6 de nov. de 2008

55) ANARQUISTA, SIM SENHOR... (nov'08)

O juiz determinou 4 minutos de prorrogação. __ Isso é um absurdo, exclamou Justiniano, a figura mais metódica daquela família de gente com comportamento tão diverso, porém muito unida. Unida em torno do mesmo time de futebol, mas não em todas as outras coisas, especialmente na visão de ordem a ser seguida.

__ Veja, completou, ele: __ As interrupções durante o jogo, por faltas, atendimento de jogadores machucados e substituições totalizaram conforme minhas próprias anotações 3 minutos e 34 segundos. Este deveria ser o tempo da prorrogação e não os 4 minutos que ele deu. __ Não me conformo!

Justiniano era a essência do homem metódico: Tudo tinha que acontecer segundo regras muito estritas desenvolvidas pela sua mente alucinada com a excelência que cada um dos atos humanos devia ter: Entendia e exigia dos seus circunstantes que cada tarefa seguisse rigorosamente uma seqüência que de tão lógica roubavam-lhes a criatividade, esse necessário jogo de cintura que devemos desenvolver para nos safar dos imprevistos, das armadilhas da vida.

Ele era implacável! Levantava sempre no mesmo horário e minutos que o seu relógio de cabeceira marcava; tirava o pijama e o dobrava com absoluta perfeição até colocá-lo na gaveta; depois o banho, o café, a higiene pessoal criteriosa, penteava com esmero os cabelos e, do bigode, extirpava com precisão cirúrgica os fios que ousassem entrar em desalinho. Saia de casa na mesma hora, no mesmo minuto e cruzava a rua para tomar o ônibus contando sempre a mesma quantidade de passos. Nada podia sair diferente...

Casou-se, não vem ao caso, como, com Maria Lacerda. Ela, se não totalmente anarquista, ao menos se identificava como uma mulher libertária, feminista que considerava a ordem excessiva um sério empecilho ao desenvolvimento humano. Seu sonho era viver livremente em uma comunidade afastada do burburinho urbano onde não haveria as opressões da Igreja, do sistema educacional, dos dogmas religiosos, da exigência de boa forma física e da escravidão estética. Enfim, livre de tudo, especialmente de Justiniano, desejo esse que desenvolveu penosamente ao longo de tantos anos de casamento. O tempo passou rápido, os filhos chegaram, cresceram, casaram e deixaram a dupla contraditória sozinha, naquela infinda discussão sobre método e desordem.

Maria desarrumava, Justiniano arrumava. Justiniano pedia o almoço para as 12 e 35, Maria servi-o as 14 e quaisquer minutos. E a vida seguia assim por mais de 30 anos, sem solução. Fazer o que? Maria Lacerda já havia, finalmente, se conformado com a necessidade de mudar para garantir o mínimo de convivência com o metódico marido.

Após uma longa reflexão durante um providencial refúgio de três semanas na casa de sua mãe no interior, Maria volta com o nobre propósito de ser outra, isto é, se não igual, pois isso seria impossível para qualquer ser humano, pelo menos o mais próximo possível de Justiniano: Seria disciplinada nos horários e caprichosa nos trabalhos do lar. Era, pensava ela, tudo o que Justiniano sonhava para a sua mulher.

Entra em casa e não encontra Justiniano. Procura aqui, procura ali, até encontrar uma carta do companheiro de tantos anos recentemente colocada sob a porta de casa: Dizia a carta, na verdade, mais um bilhete:

“Querida: Depois de tantos anos submetidos ao rigor metódico de meu comportamento; depois de tantos sofrimentos desnecessários impostos a você e aos nossos queridos filhos; depois de tantas picuinhas a atormentar o nosso dia-a-dia, por um capricho pessoal, estúpido e infundado, quero lhe dizer que tomei uma decisão definitiva em minha vida: Estou, desde a semana passada, morando na Comunidade Hippie Shangri-La e dividindo com gente muito interessante um modo alternativo de vida. Adeus rotina diária; adeus TV; adeus horário rigoroso para as refeições; adeus abdominais para manter a minha barriguinha no lugar. Agora sou feliz! Assinado: Justiniano, anarquista, sim senhor”.

Maria nem teve tempo para refletir sobre aquela nova situação. Caiu de costas e quando acordou já estava de malas prontas para Shangri-La ao encontro de Justiniano e da vida que sempre sonhou.

Será que estão felizes?

Edson Pinto

Novembro’08


 

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