesma honestidade com que ele entrega seus tapetes persas e suas sombras nubladas.

Porque o problema não está na arte da venda, mas no que se vende. E principalmente no que nunca chega. Fausto, ao menos, vendeu a alma por algo grande, ainda que se arrependesse depois. Jacó, por outro lado, comprou a progenitura do irmão por um prato de lentilhas, e não se sabe quem fez o melhor negócio.

Meu amigo, se estivesse por lá, teria vendido a lentilha com embalagem premium, alugado a alma com cláusula de recompra e ainda saído aplaudido por Lúcifer e Esaú ao mesmo tempo.

 Se todos os vendedores fossem como ele, venderíamos menos ilusões e, quem sabe, compraríamos mais realidade. Mas política, como se sabe, é esse bazar onde o freguês sai sempre com a sacola cheia de esperança e o bolso vazio de futuro.

 

Edson Pinto

Julho, 2025


27 de jun. de 2025

334) CONFISSÕES DE UM CATIVADOR DESATENTO

 

Não me julgue, leitor. Ou, se julgar, que seja com a brandura que se reserva aos que tropeçam nas próprias intenções. Eu não quis, e aqui reside o cerne da tragédia, mas cativei Clara.

Clara, sim, de nome e de natureza...

Tão Clara por fora quanto era por dentro, como uma manhã que se entrega inteira ao sol sem pedir nada em troca...

Havia nela uma espécie de transparência luminosa, daquelas que fazem a gente esquecer que o mundo costuma ser opaco. E, justamente por isso, cativá-la foi como tocar uma vidraça limpa: parece coisa simples, inócua, mas deixa marca. Com palavras, com silêncios bem colocados, com aquela atenção rara que só se dá quando se está encantado, mesmo sem saber.

Conheci Clara numa volta da escola. Era uma terça-feira, creio. Talvez chovesse, talvez não. Mas o que importa é que ela falou, e eu escutei como quem ouve uma canção que não quer acabar.

Nos tornamos íntimos de um jeito que só o anonimato permite. Voz, risos, textos, cartas. Eu, confesso, me sentia necessário. E isso é perigosíssimo: quando alguém se sente necessário no coração do outro, corre o risco de acreditar que sempre será bem-vindo, ainda que desapareça por um tempo.

Foi o que fiz.

A vida, esse álibi vagabundo de quem não quer assumir a própria negligência, me engoliu. Trabalho novo, tarefas, desânimos. Coisas miúdas, sabe? Mas que crescem como trepadeira e, quando percebemos, já sufocaram a flor que nos fazia sorrir.

Clara me mandou um bilhete um dia.

"Você está sumido", disse ela...

Três palavras só. Três facas. Visualizei, li, doeu. Mas respondi dois dias depois, com a frieza das desculpas automáticas.

"Desculpa, a vida."

Que vergonha me dá repetir isso aqui. Mas veja: a vida, bem ou mal, nos ensina a desaparecer com elegância, como se ausência fosse sinal de autonomia emocional.

O tempo passou. Dois, três anos, talvez mais...

Um dia, num desses domingos em que o coração se recorda de onde deveria estar, fui tomado por uma saudade estranha. Não da voz de Clara, nem dos poemas, mas da sensação de ser aguardado. Porque há algo de nobre, quase sagrado, em saber-se esperado...

Escrevi. Tímido, tonto, tardio. Disse que sentia falta. Que queria retomar. Que talvez ainda houvesse um canto do jardim com meu nome.

Mas Clara, sempre lúcida e clara por dentro e por fora, respondeu com delicadeza, porém firmeza. Não havia mágoa em suas palavras, mas havia a maturidade de quem aprendeu a regar o próprio jardim, mesmo depois da seca.

Foi então que compreendi, tarde, mas compreendi, como quem lê uma carta antiga e só agora enxerga o subtexto, o que dizia aquela raposa literária que certa vez folheei com pressa juvenil:

"Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas."

Sim, eu cativei. E depois fiz o que tantos fazem: fugi, distraído, convencido de que ternura não tem prazo de validade. Mas Clara…

Clara me guardou por um tempo, como se guarda uma pétala seca de rosa dentro de um livro de romance, com cuidado, com ritual, com esperança.

E agora, onde quer que ela esteja, sei que carrego uma eternidade que não pesa no bolso, mas no peito: a de ter sido, por instantes, morada no coração de alguém… e não ter sabido permanecer.

Se há alguma redenção possível, talvez ela esteja aqui nestas palavras. Talvez escrever seja minha forma tardia de regar o que deixei secar. Sei que já não floresce, mas, ainda assim, ofereço água. Não por querer colheita, mas por dever de jardineiro.

Porque, como aprendi, tarde, mas aprendi, o essencial é invisível aos olhos, mas, uma vez tocado, é indelével na alma.

E Clara… Clara foi o meu planeta B-612. E eu, um caricato Pequeno Príncipe desatento demais para entender que certos corações são estrelas:

Só brilham se você ficar para ver.

 

Edson Pinto

Junho’ 2025


21 de jun. de 2025

333) O ORÁCULO DE VIDRO E SILÍCIO

 

No século em que nasci (não direi qual, por modéstia, cautela e conveniência), as pessoas ainda olhavam umas para as outras com absoluta e regular frequência.

Havia, é verdade, os tímidos, os arrogantes, os absortos e os distraídos, mas ao menos se olhavam. Na minha terra, ainda, exclamavam um “Bom dia!”; uma “Boa tarde”! ou uma prosaica “Boa noite!”! para quem lhes cruzasse o caminho mesmo sem que nunca tivessem visto antes...

Hoje, a maioria dos rostos fita um retângulo luminoso, com a devoção de quem consulta um oráculo ou a superstição de quem espera que dali venha a sorte, o amor ou, no mínimo, o boleto pago, o recibo do pix, a confirmação do encontro sonhado, a devolução do imposto de renda, o placar do jogo do seu time de devoção.

Este objeto, o smartphone, ou simplesmente celular,  - que nome, aliás, pretensioso e quase ofensivo - tornou-se mais que uma simples ferramenta. É uma espécie de segunda alma, embora muito mais bem informada.

Nele reside nossa agenda, nossos afetos, nossos vícios, nossas senhas e - creia, leitor - até nossas saudades. É como se, entre carne e osso, tivéssemos inserido um chip de silício, e sem ele fôssemos almas errantes, sem GPS e sem sentido.

Outro dia vi um homem, de paletó e gravata, correndo  como quem persegue o bonde da vida. Não era o bonde - era o seu smartphone que caíra na calçada apinhada de gente.

A expressão em seu rosto não era de susto, mas de viuvez. Recolheu-o com tanto cuidado que pensei estar carregando um recém-nascido. Sorriu, aliviado, ao ver a tela intacta, como se dissesse: “Graças aos céus, minha existência não se perdeu.”

Ora, é impossível não ver nisto uma forma de amor... Não o amor que Camões declamava com fogo e tempestade, mas um amor mais resignado, mais prático - um amor com Wi-Fi e acesso a bancos de dados nas nuvens.

Talvez, se Romeu vivesse em nosso tempo, não morreria por Julieta, mas por não conseguir desbloquear seu telefone no funeral dela. Que imagem tétrica, não?

Até mesmo a metafísica não se abstém desse fenômeno. Quando Platão falou das sombras na caverna, não previa que os homens trocariam as sombras pelas notificações das redes sociais e dos sites de troca de mensagens.

Vivemos hoje no interior de uma tela, onde o real é aquilo que pode ser fotografado, compartilhado e comentado. O que não cabe num “story” não merece nossa lembrança.

E a subjetividade? Essa, por sua vez, tornou-se um algoritmo. “Quem sou eu?”, pergunta o homem moderno. E o celular responde: você é aquele que gosta de vídeos de gatos, culinária mineira e teorias da conspiração em formato de podcast.

A identidade, antes mistério profundo, agora se resume a um histórico de busca e uma galeria de selfies em ângulos cada vez mais audaciosos.

Não nego os avanços. O aparelho é útil, sem dúvida. Tão útil quanto a roda, o fogo e o caderno de fiado que sobrevive em alguns rincões de pureza por esse mundão afora. Mas entre utilidade e tirania há uma linha tênue - e hoje parece que foi deletada, como uma mensagem inconveniente:

Somos escravos sorridentes, com polegares ágeis e olhos fatigados. Dormimos com o celular ao lado, como um amante que não ronca, mas vibra e precisa constantemente recarregar sua bateria para continuar atuando no palco da vida...

Machado, Pessoa ou até mesmo Nietzsche - perdoe-me, leitor, os nomes são inevitáveis – cada qual a seu modo - diziam que há mais metafísica num beijo que em todos os tratados de Kant.

Pois bem, hoje há mais filosofia numa notificação do banco: “Seu saldo é insuficiente.” que num momento de pura reflexão existencial...

Se ao menos esse retângulo mágico que chamamos celular, smartphone, telemóvel, ou o que seja, nos ensinasse a olhar mais e não apenas a ver, talvez, um dia, cansados de tanto toque sem contato, de tanta conexão sem laço, redescubramos o espanto de um olhar humano, sem tela no meio.

E nesse dia, quem sabe, a humanidade fará uma selfie com sua própria alma - sem filtros...

Edson Pinto

Junho’ 2025


14 de jun. de 2025

332) DEUS É QUE SABE DAS COISAS...

 


Sol de maio, meio-dia...

O campo todo quieto que até o vento parecia descansando. Debaixo do ipê rosa, ainda por florescer, três homens simples de aparência, mas ricos de filosofia se encostavam  silenciosos, suados, depois de encherem o bucho com arroz, ovo frito e farinha molhada d’água de moringa.

 Zé Grande coçou o queixo barbado, olhou o céu limpo como uma folha de papel pronta  para se escrever, e lascou:

 — Ocês já pensaram que nóis tá vivo sem sabê por que e pra quê?

 João do Dico engoliu o último naco de rapadura e fez cara de quem engoliu também a pergunta.

Só Joaquim Véio respondeu, depois de cuspir pra longe, ao mesmo tempo em que principiava enrolar um cigarro de palha:

 — Vivo a gente tá, né. Pra quê, como dizem, é Deus que sabe. E talvez nem Ele saiba direito. Tem sabidos por aí que falam que cada um de nóis é que deve dar o sentindo à própria vida. Eu acho isso certo...

 Zé Grande riu daquele jeito triste de quem se faz de engraçado para disfarçar o medo que sente por dentro. Olhou o mato, como se ali morasse uma resposta escondida, entre folha e sombra.

 — Será que vale, isso tudo? Acordá cedo; botá a enxada no lombo; capinar;  vê o dia passá sem novidade, só esperando a morte chegar de mansinho?

 João do Dico ajeitou o chapéu de palha e falou pela primeira vez:

 — Mas morte é a única certeza que tem. E nóis ainda duvida e se espanta quando vê ela buscando nossa gente...

 — Eu não sei se sou feliz - disse Zé Grande, quase num sussurro. - Às vezes eu sinto uma tristeza sem nome, que vem do vento, ou de mim mesmo, sei lá...

 — Felicidade é passar o dia sem dor nas costela - disse Joaquim Véio.- Já é muito. O resto é invenção de cidade, de gente que não gosta de trabaiá.

 O silêncio veio outra vez, feito bicho arredio. O sol se moveu um dedo no céu.

 — Ocê acha que tem Deus mesmo, Zé Grande? - perguntou João do Dico, com voz de quem pisa em chão mole.

— Acho! Mas é um Deus que fala baixinho e nóis quase nunca escuta. Um Deus escondido nos buracos da vida da gente, nas pausas pra armuçar;, na sesta da tarde...

 Joaquim Véio assentiu com a cabeça, devagar:

 — Um Deus que não responde, mas escuta. Igual a terra.

 Os três ficaram olhando o horizonte, onde o mato se enrosca com o céu. Não disseram mais palavra porque a fala cansa mais que o cabo da enxada, às vezes. Mas naquele silêncio, alguma coisa se ajeitou dentro de cada um.

Foi quando Joaquim Véio pigarreou, já fumando, limpando a garganta do tempo, e falou com a calma de quem já viu mais do que contou:

— Eu fico pensando... será que nóis já não é feliz, do nosso jeito? Será que precisa mais? Será que felicidade não é isso aqui mesmo: barriga cheia, sombra de árvore, o mundo calado em volta da gente?

Zé Grande e João do Dico olharam para ele, quietos. Joaquim Véio transbordando de sabedoria de vida bem vivida, continuou:

— Tem gente que dá volta no mundo, vai longe pra buscar sossego, paz... mas será que não é aqui que ela mora? No cheiro da terra depois da chuva, no pão que a gente parte junto, no silêncio que a gente entende sem dizer, na mulher que espera nóis pro café, pro jantá; nos filhos que Deus nos mandô ?

Joaquim Velho deu um suspiro comprido, como quem esvazia um quarto dentro do peito e arrematou com sabedoria:

— Talvez a felicidade seja só isso: sabê que a vida é pouca, mas ainda assim sentá com dois amigos e vê o tempo passar, sem pressa, sem ambição. Se isso não for felicidade... então eu nem quero sabê o que é...

E o vento voltou a soprar, devagarzinho, como se também tivesse escutado.


Edson Pinto

Junho’2025

6 de jun. de 2025

331) METÁFORAS: ESSE MISTÉRIO ELEGANTE DA FALA

 

Outro dia, um amigo - desses que tendem a achar que as palavras são meras ferramentas para pedir café, cumprimentar pessoas, xingar o time quando joga mal, pagar boletos e coisas bem mundanamente objetivas - me perguntou:

— Mas afinal, Edson, por que você usa tantas metáforas em seus textos?

Eu admito que a pergunta me surpreendeu. Não pela sua complexidade, senão pelo fato de me ser - até então - inusitada. O uso de metáforas me é tão automático que, confesso, nunca tinha pensado detidamente nisso. Com efeito, pensei: boa oportunidade para uma investigação. Foi o que fiz...

Ora, por que uso metáforas?

Talvez pela mesma razão que algumas pessoas põem meias coloridas quando vestidas de terno preto: para não morrer de tédio dentro da norma. Ou talvez porque o mundo é um pouco mais digerível quando temperado com imagem e surpresa.

O fato é que a metáfora me serve como óculos de grau: sem ela, vejo a realidade, mas embaçada e sem charme.

A metáfora, meus caros, é uma espécie de mentira honesta. Você diz que o sujeito é um cavalo - e ele, que nem relincha, entende que se trata de força, não de crinas.

É uma comparação sem o constrangimento do “como”, esse aviso de que vem imagem pela frente. A metáfora não pede licença: entra, senta-se na sala da linguagem e muda o papel de parede.

Vem do grego “metáphora”, que significa “transferência”. Um tipo de mudança que não se faz com caminhão, mas com imaginação.

Aristóteles - o grego que entendia de tudo, menos de redes sociais - já dizia que a metáfora é sinal de genialidade. E quem somos nós para discordar de um sujeito que usava toga sem parecer ridículo?

Todo mundo usa metáforas, mesmo quem jura que só fala “direto ao ponto”.

Veja: falamos em “apagar memórias”, “feridas abertas”, “tempo voando”, “tóxicos relacionamentos” - tudo isso sem envolver papel, bisturi, asas ou produtos químicos.

A metáfora, portanto, é uma clandestina do vocabulário: está em toda parte, fingindo que não está. Ela é importante porque nos permite comunicar não apenas ideias, mas sensações. Dizer que a saudade “morde” é mais preciso do que qualquer tratado de neurociência afetiva.

Dizer que a esperança “brota” é mais convincente que planejamento estratégico elaborado no Powerpoint e complementado com planilhas do Excel.

Poucos textos fizeram uso tão criativo - e eficaz - da metáfora quanto a Bíblia. Ali, Deus é pastor, rocha, luz, pai, rei, amigo e até vento.

Cada metáfora revela um aspecto do divino - e, convenhamos, tentar descrever o indefinível sem recorrer à imagem é como tentar beijar o cotovelo: possível apenas em teorias de YouTube.

Jesus, mestre nesse ofício, não ensinava com PowerPoint, mas com figueiras, sementes, vinhas, sal, luz e tesouros escondidos. Ele não dizia “ajudem o próximo”; dizia “seja como o samaritano”. A metáfora ensina sem humilhar, convida sem ordenar, toca sem empurrar.

Dizemos que a vida é uma estrada, que o amor é um jogo, que o corpo é uma máquina, que o tempo é dinheiro. E quando mudamos a metáfora, muda também a forma como sentimos a realidade.

O problema talvez seja quando a metáfora nos aprisiona. Se tratamos o trabalho como uma batalha, viveremos exaustos. Se o casamento for sempre um porto seguro, talvez nos esqueçamos de navegar. Uma boa metáfora abre portas; uma metáfora ruim tranca o pensamento dentro de um armário.

Então, por que uso metáforas?

Porque a realidade, crua e nua, costuma ser malvestida e de pouca educação. A metáfora dá a ela um terno, um perfume e um sapato de cromo alemão.

Escrevo com metáforas porque a vida sem elas seria como um café sem cheiro, uma risada sem som, um abraço sem braços .

E, se me permitem, vai aqui a última metáfora deste meu texto totalmente metaforizado: escrever sem metáfora é como tentar acender uma vela com o vento.

Pode até funcionar. Mas onde está a graça?

 

Edson Pinto

Junho’ 2025


30 de mai. de 2025

330) CARTA CRÔNICA SOBRE O BISCOITO VOADOR, OS MARIMBONDOS NÃO SOLIDÁRIOS E O TERROR DA BUROCRACIA

 

“Aqui na terra, tão jogando futebol
Tem muito samba, muito choro e rock'n'roll
Uns dias chove, noutros dias bate sol
Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta...”

(Chico Buarque de Holanda)


Bom dia, compadre!


 Meu caro amigo, me perdoe se a primeira lembrança que me vem à mente ao escrever esta carta é essa estrofe do grande Chico. Se ela não diz tudo, ao menos sugere antecipar a descrição do perrengue que passei.

Vamos lá!

Sabe aquele tipo de viagem que começa como um sonho e termina como um episódio de tragédia grega dirigida por um palhaço?

Pois então.

Era para ser só o retorno tranquilo de Angra dos Reis, depois de uma semana tão pacata que até o vento parecia cochilar entre as palmeiras. Estávamos no Frade  - você sabe -, onde até a areia parece praticar meditação transcendental.

Tomamos café com a paz de quem não suspeita que o universo já está afiando os dentes. Partimos por volta das 11 horas, sem agouro, sem corvo no retrovisor, nem uma musiquinha sinistra de fundo. Estávamos em dois carros. Família grande é isso...

Lá pelas 14h30, bateu aquela fome filosófica, e pedi:

— Amor, liga para o genro no outro carro. Vamos parar para almoçar.

Foi nesse exato momento que o destino pegou uma cadeira, se sentou no banco da frente e disse: “Agora é comigo.”

A minha neta, acomodada no banco de trás como uma monja mirim, zelosa em aplacar a fome do vovô, me ofereceu biscoitos. Ato de amor puro. Aceitei. Minha cara-metade abriu o pacote, me deu um na boca, e... o pacote escorregou.

Foi aí, compadre, que cometi o maior erro metafísico da minha vida: abaixei para pegar o pacote de biscoito em movimento. Dois segundos. Só dois, repito...

O carro, sentindo-se abandonado - ou quem sabe também faminto - resolveu pastar por conta própria. Saiu da estrada, se embrenhou num capinzal com o entusiasmo de um boi adolescente e, depois de uns cem metros, resolveu abraçar uma árvore.

Mas não era uma árvore qualquer. Era a árvore do karma. Se é crível que o capiroto tem árvores de preferência, essa era a sua predileta...

Nela, estabelecida estava uma comunidade raivosa de marimbondos graúdos. Para o desastrado do biscoito e seus acompanhantes, compaixão zero... Sim, nenhuma solidariedade com nosso infortúnio. Eram, sem dúvidas, os fiscais cósmicos do apocalipse.

A cena virou um carnaval entomológico: gritos, ferroadas e uma dança de desespero digna de novela mexicana com direção de Quentin Tarantino.

Saldo da tragédia:

— Eu? Dores abdominais e o ego mais amassado que lata de refrigerante de festa.

— Minha neta? Estiramento no braço e uma história para contar nos recreios da escola pelos próximos 10 anos. Ou por toda a vida.

— Minha mulher? A mais atingida. Fraturas nas vértebras C2 e C3. Imobilizada, parecendo uma escultura futurista de resiliência.

Mas calma, que agora entra o terceiro ato: a saga da Unimed - ou, como gosto de chamar, “O Ministério das Negativas”.

O médico do pronto-socorro da  Universidade sugeriu, com toda a razão, o translado da minha mulher, de helicóptero, para Belo Horizonte. Afinal, tratava-se de duas vértebras fraturadas, não uma unha encravada...

A Unimed, porém, disse: “não autorizado”. Parecia que o helicóptero tinha que decolar com autorização divina e três bênçãos papais. E, como desgraça pouca é bobagem, também negaram a ambulância, aquelas com UTI móvel, sirene poética e tudo.

Resultado?

Saí do hospital de Vassouras como quem foge de uma prisão encarcerado que fora pela burocracia do nada barato plano de saúde. Evadido, como dizem no jargão hospitalar e, pior, com as minha dignidade e o medo andando de mãos dadas.

Aquela decisão custou-nos cinco dias de espera, ansiedade, noites sem dormir, mas agraciou a mim com um mestrado em pressão psicológica e uma pós-graduação em paciência. Tudo isso propiciado pelo sistema de saúde suplementar.

Como dizia meu avô:

"Deus não manda carga maior do que o caminhão que você dirige."

E ainda que esse caminhão tenha saído da estrada, batido em árvore e sido atacado por marimbondos, cá estamos.

Minha mulher, guerreira que é, segue firme no tratamento. Seis meses de repouso e cuidados caseiros, feitos por mim - um enfermeiro sem jaleco -, mas com amor até nos curativos.

Não gosto de gente estranha em casa, então assumi o posto. Preparo mingau, aplico colar cervical e sirvo café com filosofia e bom humor. Afinal, a ideia de salvar o pacote de biscoito foi de minha inteira responsabilidade, Assumo!

No fim das contas, percebo que o universo tem um senso de humor peculiar.

Às vezes, ele manda um pacote de biscoito voador, uma árvore armada com marimbondos e um plano de saúde mercenário e coração de pedra - tudo no mesmo episódio.

Mas, manda também aprendizado, resiliência e, veja só, uma nova história para contar.

Estamos vivos, compadre. Inteiros o bastante para rir disso tudo. Porque, no fundo, viver é isso: tropeçar na tragédia, levantar com dignidade e contar o episódio como se fosse comédia.

Obrigado pelo carinho de sempre.

Seguimos até onde Deus achar divertido e com o pacote de biscoito bem guardado.

Um grande abraço!


23 de mai. de 2025

329) A VIDA COMO METÁFORA DO FUTEBOL

Ah, viver!

Viver é jogar bola num campo aberto, sob um sol imenso, com os pulmões cheios de vento e as pernas famintas por distâncias...

A vida - essa coisa maravilhosa, as vezes absurda, inútil e necessária - é como o futebol: um jogo vibrante, com regras que devemos seguir, mas com liberdade suficiente para correr, driblar, errar, rir e suar gloriosamente!

Sim!

Tudo começa com um apito, o grito do nascimento e termina com outro, o do  silêncio final. Mas entre esses dois sons e momentos distintos há o estrondo dos estádios da alma, as torcidas que moram em nós, o delírio de tentar fazer sentido chutando a bola para frente.

Jogar!

Jogar sem medo. Passar a bola ao outro com confiança, como quem entrega o coração. Gritar gol como quem afirma: “Estou vivo!” E errar também, tropeçar, cair de cara no barro do chão vil e levantar com lama no rosto e vontade de continuar.

A vida, como o futebol, é feita de momentos: um passe perfeito, uma jogada improvável, um gol de bicicleta no meio da rotina e tudo se justifica. Ah, o absurdo é belo! E o caos tem um ritmo que o coração entende melhor que a razão.

Não me venham com lógica, com prudência, com planilhas de produtividade. Quero a vibração das arquibancadas do espírito. Quero perder por goleada e ainda assim sorrir, porque joguei com intensidade, com entrega, com carne e alma.

No futebol, como na vida, às vezes o juiz erra, o time cansa, a torcida vaia. Mas há sempre o segundo tempo. Sempre um recomeço. Sempre outra chance de fazer melhor, de tentar de novo, de ser um pouco mais livre do que antes.

E se no fim não vencermos?

Que importa?

O importante é ter jogado com vontade bastante para que, ao sair de campo, possamos dizer:

 “Ah, como foi bom viver!”

 

Edson Pinto
23/5/2025