14 de nov. de 2008

56) O ESPECIALISTA (nov'08)

A borboleta tropical Heliconius melpomene põe seus ovos somente nas folhas do maracujazeiro. Suas larvas, ao eclodirem, têm como único alimento para o seu processo de desenvolvimento, vida e futura reprodução a folha sobre a qual nasceram. A Ecologia, ciência que se dedica ao estudo das inter-relações dos seres vivos e do meio ambiente, faz profunda análise do conceito de hábitat e neste, especificamente, sobre o que chama de nicho e especialização:

O mesmo artifício que propicia o surgimento cômodo da bela borboleta traz em si uma armadilha das mais sinistras: desaparecendo o maracujazeiro em um determinado ecossistema ela desaparece também, pois ao, teimosamente, se tornar especialista, apresenta dificuldades incontornáveis para se adaptar às constantes mudanças do seu hábitat. Não se entende com outras folhas que não sejam as da planta em que se especializou.

A lição que esta faceta da natureza nos propicia é que nós, os humanos, temos, talvez por comodismo ou outros fatores mais específicos, uma tendência pela especialização aos moldes da Heliconius melpomene. A grande vantagem para a sociedade é que temos sempre alguém muito entendido em alguma coisa, mais do que poderíamos esperar de quem se ocupasse de diversos temas simultaneamente. O problema é que desaparecendo ou raleando o objeto da especialização temos indivíduos amargurados, desolados e – se for muito tarde para uma mudança – condenados a sofrimento sem fim.

Julião passou a vida se especializando em carburadores de automóvel. Regulava de ouvido, como os virtuoses regentes afinam suas orquestras. Ninguém conseguia superá-lo naquele mister. Seu negócio prosperou enquanto os adulterados combustíveis da vida maltratavam os coletores de admissão, os elementos filtrantes ou as rebimbocas das parafusetas. Tão a sério levava aquela especialização que nunca leu nada nem falava nada, nem se divertia ou vibrava com assuntos outros que não girassem em torno de seu mundo carburadorizante.

Acabaram-se os carburadores e Julião sentiu-se como uma Heliconius melpomene sem o seu maracujazeiro vital. Não conseguia ver graça em nada. Sua sensibilidade para as coisas espirituais apagara-se por falta de uso e estimulo. Nem o entrosamento social tão necessário para o gozo saudável da vida que lhe restava ainda longa parecia alcançável. A especialização de Julião mostrava a sua face oculta no momento e na condição mais imprópria possível.

E veja que não falo de uma opção profissional, apenas. Falo de uma opção inadequada de vida ao esquecermos que existem tantas outras coisas a serem exploradas, profissionalmente ou não; que são capazes de oferecer alternativas para uma ocupação produtiva e feliz, principalmente, quando aquilo que pensávamos ser o “perpetuum móbile” de nossas vidas, de repente, se ver privado de sua folha de maracujazeiro.

A vida vai nos dando paulatinamente estímulos para que desenvolvamos o gosto por algo. Pode ser o hobby da infância que já nos despertava para um determinado tipo de trabalho. Uma maior sensibilidade para as artes, o esporte, o envolvimento com tarefas sociais. Ler, escrever, pintar, fazer trabalhos manuais, pesquisar temas que dêem satisfação pessoal, enfim, milhares de ocupações que tornam a vida de qualquer pessoa mais leve e mais interessante.

É, portanto, um erro muito grave entregarmos total e exclusivamente a um único tema de interesse. É possível sim sermos especialista em algo por uma boa parte do tempo disponível, mas reservarmos uma parte, ainda que menor, mas considerável, para que outras ocupações, quer intelectuais quer físicas, nos sirvam de alternativa à folha do maracujazeiro de nossas vidas.

É triste ouvirmos de pessoas fisicamente saudáveis que estão perdidas, por que passaram a vida só fazendo isso ou aquilo e que agora, aposentadas, não conseguem ocupar-se de modo gratificante. Reflitamos, portanto, quanto à nossa opção pela cega especialização!

Edson Pinto
Nov'08

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